— Ito, cadê seu relatório?! — Exigiu o homem aparecendo à minha frente. Contive o impulso de rolar os olhos antes de responder. Boa tarde pra você também. — Estava agora indo te entregar, chefe. — Respondi, ainda desacostumada com a voz masculina atualmente saindo da minha garganta. — Mas pra resumir, a polícia e os heróis têm fechado o cerco cada vez mais. São poucos os lugares que ainda dá pra gente atuar com gente que não é dispensável. Três ou quatro só, esses aqui.
As palavras deixaram um gosto amargo na minha boca. Eu odiava falar sobre vidas como se fossem descartáveis e odiava ter que fingir não me importar. Meu consolo era saber que estaria ajudando mais que prejudicando a longo prazo.
Entreguei-lhe a pasta que eu carregava e o vi abrir para verificar os papéis sem nunca melhorar a carranca. Ele estalou a língua em descontentamento, claramente irritado com o andamento dos negócios nos últimos tempos.
— Tá. A lista de agências nessa área tá aqui?
— Na última página. — Por mais que eu odiasse certas partes do meu trabalho atual, eu era eficiente. Tinha que ser, ou me tirariam daqui e todo o esforço teria sido por nada.
Ele assentiu, resmungando algo que não entendi. Em seguida, falou de forma clara:
— Quero você de prontidão no armazém até de noite. O inútil do Yagami tem mais documento pra mim e eu quero aquela merda na minha mão o quanto antes, vai cobrar ele assim que o filho da puta aparecer.
— Sem problemas.
— Some da minha frente então, tá esperando o quê?
Não precisei que ele falasse duas vezes, virando e rapidamente saindo do prédio, respirando aliviada assim que senti o sol no meu rosto.
Eu precisava ser rápida e discreta agora. Percorri as ruas que já tinham se tornado familiares até encontrar o restaurante mexicano, verificando que não tinha sido seguida antes de entrar e me enfiar na cozinha pouco movimentada. Gomez, o dono do lugar, ergueu o olhar da chapa onde fazia tortilhas e sua postura relaxou ao ver que o intruso era eu.
— E aí, Lua?
— Boas notícias, mano. Mas preciso usar o telefone.
— Tuas coisas tão lá atrás. Preparo teu almoço já?
Sorri genuinamente. Ele era um cara legal. Eu precisava voltar aqui quando essa história acabasse e eu pudesse voltar a ser eu mesma.
— Você é um anjo. Me faz o de sempre que eu já venho.
— Pra já.
Me esgueirei até o banheiro dos funcionários e fechei a porta. Subindo na privada, me estiquei para alcançar a mochila escondida no tubo de ventilação, a encontrando exatamente onde eu havia deixado, e suspirei de alívio. Peguei o celular que mantinha nela e liguei para o primeiro contato, sendo atendida no terceiro toque.
— Alô?
— Sra. Beifong, é a Moonlight. Tenho novidades. — A sra. Beifong era a minha verdadeira chefe, embora pouquíssimas pessoas soubessem disso. Bom, pouquíssimas pessoas sabiam da minha existência no geral, e menos ainda sabiam quem eu realmente era.
— Já? — A voz dela soou surpresa. Nossa previsão era que eu fosse demorar muito mais para conseguir as informações que viera buscar. — Devo esperar um relatório?
— Talvez ainda não. Mas o Takahashi me mandou pro armazém hoje, disse que é pra eu ficar lá até de noite esperando uns documentos que ele quer. Grandes chances de eu conseguir tempo pra bisbilhotar pelo menos um pouco. No mínimo eu consigo te passar o processo pra entrar lá.
— Muito bom, muito bom. Isso deve adiantar pelo menos um pouco o cronograma. Quem sabe a gente consegue te tirar daí até junho.
— Tomara. Andar por aí nesse corpo não é muito confortável. — Escutei a gargalhada da senhora do outro lado da linha e ri baixinho. — Agora preciso ir. Só liguei mesmo pra avisar.
— Tá bom. Boa sorte.
— Obrigada.
Desliguei com um suspiro e guardei as coisas de volta. Aproveitei que já estava lá para lavar o rosto, franzindo o cenho para o rosto estranho que me encarava de volta no espelho. Bom, nem tão estranho, uma vez que eu já estava usando ele há uns três meses. Ao fim do ano pelo qual estava previsto que eu ficaria assim, já seria só mais uma imagem familiar.
— Tomara que a sra. Beifong esteja certa e essa missão acabe antes do previsto. To precisando de umas férias — murmurei pra mim mesma antes de assumir novamente a postura do homem que eu estava personificando e voltar para fora. Ainda tinha muito trabalho a fazer antes de poder ter férias.
Olhei ao redor para garantir que não havia mais ninguém no corredor. Eu precisava descobrir o que ficava naquela sala que Takahashi mantinha tão escondido. Nem câmeras tinha lá dentro, mas era importante, eu tinha certeza. Depois de quatro meses tendo acesso àquele armazém, eu não tinha nem ideia do que poderia ser.
Com a chave que Beifong tinha me dado, destranquei a porta de metal e a fechei rapidamente atrás de mim, mas em um milhão de anos, eu não imaginaria encontrar o que me encarava de volta. Pisquei algumas vezes, tentando assimilar a imagem. Dei um passo à frente e a criança se encolheu.
— Hey, tá tudo bem. Eu não vou te machucar. — Ergui as mãos, retrocedendo em direção à porta para tentar provar que não era uma ameaça. Sua expressão não parecia muito convencida, seus olhinhos verdes seguindo meus movimentos. — Como você se chama? Meu nome é .
Isso despertou curiosidade.
— Mas você é homem.
— Posso te mostrar um segredo? — sussurrei e recebi um balanço de cabeça mínimo em confirmação.
Fechei os olhos então, parando de lutar contra o repuxo constante da pele do meu rosto. Senti os ossos mudarem de tamanho e se reajustarem, o couro cabeludo coçando até o cabelo roçar no meu pescoço. Quando abri os olhos outra vez, minha pequena descoberta me olhava com surpresa.
— Esse é meu rosto de verdade. Isso aqui — apontei para meu corpo, que eu não havia retrocedido — é como se fosse uma fantasia que eu faço com a minha Individualidade. Mas não conta pra ninguém, tá?
— Você não veio me buscar, então? — Sua vozinha e jeito de falar me faziam chutar que tinha por volta de 5 anos, embora fosse uma criança pequena. Mas a quebra em “buscar”, somada às reações, me diziam que tinha passado por um inferno muito maior que sua pouca idade. Meu coração partiu antes mesmo de eu descobrir seu nome.
— Não, não vim te buscar. Na verdade, nem era pra eu ter conseguido te achar. — Seus ombros relaxaram um pouco. — Como você se chama?
Após alguns segundos de hesitação, obtive resposta:
— Hayato.
— E por que você tá aqui, Hayato?
— Eles não conseguiram pegar meu pai, então pegaram eu.
Abri a boca para responder, mas um relógio apitou na parede e Hayato arregalou os olhos com medo. Sem parar para pensar em qualquer consequência, me lancei para o canto da sala onde havia um armário, abrindo e tirando roupas que pareciam ser dele.
— Você guarda mais um segredo? — Pedi, minha voz mudando da minha para uma mais fina, mais baixa e muito mais infantil. Meu corpo inteiro repuxava e se adaptava à forma que eu agora tentava lhe dar, e eu precisava ser rápida.
— O que… o que você tá fazendo?
— O relógio quer dizer que alguém vem te buscar, certo? — Ele assentiu confuso. — Não posso te tirar daqui agora, mas posso ajudar. Tem alguma coisa que eu precise saber sobre quando te buscam? Alguma coisa que você faz que eles vão saber se não for você?
— Não, eu não falo e também não sei fazer o que eles querem. Mas eles vão te machucar! — Exclamou ao me ver transformada em uma cópia sua, vestindo as roupas que eu havia pego e colocando as minhas dentro do armário.
— Hayato, — peguei as mãos do menino, que agora eram do mesmo tamanho das minhas. Eu não incorporava uma criança havia muito tempo — é isso que eu faço, meu trabalho é proteger as pessoas. Você não precisa se preocupar comigo, tá bom? Eu vou ficar bem, prometo. E vou dar um jeito de te tirar daqui o mais rápido possível, pra que eles nunca mais te machuquem. Agora eu preciso que você se esconda, tá? Ninguém pode ver que tem dois de você.
— Tá bom — respondeu após um segundo de hesitação, seus olhos estudando o meu rosto.
Ele se esgueirou para dentro de uma outra parte do armário agora fechado bem a tempo de a porta abrir com um estrondo.
— Hora de ir, moleque. Será que hoje você vai parar de ser idiota e me dar o que eu quero? — perguntou uma mulher que eu não conhecia.
Obedecendo à informação que Hayato havia me dado, não respondi, apenas a encarando com medo. Eu tinha dito a verdade ao menino sobre esse ser o meu trabalho, mas isso não significava que eu não estava apavorada com o que podia acontecer comigo, ainda mais nesse corpo tão pequeno e frágil. Agora que eu o copiara, conseguia perceber que Hayato não estava recebendo comida o suficiente, e provavelmente tinha lesões que não haviam sido tratadas adequadamente, o que fazia meu sangue ferver de raiva e meu coração se apertar.
A mulher grunhiu, irritada com minha falta de resposta, e seus cabelos voaram na minha direção, se enrolando até me prender. Me debati, mas não tinha força o suficiente pra que isso adiantasse de muita coisa.
— Vamos logo que eu não tenho o dia todo. E para de tentar escapar, ou vai sobrar pra sua irmãzinha. — Congelei imediatamente. Irmãzinha? Havia mais uma criança ali? Uma ainda menor e mais frágil que Hayato? — Melhor assim.
Me deixei levar sem mais resistência, olhando para trás e finalmente notando de verdade certos objetos do “quarto”, como o colchão em cima do qual havia o que eu tinha assumido ser uma coberta enrolada, mas onde agora via movimento. Meu Deus, tinha um bebê ali?! Que tipo de monstruosidade estava acontecendo naquele galpão?
Observei atentamente o caminho que ela fazia ao me carregar, memorizando cada curva e tentando me dissociar do que sabia que estava prestes a acontecer.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
Após o que eu imaginava ser aproximadamente três horas, fui jogada de volta no “quarto” das crianças, minhas bochechas manchadas pelas lágrimas e o pequeno corpo que eu usava no momento coberto de hematomas. A mulher queria que Hayato fizesse algo com sua Individualidade, que eu supunha ser relacionada à manipulação de vetores pelo que pude observar, e apertava seus cabelos em um abraço de cobra em volta dos bracinhos, pernas e tronco quando ele não fazia nada, parando apenas quando estava prestes a causar uma fratura. Não me pareceu que o tratamento que eu havia recebido fosse diferente do normal, a julgar pelas reações dela enquanto me torturava, então não me parecia que eu houvesse sido descoberta.
— Espero que aprenda sua lição e me obedeça de uma vez, moleque. Tem mais quatro dias até nossa próxima aula. — Advertiu antes de bater a porta e trancá-la.
Gemendo baixinho, me apoiei em um dos braços para levantar de onde eu havia aterrissado no chão. O verdadeiro Hayato saiu de dentro de um minúsculo banheiro que eu não tinha notado mais cedo, carregando uma toalha molhada.
— Eu disse que iam te machucar. A toalha tá gelada, melhora um pouquinho. — Ele sentou-se ao meu lado no chão e me estendeu o tecido, que aceitei, colocando contra minhas costas e fazendo uma careta.
— Hayato, isso acontece sempre? — Ele assentiu, desviando o olhar. — Tá legal, chega. — Com dificuldade, me levantei e fui até o armário, pegando minhas roupas. Tirei as roupas de criança e vesti as minhas, engolindo os grunhidos que ameaçavam escapar dos meus lábios. Assim que estava coberta, permiti que meu corpo inteiro voltasse à forma original. — Pu… — Engoli o palavrão. Metamorfose normal era um processo levemente incômodo, mas quando o corpo estava machucado era um porre, tudo doía dez vezes mais, e as regiões machucadas pareciam estar sendo socadas. Me recostei contra a parede, ofegante. Podia sentir os olhinhos dele em mim enquanto eu me recuperava. — Okay, agora eu preciso que você me responda algumas coisas.
Abri os olhos para encontrar o olhar dele. Sua expressão era resignada, com um cansaço que eu poucas vezes havia encontrado mesmo em adultos. Eu sabia que não o ter encontrado até agora não era culpa minha, mas não conseguia deixar de pensar em quanto sofrimento poderia ter sido evitado se eu tivesse invadido esse quarto antes.
— Tá bom.
— Aquela mulher. Ela disse que você tem uma irmã.
Ele assentiu, andando até o colchão e sentando ao lado da coberta.
— Essa é a Suki. Trouxeram ela também quando me pegaram, acho que pensaram que podia funcionar com ela se eu não servisse. — Me aproximei, vendo a pequena menina deitada lá. Ela estava acordada, os olhos do mesmo verde do irmão me encarando com curiosidade. Assim como ele, ela parecia pequena demais, mas eu chutaria que ela tinha por volta de um ano. Não deveria estar deitada enrolada em cobertas, mas dando seus primeiros passos desajeitados por aí.
— Você sabe quantos meses ela tem, Hayato?
— Não sei quanto tempo faz que a gente tá aqui. Ela nasceu perto do natal.
Engoli em seco.
— Você sabe que mês era quando te pegaram?
— Junho ou julho? Não sei. — Hayato baixou os olhos, brincando desanimado com a irmã. Quando falou de novo, sua voz era tão baixa que quase não ouvi: — Foi pouco depois do aniversário da mamãe.
Seis meses. Essas crianças estavam aqui, em cárcere privado, mal nutridas, sem cuidado nenhum, sob tortura há seis meses. E muito provavelmente tinham presenciado a morte dos pais, considerando o que eu sabia sobre como Takahashi fazia negócios. Eu precisava acabar com isso.
— Nos próximos dias, alguém vem aqui de novo?
— Só pra deixar comida. Ela vem me buscar só quando fala mesmo, pra dar tempo de eu melhorar antes de fazer de novo.
— É sempre assim?
— É.
Suspirei. Eu precisava sair dali ou iam dar pela minha ausência, mas não queria deixar os irmãos sozinhos de jeito nenhum.
— Olha aqui pra mim. — Pedi — Eu sei que você acabou de me conhecer e não tem motivo nenhum pra confiar em nenhum adulto que aparece aqui. Mas eu vou te fazer uma promessa, Hayato: eu vou tirar você e sua irmã daqui, e vocês nunca mais vão ter que voltar pra uma situação dessas. Ok? Eu prometo. Não vai ser hoje, porque eu preciso descobrir um jeito de fazer isso primeiro, mas vai ser logo.
— Por que você liga? — perguntou baixinho.
— É isso que eu faço. Eu sou uma heroína profissional, meu trabalho é exatamente ajudar as pessoas. Por causa da minha Individualidade, eu me escondo no meio dos vilões pra descobrir como derrotar eles, é por isso que eu to aqui. E vocês são só crianças.
— E o que você vai fazer?
— Dar um jeito de tirar você e a Suki daqui em segurança. Mas provavelmente vou precisar da ajuda de outros heróis, por isso não consigo levar vocês hoje. — Com dor no coração (e no corpo também), me transformei de volta em Ito, minha identidade para a missão atual. — Agora eu preciso ir, mas eu volto, tá?
— E como eu vou saber que é você?
Sem hesitar, ergui minha camiseta e apontei para a tatuagem de lua estilizada nas costas.
— Essa tatuagem é minha mesmo, do meu corpo de verdade. Eu te provo que sou eu mostrando ela, pode ser?
Após alguns segundos em que ele observava o desenho, Hayato assentiu. Arrumei a roupa outra vez, peguei a chave que Beifong havia me dado e sai do quarto, deixando meu coração com os dois irmãos.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
4 de dezembro
Bati a porta, marchando para dentro da sala sem a mínima cerimônia. Não era como se a sra. Beifong fosse ser surpreendida pela minha entrada. A mulher podia ser idosa e cega, mas ela usava sua Individualidade para enxergar e via perfeitamente bem, muito melhor que pessoas cujos olhos funcionavam, inclusive.
— Bom dia pra você também, Moonlight. Posso saber pra que você chegou batendo portas e pisando duro desse jeito?
— Eu quero a operação do Takahashi fechada. — Pausei por tempo o suficiente para a mulher virar-se para mim e arquear uma sobrancelha. — Agora, Beifong.
— Explique-se. — Seu tom duro me fez respirar fundo e me recompor. Eu estava desesperada, mas ela nem sequer sabia o que estava acontecendo, e eu já estava faltando com o respeito.
— Eu entrei ontem na sala que ele mantém trancada. São crianças. — Apoiei meus braços no encosto da cadeira, deixando a cabeça cair em derrota. — Eles sequestraram duas crianças, muito provavelmente assassinaram os pais deles, e estão mantendo eles lá.
— E o que mais você quer que eu faça? Já coloquei você lá justamente pra gente derrubar eles, mas você sabe que tem um protocolo.
— Foda-se o protocolo! Você não tem noção do que estão fazendo com eles! Seis meses, Beifong! Essas crianças foram sequestradas no meio do ano, uma delas nem um ano tem ainda, eles estão jogados num quarto trancado no subsolo sem o mínimo! Sem falar no que estão fazendo com o mais velho…
— Moonlight, eu sei que parte do seu trabalho é resgate, mas a maior parte dele ainda é se infiltrar sem ser descoberta para conseguir provas o suficiente pra tirar esse povo de circulação. Não pode simplesmente decidir que…
— Presta atenção! — Interrompi, agarrando uma das mãos dela e pressionando contra meu pulso. — Presta atenção na quantidade de machucados no meu corpo, eu sei que você consegue sentir! Eu tomei o lugar do irmão mais velho ontem depois que achei eles, estão torturando um menino de 5 anos! E tudo porque querem que ele faça algo com a Individualidade que ele nem sabe fazer! E isso é recorrente, repetem esse processo a cada 4 ou 5 dias, dando só o mínimo de tempo pra ele se recuperar antes de machucar ele todo de novo! Então me desculpa, foda-se o protocolo! A gente pode não ter a quantidade de provas que queria, mas temos o suficiente pra acabar com essa putaria. — Parei por um segundo para respirar e então continuei: — Eu quero aquelas crianças fora de lá até o Natal. Ou você manda a cavalaria pra me ajudar, ou eu vou resolver sozinha. A escolha é sua.
Com isso, marchei para fora do escritório sem esperar uma resposta. Mais ou menos na metade do caminho entre lá e a saída, esbarrei em alguém, arfando de dor por conta de todos os machucados recentes.
— Desculpa. Eu te machuquei? — perguntou uma voz profunda em algum ponto acima de mim, mas não respondi imediatamente. Senti então uma mão gelada encostar no meu ombro para tentar chamar minha atenção.
Quando olhei pra cima, os olhos heterocromáticos que me encaravam de volta eram únicos o suficiente para serem reconhecidos de imediato.
— Shoto-san. Ahn, não, não foi você que me machucou, não se preocupe.
Shoto era dono da agência para a qual eu trabalhava atualmente, apesar de tecnicamente não ser meu chefe. Ele abrira uma divisão interna para heróis e missões que pareciam muito mais com espionagem do que com o trabalho comum de um herói profissional, e contratara a sra. Beifong para comandar essa parte sem interferência dele. Mesmo assim, às vezes aparecia por ali em reuniões, só para se manter atualizado do que estava acontecendo. Isso tudo, claro, sem contar que qualquer um que pusesse os pés no Japão ou soubesse o mínimo sobre a atual geração de heróis nacionais conhecia o rosto dele (e uns 70% tinham no mínimo uma queda por ele). Ainda assim, eu não esperava encontrá-lo. Ele franziu o cenho levemente.
— Tá tudo bem?
Puxei as pontas das mangas da minha blusa, inconscientemente tentando esconder os hematomas.
— Não se preocupe, foi só um imprevisto.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Suas missões não costumam ter imprevistos que te deixam nesse estado.
— Como você sabe das minhas missões? — perguntei surpresa. Ele abriu um sorriso mínimo e eu quase engasguei. Tá, ok, crush do país todo justificado.
— Você trabalha pra Beifong, mas a agência ainda é minha. Especialmente quando trazemos heróis de fora do Japão, gosto de saber o que acontece.
— Bom, nesse caso talvez seja interessante pedir pra ela te passar o que eu vim falar. Eu mesma diria, mas preciso ir. Obrigada pela preocupação, Shoto-san, mas eu vou ficar bem.
Curvei a cabeça para ele e fui embora.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
15 de dezembro
— Mas será possível que você não vai aprender nunca, garoto?! — Ela bufou. — Sua sorte é que ainda não dá pra saber a Individualidade da sua irmã, ou eu já teria me livrado de você.
Bufei ao ouvi-la fechar a porta. Eu havia passado os últimos doze dias investigando, mas não tinha conseguido descobrir o nome da desgraçada. Ela, assim como as crianças, devia estar acima do que Takahashi permitia que eu soubesse.
— Quer a toalha? — Ofereceu o verdadeiro Hayato saindo de seu esconderijo dentro do armário. Neguei com a cabeça.
— Hoje eu vim preparada, mas obrigada. — Com dificuldade, mas menos do que nas últimas vezes, me levantei e fui pegar minhas roupas. — Conseguiram comer?
Ele assentiu.
— A Suki gostou da papinha que você trouxe.
— E você, comeu também? — Esperei ele confirmar antes de me transformar em Ito, arfando. Logo em seguida, peguei o analgésico que havia trazido e engoli, torcendo para fazer efeito rápido. — Desculpa não ter conseguido tirar vocês daqui ainda. — Respirei fundo, verificando que a comida que eu havia trazido era o suficiente para os próximos dias e estava escondida o bastante.
Eu estava fazendo meu máximo para facilitar a vida de Hayato e Suki enquanto não conseguia resgatá-los. Ainda não tinha tido resposta da Beifong sobre encerrar a operação, mas eu não podia ficar parada, especialmente sabendo que havia a chance dessa resposta nunca vir. Eu estava a um passo de implorar para alguns amigos e antigos colegas de trabalho virem do Brasil me ajudar, porque seria impossível tirar os dois dali em segurança sozinha. O armazém estava sempre cheio, e, por mais que Suki fosse pequena e ignorada o suficiente para eu conseguir levá-la para fora despercebida, Hayato não era, e eu jamais arriscaria levar um irmão sem o outro.
Então desde que os encontrara, eu vinha tomar o lugar dele nas “aulas”, como nossa torturadora as chamava, trazia comida e ajudava a cuidar de Suki como eu podia. Estava longe de ser o suficiente, e eu estava sempre tensa, preocupada que alguém viesse buscá-lo enquanto eu não estava prestando atenção, ou percebesse que ele não estava coberto de hematomas frescos, mas era o que eu podia fazer no momento.
Hoje mesmo já havia dado um banho em Suki, aplicando os remédios e pomadas que ela claramente precisava. Eu podia não ser mãe, mas tinha um irmão mais novo e vinha de uma família grande, então eu tinha uma boa noção das necessidades de um bebê.
— Ok, eu preciso ir antes que alguém perceba que eu sumi. Não esquece de comer também, viu? — Hayato assentiu e eu fui embora, trancando a porta outra vez. Ouvindo passos, entrei em pânico momentaneamente.
Não era pra eu estar ali, não podia ser pega. Como eu ia tirar as crianças de lá se fosse descoberta? Decidindo rápido – e sabendo que talvez não fosse funcionar – fingi estar apenas passando de um corredor pro outro, indo em direção ao som.
— Ito? Que porra você ta fazendo aqui? — Yagami perguntou com as sobrancelhas erguidas. Ainda bem que era só ele.
— Revirando esse armazém atrás de você, seu idiota. Takahashi mandou você encontrar ele no escritório, ele ta puto. Disse que era algum relatório errado, mas não me importa. Meu trabalho é te mandar pra lá.
— Puta merda.
— Corre, porque ele tava com cara de que cabeças iam rolar. — E vindo dele, a frase era bem literal mesmo.
Ao ver o homem correndo na direção da saída, agradeci mentalmente a qualquer entidade que pudesse estar ouvindo. Yagami não era o cara mais inteligente do mundo, e eu realmente deveria estar procurando por ele para dar o recado de Takahashi – o que era tecnicamente o meu trabalho. Segui na mesma direção, porém com mais calma, e fui embora. Meu turno tinha acabado, pelo menos por hoje.
Chegando no apartamento que eu estava usando, tirei a roupa pesada e permiti que meu corpo voltasse ao normal com um grunhido. Para todos os efeitos, ninguém que me conhecia como podia saber a aparência que eu usava durante uma missão, e ninguém que me conhecia como Ito podia me ver como em momento algum. Mas o apartamento me dava privacidade o suficiente para não usar o disfarce, pelo menos por algumas horas. Após tomar um banho quente, colocar um pijama confortável e me enfiar debaixo das cobertas, peguei o celular – o meu celular – e liguei para o meu irmão. Ele atendeu após alguns toques, seu rosto aparecendo na tela. Não pude deixar de sorrir.
— Hey.
— Hey. Tá tudo bem? Sua missão acabou já?
Suspirei.
— Não, nem perto.
— Ué. — Liam franziu o cenho. — Aconteceu alguma coisa? Você não costuma ligar no meio de uma missão.
— É, eu sei. Aconteceram algumas coisas sim, mas nada que eu possa falar, e eu só… precisava falar com você um pouco. Lembrar do mundo real, ver que você ta bem. — Sua expressão suavizou.
— Posso te entediar com as histórias desse semestre da faculdade. Já acabou, mas a gente quase não se falou esses meses todos.
— Eu adoraria. Quero saber também o quão surtados a mamãe e o papai estão com o natal chegando.
— Numa escala de zero a dez? Onze. Igual todo ano. — Nós rimos juntos.
Uma voz familiar apareceu logo em seguida:
— É a ? — Liam assentiu, virando o celular para abrir espaço, e logo nossa prima apareceu na imagem — Oi! Nossa, você ligando tão cedo? Que milagre é esse?
— Lembra que eu to no fuso oposto, pra mim são 10 da noite. — Eu ri, e ela bateu na própria testa.
— Verdade, né. Eu nunca sei onde você tá direito.
— Sem planos de sair do Japão tão cedo. Mas vocês tão fazendo o que juntos tão cedo? Achei que estavam de férias.
— A gente tá, mas tiramos o dia pra comprar as coisas que faltam pro natal. O que você vai fazer, aliás? Já sei que você falou pra mamãe que não consegue voltar pra passar com a gente.
— É, sem chance. Mas pode ser que eu consiga ligar pra pelo menos falar com todo mundo. Eu talvez consiga folga no dia 25.
— Ah, ia ser ótimo! Ta todo mundo com saudades.
— Agora! — Exclamou o chefe de polícia no ponto que todos estávamos usando.
Observei enquanto os primeiros policiais derrubavam a porta da frente do armazém. Fomos recebidos, assim como no relatório da Moonlight, por capangas armados, que começaram a atirar imediatamente. Respirando fundo, ergui meu braço direito, cobrindo-os de gelo até o peito. Não duraria muito, visto que os de reação mais rápida já estavam tentando escapar, mas ganharia alguns minutos e me daria a abertura necessária para entrar no prédio. Corri pelo meio das pessoas, tocando no maior número possível de armas conforme passava para congelar o mecanismo interno, mas meu objetivo era claro. — Ela quer fechar a missão agora, mesmo sem todas as provas. — Inclinei a cabeça levemente, confuso.
— Por quê? — Beifong suspirou, parecendo cansada.
— Porque ela achou duas crianças lá dentro.
Por mais que eu não me envolvesse nas missões infiltradas, gostava de me manter informado, especialmente em casos como o da Moonlight. Beifong e eu tínhamos ido atrás dela do outro lado do mundo especificamente para missões como essa, em que mesmo nossos melhores agentes não conseguiam se infiltrar, e essa organização de vilões já estava se tornando um problema fora de controle quando a colocamos no caso, então eu lia os relatórios com uma frequência bem maior que dos outros heróis. Quando a encontrei toda machucada no outro dia, soube imediatamente que algo estava errado, e tive que me envolver pessoalmente quando Beifong me contou o que era. Anos tinham se passado e eu não fizera parte da operação na época, mas ainda me lembrava bem do que Midoriya tinha contado sobre Eri – e de todo o processo pelo qual ela teve que passar depois de ser resgatada. Saber que havia outra criança passando por algo parecido bem embaixo do meu nariz era impossível de ignorar. O simples fato de ter demorado duas semanas para conseguir preparar essa invasão me corroeu por dentro o tempo inteiro.
Então, enquanto o objetivo geral da operação era prender o máximo possível de envolvidos, o meu papel era resgatar as crianças. Hayato e Suki, lembrei.
Passar pelos corredores era um processo lento, por mais rápido que eu corresse, porque a cada curva apareciam mais pessoas me atacando com suas Individualidades ou com armas, e eu tinha que segurá-las até alguém me alcançar ou prendê-los de forma que pudesse continuar avançando. A vantagem era que eu não precisava abrir cada porta, havia decorado o mapa no relatório de Moonlight apontando a sala onde as crianças eram mantidas.
Estava quase me arrependendo de não ter chamado Midoriya para ajudar quando finalmente alcancei o corredor que procurava. Fechando a porta, uma mulher tinha seus cabelos formando quase um casulo atrás de si, no qual eu podia ver um par de olhos verdes em pânico.
Sabendo que diálogo não me levaria a lugar nenhum, bloqueei o corredor atrás dela com uma parede de gelo.
— Olha, se não é o herói número 3. — Sua voz era puro escárnio. — Só tem um problema com esse planinho seu. Se não me deixar ir embora, eu sufoco o pirralho. E você é um herói, então não pode deixar isso acontecer, não é?
Eu conseguia ver as lágrimas escorrendo pelos olhos de Hayato e o olhar vitorioso da mulher. Queria acabar com isso o mais rápido possível.
— Na verdade, eu fiquei em quarto lugar no último ranking — respondi sem emoção. Me surpreendia como, independente de quantas vezes eu dissesse que não me importava, as pessoas continuavam usando minha colocação para tentar me abalar. Uma bela herança dos anos do meu pai na profissão. — Mas tem razão, não vou deixar você machucar o garoto.
Antes que ela pudesse reagir, cobri suas pernas com gelo e criei um feixe de chamas que cortou a parte de seu cabelo que formava o casulo. Ela gritou de dor e ódio, mas apenas aumentei a coluna de gelo para cobri-la por inteiro e andei em direção ao menino. Os fios ainda o envolviam, seu corte eliminando o controle que a mulher tinha sobre eles, mas não alterando a força e forma em que ela os havia deixado. Queimá-los seria muito arriscado enquanto Hayato ainda estivesse lá dentro, então me resignei ao caminho mais demorado e puxei uma faca de um dos bolsos do cinto.
Aos poucos, fui cortando mecha por mecha e incinerando tudo que se soltava, sem nunca parar de prestar atenção na minha prisioneira. Ainda podia ouvir os sons de luta dos outros heróis e policiais nos corredores pelos quais havia passado, mas não ouvia ninguém se aproximando de onde eu estava. Quando consegui remover cabelo o suficiente para ver seu rosto, Hayato tinha as bochechas marcadas por lágrimas.
— Su… a Suki. A Suki. — Soluçou.
— O que tem a Suki?
— L-lá dentro… sozinha, a Suki tá sozinha.
— Tudo bem, nós vamos pegar a sua irmã. Tá bom? Mas eu preciso te soltar desse cabelo primeiro.
Ele balançou a cabeça veementemente.
— A Su-Suki primeiro. Pega a Suki pri-primeiro.
Suspirei. Ele me lembrava o Midoriya quando estávamos no ensino médio, se quebrando todo para salvar alguém. Não adiantaria discutir, e a última coisa que eu queria era piorar seu desespero.
— Tudo bem. Vem aqui. — Puxei-o comigo até perto da porta, analisando a fechadura por alguns segundos.
A porta parecia de metal, e o relatório dizia que ela era grossa o bastante para não se ouvir nada através dela. Eu não podia explodi-la, não sabia se Suki estava segura do outro lado.
— Hayato, eu tenho um plano e preciso que você fique parado por um minuto.
— Co-como você s-sabe o meu nome?
— Temos uma amiga em comum — respondi apenas, cobrindo-o em uma redoma de gelo e torcendo para ser o suficiente.
Pousei a mão esquerda no metal frio, concentrando todo o calor que conseguia gerar para tentar derreter a fechadura. Limitar as chamas à minha mão não era fácil, mas eu não podia arriscar aquecer meu corpo todo e machucar as crianças. Eu sabia que o gelo ao meu redor estava derretendo, e franzi o cenho para a porta. Vai logo, pensei, sabendo que precisava que a coluna de gelo atrás de mim se mantivesse. Quando finalmente senti o metal ceder sob a minha pele, ergui o braço direito para trás, refazendo o gelo bem a tempo. O grito de ódio ressoou pelas paredes, mas a ignorei, empurrando a porta.
Lá dentro, ouvi um choro baixinho e corri para o colchão no canto. Se debatendo para sair das cobertas em que estava enrolada, encontrei Suki, e a menina parou imediatamente ao me ver, arregalando os olhos verdes como os do irmão.
— Tá tudo bem — murmurei, pegando-a sem jeito e voltando para o lado de fora. Assim que viu o rosto do irmão, ela esticou os bracinhos na direção dele.
— Ato!
— Suki! Eu to aqui.
Coloquei-a sentada encostada na parede ao meu lado e voltei a cortar o cabelo que o prendia. Quanto mais perto eu chegava dele, mais via como os fios estavam apertados, vários hematomas já se formando, além de um ou outro corte. Assim que se viu livre, Hayato pulou para abraçar a irmã, que se agarrou a ele de volta.
— Agora eu preciso levar vocês lá pra fora e pra verem um médico.
Hayato estreitou os olhos para mim.
— Pra que médico?
— Porque você tá todo machucado e vocês estão presos aqui sem cuidado há muito tempo. Vamos, não podemos demorar aqui embaixo. — Derreti a parede de gelo que nos separava do resto do corredor e voltei para me abaixar na frente dos dois. — Eu vou carregar vocês, pra garantir que vão estar seguros e chegarmos na saída mais rápido. Consegue subir nas minhas costas?
Após um segundo de hesitação, o menino assentiu, me entregando a irmã, que segurei junto ao peito, e abraçando meu pescoço. Me ergui novamente, afrouxando o cinto e puxando-o para cima e ao redor do corpo de Hayato, para prendê-lo a mim com mais firmeza. Quando fiquei satisfeito que ele não cairia tão fácil, comecei a voltar pelo caminho que havia vindo.
— Shoto! — Chamou um dos policiais. Havia vários no corredor ao qual havíamos chegado, todos prendendo alguém ou recolhendo evidências. Parei, me virando para ele, e vi a surpresa em seu rosto ao notar as crianças. Ele balançou a cabeça. — Ahn… você foi o primeiro a conseguir avançar mais, tem mais alguma coisa que a gente deva olhar lá embaixo?
— Deixei uma mulher presa em uma coluna de gelo. Cuidado, o cabelo dela é uma arma. E recolham o máximo possível de evidências na sala com a porta de metal derretida no corredor onde ela está. Tem uma equipe de primeiros socorros na rua?
— Tem, tem sim. O relatório de vocês mencionou armas de fogo, achamos melhor ter médicos por perto.
Assenti, continuando meu caminho.
— Como você sabia os nossos nomes? — Hayato murmurou baixo o bastante para que só eu ouvisse.
— Temos uma amiga em comum que queria muito salvar vocês. Ela… meio que trabalha pra mim.
— A trabalha pra você?
— …? — Tive que forçar a memória por um segundo. Nós nos conhecíamos exclusivamente de maneira profissional, eu nem saberia que esse era o nome da Moonlight se não tivesse precisado assinar o contrato dela com a agência. — É, ela trabalha na minha agência.
— Tem certeza?
— Eu nunca chamo ela pelo nome de verdade, só pelo nome de heroína, demorei um pouco pra lembrar. Mas tenho certeza sim.
— Hum.
🟥🔥❄️⬜️
Conseguir que Hayato e Suki recebessem atendimento médico foi uma briga. Qualquer adulto além de mim que chegava perto de encostar em um dos dois os fazia pular de susto ou se encolher. Eu mesmo tive que limpar e medicar os machucados de Hayato, e precisei ficar com Suki no colo enquanto a médica a atendia – o que por si só foi um desafio, já que eu não sabia muito bem como segurar um bebê.
— Tem mais cobertores? — perguntei à socorrista quando ela pareceu se dar por satisfeita com a condição das crianças. Estava nevando, e eu sabia que o cobertor que haviam arranjado para eles estava longe de ser o suficiente para aguentar o frio.
— Infelizmente não. Desculpe.
Suspirei e me sentei em um banco, batendo levemente no espaço ao meu lado.
— Senta aqui, Hayato. Vou manter vocês aquecidos.
O menino obedeceu, se acomodando à minha esquerda. Ele não reclamava, mas eu podia ver os tremores percorrendo seus braços conforme ele apertava o cobertor o mais próximo possível de seu corpo. Aumentei a minha própria temperatura só o bastante para manter um círculo confortável em volta de mim e Suki se aconchegou no meu peito. Não pude deixar de me perguntar o que aconteceria com eles agora.
— Hayato! Suki! — Exclamou uma voz desconhecida vinda da direção onde estavam os carros de polícia.
Virando a cabeça, pude ver uma mulher que eu tinha certeza nunca ter visto antes, mas que era estranhamente familiar, correndo ao redor e claramente procurando as crianças. Hayato se encolheu atrás do meu braço, usando o cobertor para se esconder, e Suki apertou os bracinhos ao redor do meu pescoço.
Mesmo assim, a mulher nos viu e veio correndo na nossa direção, os cabelos vermelhos balançando. Quando ela chegou perto o bastante para que eu visse detalhes de seu rosto, finalmente entendi com quem ela parecia. Kirishima?
— Shoto-san? Ah, isso explica o gelo nos corredores.
— Moonlight? — perguntei cauteloso e ela sorriu de leve, virando de costas e erguendo parcialmente a blusa.
Entre as escápulas, bem na linha da coluna, era visível uma tatuagem de lua crescente com alguns arabescos. Senti Hayato parar de se esconder atrás de mim.
— Desculpa ter usado essa cara, eu só precisava mudar pra passar despercebida. — explicou, ajeitando a roupa e voltando a nos encarar.
— ? — Hayato chamou baixinho e ela imediatamente se abaixou para ficar na altura dele.
— Como você tá, querido?
— Acabou? A gente não vai mais ter que voltar pra lá?
— Nunca mais. Se depender de mim, vocês nunca mais vão passar por nada nem parecido, tá bom?
Hesitando por um segundo, ele assentiu e se jogou no colo dela, abraçando seu pescoço. pareceu surpresa por um momento antes de segurá-lo de volta, correndo uma mão pelas costas dele. Seus olhos – agora de um vermelho tão familiar – encontraram os meus, e vi quando ela disse sem produzir som algum:
— Obrigada.
Assenti em resposta. Poderíamos conversar mais sobre isso quando as crianças não estivessem presentes.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
’s POV
Quando a confusão se instaurou, eu demorei para entender o que estava acontecendo. E mesmo quando comecei a entender, eu demorei a acreditar. Beifong não tinha dado sinal de vida desde o meu chilique em seu escritório, eu já estava pronta pra ter que explodir parte do armazém e fugir com as crianças para outro país. Ficava feliz de isso não ter sido necessário.
Ser presa no meio dos outros capangas, apesar de uma experiência desagradável, já era quase rotina pra mim. Apenas passei a olhar em volta, procurando o policial que Beifong havia mandado procurar caso isso acontecesse. Eu não sabia se ele saberia quem eu era, mas parecia que sim, pois logo fui puxada pelo braço – brutalmente, diga-se de passagem.
— Eu cuido desse aqui. — Garantiu o homem.
O outro policial apenas assentiu, me deixando ir e parecendo aliviado de ter uma pessoa a menos sob sua responsabilidade. Assim que me puxou para longe o bastante, onde só haviam policiais ao nosso redor, me manifestei:
— Eu já fui esmagado pela Bandida Cega.
— E quando foi isso?
— Sob a lua crescente.
Seu aperto relaxou imediatamente, mas ele continuou me guiando até um dos carros e me empurrou para o banco de trás.
— Só não sai com nenhuma cara que reconheçam, Moonlight-san. A chave… — sorri, entregando as algemas para ele.
— Não precisa, mas obrigada.
Ele balançou a cabeça, meio incrédulo.
— Não me surpreende que você trabalhe pra Beifong. Dá uns minutos antes de sair.
— Pode deixar.
Ele fechou a porta e pude notar que as janelas eram escuras. Ótimo, assim poderia mudar sem ser vista. Não posso dizer que obedeci ao pedido de alguns minutos, estava preocupada demais com as crianças. Tanto que nem pensei muito em qual aparência assumir, apenas fiz uma versão feminina do primeiro herói que me passou pela cabeça e sai correndo, chamando as crianças. Jamais esperaria encontrá-los agarrados a Shoto.
— Você trabalha pra Beifong, mas a agência ainda é minha. Especialmente quando trazemos heróis de fora do Japão, gosto de saber o que acontece.
Será que tinha sido ele que convenceu a Beifong a autorizar a operação? Não, ele era o chefe, ele mesmo devia ter autorizado.
E ver as crianças parecendo confortáveis com ele me fazia acreditar que tinha sido ele a resgatá-los. Não havia sensação melhor que saber que eles estavam finalmente livres daquela situação, e eu tive que lutar muito contra as lágrimas que encheram meus olhos quando Hayato me abraçou.
Após todo o caos do resgate, não demorou para que Suki e Hayato dormissem. Shoto não saiu de perto deles, garantindo que estivessem aquecidos mesmo na neve, e eu me recusava a tirar os olhos dos dois, mal acreditando que finalmente estavam livres.
— Obrigada outra vez, Shoto-san — murmurei. — Foi você que autorizou isso, não foi?
Ele assentiu.
— No momento que Beifong me falou das crianças. Queria ter vindo antes, mas era uma operação em escala muito grande pra organizar mais rápido.
Balancei a cabeça negativamente.
— Vocês vieram e me ajudaram a salvar os dois. Isso que importa. — Parei por um momento, acariciando os cabelos acobreados de Suki, e suspirei. — Mas ainda me preocupo com o que vai acontecer com eles agora. Takahashi matou os pais deles, não sei se eles têm mais alguma família, e mesmo que tenham, pode ser que demore até encontrar quem são. Não quero que eles acabem em um orfanato ou sejam separados. Ou pior, sejam pegos de volta.
Shoto encarou as crianças por alguns instantes.
— Já volto. — E saiu andando na direção dos policiais.
Franzi o cenho, sem nem ter tempo de perguntar onde ele estava indo, e me preocupei das crianças nesse frio com apenas um cobertor. Mas não precisei me preocupar por muito tempo, pois menos de cinco minutos depois pude ver Shoto voltando com o chefe de polícia. Eles conversavam sobre algo que eu não consegui identificar a princípio.
— … ter que entrar em contato com um assistente social. Isso não segue o protocolo.
— Não sabemos se prendemos todos hoje, não sabemos nem quantas pessoas estavam envolvidas. Até termos certeza, as crianças seguem correndo risco, não podem simplesmente ser devolvidas pro sistema. Que lugar melhor pra eles ficarem do que comigo? Além de tudo, eu moro na rota de patrulha do Deku, praticamente não tem lugar mais seguro no Japão inteiro pra deixar eles.
— Mas Shoto-san, tem certeza? — O policial parecia, além de muito confuso, hesitante com a ideia. Não podia julgá-lo, Shoto era um herói muito popular, mas lidar com crianças na rua e ter duas em casa eram coisas bem diferentes.
— Tenho. A não ser que você tenha ideia melhor.
— Ahn não, não, senhor. Vou colocar no relatório então.
— Ótimo. E, por favor, quero o mínimo possível de pessoas sabendo disso. — O homem mais velho curvou a cabeça primeiro para Shoto e depois para mim e deu meia volta, se afastando rapidamente. — Resolvido, pelo menos por enquanto.
Eu o encarava em choque. De onde saiu esse homem? Autorizar a operação para resgatar as crianças era uma coisa – como heróis profissionais, era isso que fazíamos –, mas levá-los pra casa? Tudo bem que eu estava pronta pra fazer a mesma coisa, com ou sem autorização, mas era diferente. Eu tinha experiência com crianças, sabia lidar com elas. Shoto mal sabia lidar com adultos.
— Você… você vai levar eles pra sua casa?
Ele inclinou a cabeça de lado. Ah, puta que pariu, além de tudo ele era adorável.
— Você acabou de dizer que estava preocupada com o que aconteceria com eles agora.
— Eu não tô reclamando, não! — Garanti, arregalando os olhos de leve. — Só fiquei um pouco chocada com a sua atitude, só isso.
— Hum.
Depois disso não conversamos muito mais, havia muito a fazer. Ajudei Shoto a colocar as crianças no carro da agência e os observei se afastando até não poder mais vê-los. Hora de voltar ao trabalho, a parte burocrática me aguardava.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
25 de dezembro
Mordi o lábio após desligar o telefone. Era pouco depois de meio dia, o que significava meia noite pra minha família, e, graças à intervenção de Shoto, eu realmente tinha conseguido não estar trabalhando hoje, então tinha participado do natal, mesmo que virtualmente. Fazia exatamente uma semana que Hayato e Suki tinham sido resgatados, mas eu fiquei tão atolada de trabalho entre burocracias, verificar as evidências colhidas, dar depoimentos e ajudar a solidificar o caso contra todas as pessoas que haviam sido presas que nem tive tempo de ir atrás de Shoto para perguntar deles.
Eu havia ficado muito admirada com a atitude dele, mas também estava preocupada. Eu sabia que ele não tinha muito tempo livre, e não achava que ele tivesse muita ideia de como cuidar de crianças.
Num impulso, me troquei, peguei minha bolsa e saí rumo ao centro comercial. Ainda havia bastante coisa aberta, para a minha sorte, então consegui tudo o que precisava. Como estava cheia de sacolas, achei melhor pegar um táxi, passando o endereço que havia encontrado online, e logo estava parando em frente à grande casa. Pude ver o taxista me encarando surpreso pelo retrovisor, mas ele só perguntou se eu queria ajuda com as sacolas. Recusei e agradeci, pagando pela corrida e torcendo para estar no lugar certo. Prendendo a respiração, toquei a campainha.
Alguns segundos depois, a porta foi aberta por um Shoto muito surpreso.
— Moonlight?
Ele estava com cara de cansaço, os cabelos bagunçados, descalço e com a blusa toda amarrotada. E o desgraçado tava lindo. Como pode? Em seu colo, estava uma Suki igualmente bagunçada. Eu podia ver manchas de comida na roupa, que estava toda torta, e seus cabelos estavam espetados. Pelo menos ele parecia mais certo de como segurar um bebê. Sorri envergonhada.
— Oi, Shoto-san. Desculpa aparecer assim na sua casa de repente. — Suki estendeu um dos bracinhos na minha direção e meu sorriso se alargou conforme segurei a mãozinha dela. Mesmo que só uma semana houvesse se passado, era claro que ela já estava ganhando peso e parecendo mais saudável. — Eu vim ver essa princesa e o Hayato. Teria ligado pra perguntar, mas não tenho o seu telefone e consegui seu endereço na internet.
— Ahn… — ele piscou algumas vezes, parecendo processar a minha presença. Então deu um passo para o lado — Tudo bem. Quer entrar?
— Obrigada.
Tive que colocar todas as sacolas no chão para conseguir tirar os sapatos e o casaco.
— Quer ajuda? São muitas sacolas.
— Ah, não precisa, obrigada. São coisas pras crianças. Eu… talvez tenha me empolgado um pouco nas compras pra eles. — Senti minhas bochechas esquentarem.
— Hum. O Hayato tá na cozinha. — Shoto parou então, parecendo desconfortável. — Tá… tá um pouco bagunçado, espero que não se importe.
Abanei uma mão, rindo de leve.
— É uma casa com crianças, eu ficaria surpresa se você tivesse conseguido evitar a bagunça.
A casa era bonita, minimalista e decorada em um estilo japonês clássico. Mesmo assim, havia várias fotografias nas paredes e, para minha completa surpresa, uma grande árvore de natal.
— Considerando o que eu comprei, acho que podemos deixar as sacolas debaixo da sua árvore.
— Huh? — Ele parou, confuso por um instante. Apontei para o objeto coberto de pisca-piscas e ele suspirou. — Eu esqueço que isso tá aí.
— Como você esquece uma árvore de natal no meio da sua própria sala?
— O Midoriya e a mãe dele decoram a minha casa todos os anos. Eles dizem que preciso de mais espírito natalino. — Sorri e deixei as sacolas no chão, em seguida indo até a porta que Shoto me indicava.
— Oi Hayato.
O menino se virou, surpreso ao ouvir minha voz. Ele parecia quase tão bagunçado quanto Shoto. Ao seu redor, a cozinha estava um caos. Tigelas e panelas sujas, diferentes ingredientes espalhados pelas bancadas e o que pareciam tentativas falhas de comida na pia.
— ? — Me abaixei para ficar da altura dele, passando a mão por seus cabelos.
— Desculpa não ter vindo te ver antes, acabei não tendo tempo. Como você tá?
— Eu… eu to bem.
— E posso perguntar o que vocês estavam fazendo?
Hayato me lançou um olhar exasperado.
— Shoto tava tentando fazer almoço pra gente. — Não consegui segurar a risada, especialmente com a ênfase que ele deu em “tentando”. Vi Shoto franzir o cenho de leve.
— Tentando, é? E tava dando certo?
— Não muito — admitiu o homem, parecendo envergonhado.
— E que tal se eu ajudar? Talvez a gente consiga fazer alguma coisa gostosa e que não demore muito. — Parei então, lembrando que aquela era a casa de alguém com quem eu não tinha intimidade pra simplesmente chegar e ir fazendo as coisas. Me virei para Shoto. — Se você não se importar, é claro.
— Não me importo, mas você também não precisa se dar ao trabalho. Veio visitá-los, não trabalhar.
Balancei uma mão para ele, já prendendo o cabelo em um rabo de cavalo e erguendo as mangas.
— Não é trabalho nenhum, não se preocupe. Além disso, vocês parecem que realmente precisam da ajuda, e é o mínimo que eu posso fazer.
— Tem certeza?
— Tenho. Podemos abrir os presentes que eu trouxe depois de comer. Quer me ajudar, Hayato?
Ele assentiu e puxei um dos bancos da ilha para perto, ajudando-o a subir. Ele também parecia melhor, embora seus hematomas mais recentes ainda fossem visíveis. Rapidamente abri espaço, deixando com Hayato os utensílios que poderíamos precisar e acumulando o resto na pia.
— Ok, deixa eu ver… — murmurei enquanto analisava o conteúdo da geladeira. Não tinha muita coisa com que eu pudesse trabalhar, mas encontrei um peixe, cogumelos secos e alguns legumes. — Perfeito. — Movida pela curiosidade, não consegui deixar de comentar: — Shoto-san, pra alguém que não tem costume de cozinhar, sua cozinha é muito bem equipada.
— Minha irmã, Fuyumi, gosta de fazer refeições em família. E o Bakugo frequentemente cozinha quando vem aqui.
Franzi o cenho. Eu conhecia aquele nome. De onde conhecia aquele nome? Quase engasguei de surpresa quando lembrei, parando o que estava fazendo imediatamente.
— Peraí. Bakugo que você diz é o Dynamight? — Shoto assentiu. — Ele cozinha?! E nunca explodiu sua casa?
— Ele grita bastante no processo, mas cozinha bem. Passamos a semana comendo as coisas que ele e Fuyumi deixaram prontas.
— Eu não sei se fico mais chocada de descobrir que ele cozinha ou de saber que a mídia nunca descobriu isso. — Balancei a cabeça rindo.
Posicionei tudo na bancada, instruindo Hayato a lavar os legumes enquanto eu preparava o peixe, perguntando a Shoto sobre vários temperos e utensílios conforme avançava na receita. Não muito depois, ele começou a limpar a bagunça em que tinha deixado a cozinha antes de eu chegar. Ri baixinho ao vê-lo tentar equilibrar Suki no colo com um braço só para lavar a louça.
— Agora você esfrega de levinho pra espalhar, assim. — Expliquei para o menino ao meu lado, vendo-o repetir meu movimento com exatidão. — Isso mesmo. Consegue espalhar tudo sozinho? — Ele assentiu, concentrado. Limpei as mãos em um pano que havia deixado por perto, indo até nosso desajeitado anfitrião.
— Shoto-san? — Ele virou-se para mim, o cenho franzido. Tive que conter a risada. Ele era uma figura pública normalmente tão séria. — Posso fazer uma sugestão?
Apontei para Suki e ele suspirou.
— Eu to fazendo errado, não to? Fuyumi me explicou, mas mesmo assim…
— Não, na verdade você tá indo muito bem. E esse tipo de coisa é questão de prática mesmo. Mas talvez se você colocar ela sentada na bancada na sua frente, fique mais fácil.
Ele não pareceu confiar muito no que eu disse.
— Mas ela vai cair.
— Não, não vai. Claro, você não pode soltar ela aí e sair andando, tem que ficar perto e prestar atenção, mas a Suki já consegue ficar sentada sozinha, e ela não é de se jogar dos lugares. Além disso, se você ainda não tem um cadeirão pra ela, pode fazer uma contenção de gelo que a impeça de cair.
Cuidadosamente, ele fez o que eu disse, colocando-a no espaço vazio à sua frente, mas eu conseguia ver quão tenso ele ainda estava.
— Eu fiz isso algumas vezes com ela já, pra poder dar banho nela no armazém. — Expliquei. — Pode confiar.
Ele acabou fazendo uma barra de gelo que a mantinha no lugar sem apertá-la, mas pelo menos agora não parecia tão desconfiado quanto antes. Suki fez aqueles barulhinhos de bebê, explorando o gelo com os dedinhos como se fosse um brinquedo brilhante. Shoto colocou uma espátula de borracha limpa do lado dela, com a qual ela estivera brincando até pouco tempo atrás, e a menina se entreteve por conta própria.
— Huh. — Observou enquanto ela balançava os pés, mas não era nem de longe o bastante para derrubá-la. — Como sabia o que fazer?
— Irmão mais novo, muitos primos, uma sobrinha, minha mãe trabalha com crianças, eu mesma já trabalhei com eles antes de ser uma heroína. Como eu disse, é prática. — Dei de ombros, voltando para perto de Hayato. — Olha só, ficou perfeito. Agora só precisamos colocar um pouquinho mais de azeite, cobrir com alumínio e colocar no forno. Aí daqui uns 20 minutos tá pronto.
Terminamos de cozinhar rapidamente, e acabei pegando Suki para brincar no chão enquanto Shoto terminava a louça. Me distraí e, quando notei, ele também já havia posto a mesa. Esta, assim como a decoração da sala, era em estilo japonês clássico, então podíamos todos sentar no chão. Era melhor, assim não precisava me preocupar com as crianças em cadeiras altas demais para eles, e Suki não precisaria de um cadeirão. Coloquei a menina ao meu lado, picando a comida para ela e entregando-lhe uma colher. Senti Shoto me observar com curiosidade, mas ele não disse nada.
Na verdade, a maior parte da nossa refeição foi feita em silêncio. Eu e Shoto mal nos conhecíamos, e os assuntos que tínhamos em comum – que eram trabalho e as crianças – não eram muito bons para se discutir à mesa; Hayato, assim como Shoto, falava pouco, e estava muito ocupado comendo para prestar atenção em nós, e Suki nem falava ainda. Mesmo assim, pude sentir Shoto observando com atenção todas as minhas interações com Suki, desde a forma como eu cortava sua comida até a forma como falava com ela. Eu só não conseguia decidir se ele estava desconfiado ou tentando aprender, sua expressão neutra tornando muito difícil saber o que ele pensava.
— Agora o que vocês acham de ver o que eu trouxe? — perguntei quando terminamos de comer. Hayato levantou os olhos pra mim em um questionamento silencioso, em seguida para Shoto. — É Natal, então eu trouxe alguns presentes pra vocês. — Expliquei. Não podia culpá-lo por ficar tenso com surpresas. Imediatamente vi seus ombros relaxarem outra vez. — Estão lá na árvore.
— Posso? — A expressão de Shoto suavizou com o pedido e ele assentiu. Hayato se levantou, mas esperou na porta até eu levantar com Suki no colo para segui-lo.
Sentei no chão de frente para a árvore, colocando a menina ao meu lado e puxando uma das sacolas.
— Feliz natal, Hayato.
Ele me observou por alguns instantes, uma tristeza profunda tingindo os olhos verdes.
— Ato? — Chamou Suki engatinhando até ele. O menino balançou a cabeça, oferecendo um pequeno sorriso pra ela, que sorriu de volta, mais gengiva que dentes.
— Feliz natal, .
Balancei uma mão no ar.
— Pode me chamar só de . No meu país, a gente só chama as pessoas pelo nome inteiro assim quando tá bravo com elas. Sei que aqui no Japão é diferente, mas eu ainda acho muito estranho quando me chamam pelo nome todo.
— Feliz natal… . — Tentou outra vez e sorri.
Ele então se pôs a abrir cada sacola que eu lhe entregava. Havia roupas, brinquedos e livros, tanto para ele quanto para Suki, além de algumas guloseimas, chupetas e tudo que me ocorreu comprar. Eu saí comprando quase tudo que achava que crianças das idades deles deveriam ter, pra ser muito honesta. Eles haviam passado 6 meses sem nada, e talvez eu estivesse tentando compensar pelo menos o mínimo disso agora que eles estavam aqui fora outra vez.
Peguei a última sacola e me levantei, indo até Shoto.
— E esse último é pra você.
— Pra mim? — perguntou incrédulo e eu assenti.
— Era o mínimo que eu podia fazer, ainda mais aparecendo na sua porta assim sem aviso.
— Mas Moonlight…
Balancei a cabeça negativamente.
— O que eu disse pro Hayato vale pra você também, pelo menos fora do trabalho. Pode me chamar de . Ou de , se preferir. Mas não precisa ficar me chamando pelo nome de heroína aqui.
— . — Testou e não pude deixar de sorrir, encorajando-o. Eram raras as pessoas aqui no Japão que eu conseguia convencer tão facilmente a me chamar pelo apelido. — Você não precisava ter trazido um presente. Eu também não tenho nada pra você.
— Você já me deu o melhor presente possível com tudo que tem feito pelos dois. De verdade. Saber que eles estão seguros aqui com você era tudo que eu poderia querer, Shoto-san.
— Shoto. — Interrompeu ele e inclinei minha cabeça para o lado em dúvida. — Só Shoto. Você acabou de me pedir pra usar seu apelido, não precisa do honorífico.
— Ok, Shoto. — Sorri, colocando a sacola em suas mãos. — Aceita, por favor. Se te deixa menos preocupado, o presente é comida.
Ele não respondeu, mas aceitou a sacola, verificando o conteúdo. Senti um toque na minha panturrilha e me virei para ver Suki puxando alguns dos brinquedos que havia acabado de abrir para perto de mim, incluindo um ouriço de pelúcia ao qual estava agarrada.
— Você quer brincar, pequena? — perguntei e ela estendeu um dos objetos para mim. Sorrindo, me sentei no chão outra vez.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
— Aqui — murmurou Shoto enquanto segurava a porta para mim.
Passei com cuidado para não fazer nenhum movimento brusco e acordar Suki, que dormia tranquilamente em meus braços ainda agarrada a seu novo bichinho de pelúcia. O quarto havia claramente sido montado às pressas, mas pelo menos havia os básicos, como um berço. A pousei com cuidado dentro do mesmo, ajeitando a coberta e o bichinho antes de me afastar na ponta dos pés. Shoto não fechou a porta quando saímos, e notei que Hayato se ajeitou no chão da sala para um ângulo do qual conseguisse ficar de olho na irmã.
Eu já estava ali havia horas. Ficara brincando com Suki e Hayato – bom, na verdade mais com Suki. Hayato não parecia muito interessado em brincar ainda, embora houvesse aberto todos os presentes e agradecido por eles, mas eu não o culpava. O coitadinho tinha sobrevivido a uma experiência horrível e traumática e, diferente da irmã, já tinha idade o suficiente para entender os horrores pelo que tinha passado. Ia precisar de muito tempo, amor e terapia pra que ele pudesse ter um comportamento mais parecido com o de uma criança comum.
Shoto também tinha acabado no chão conosco, embora ele parecesse bem perdido. Ele tinha boa vontade, isso eu não podia negar, e ouvia com atenção as instruções que eu e Hayato dávamos a ele sobre o que Suki queria.
Eventualmente, porém, ela se cansou, se aconchegando em meu colo e adormecendo. Tomei aquilo como minha deixa para ir para casa.
— Eu te acompanho.
— Tchau, Hayato.
— Tchau, . — Ele acenou timidamente quando eu passei, sem sair de sua posição quase de guarda da irmã.
Quando paramos para eu colocar meus sapatos e pegar meu casaco, Shoto parou.
— Obrigado — disse.
— Pelo quê?
— Por ter vindo hoje. Pelos presentes. Por me ajudar com eles. — Ele suspirou, correndo uma das mãos pelo cabelo e apoiando as costas na parede atrás de si. — Crianças são muito mais complicadas do que eu imaginava, e com toda a correria, eu mal lembrei que hoje era natal até você aparecer.
— Não tem por que agradecer. Eu fiquei muito feliz de ver os dois, e me diverti nesse natal improvisado.
— Não, de verdade. Eu passei a semana sendo um desastre. A única coisa que eu sei fazer direito é garantir que eles não se machuquem.
Não consegui segurar a risada.
— Eu já te disse, é prática. Você tá se saindo muito bem pra quem só tá cuidando de crianças há uma semana. — Mordi o lábio, ponderando por um segundo, então peguei o bloquinho e a caneta que carregava sempre dentro da bolsa. — Mesmo assim, se achar que precisa de socorro de novo, ou só pra eu não aparecer de surpresa da próxima. Ou pra qualquer coisa que eles precisarem, qualquer coisa mesmo. Esse é meu telefone. — Entreguei o papel para ele, que assentiu e guardou no bolso da calça.
— Obrigado mais uma vez.
— Foi um prazer.
Shoto pegou meu sobretudo, que estava pendurado atrás dele, e me ajudou a colocar. Que cavalheiro. Então abriu a porta, verificando que o táxi que eu havia chamado já estava mesmo aguardando na porta. Assim que coloquei os dois pés do lado de fora, me virei ao ouvir sua voz.
— Feliz Natal, .
— Feliz Natal, Shoto.
Então me virei e voltei para casa.
Franzi o cenho ao ver o celular vibrando, a foto de Shoto que eu havia pego na internet acendendo a tela. Desde o Natal, não era estranho que trocássemos mensagens sobre as crianças, fosse para eu saber como eles estavam ou para tirar dúvidas que Shoto tinha sobre o que fazer com eles, mas em nenhum momento tínhamos ligado um para o outro.
— Alo?
— ? — Afastei levemente o celular da orelha, me assustando com o grito ao fundo. Aquilo era Suki? Parecia que ela estava chorando diretamente no microfone.
— O que ta havendo?
— Eu não sei, por isso estou ligando. Suki, se acalma, por favor.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, eu… Suki, por favor, pequena, para de chorar um minuto — implorou, ele mesmo parecendo à beira das lágrimas. Shoto tinha tirado as últimas semanas de licença, ficando apenas com a parte burocrática do trabalho que ele podia fazer sem sair de casa, de forma que estava com as crianças o tempo todo, e, apesar de não admitir, eu sabia que ele estava exausto.
— Shoto, por que a Suki tá chorando tanto? — perguntei delicadamente.
— É exatamente por isso que eu to ligando. Eu não faço ideia. Ela não dormiu direito essa noite. Já tentei dar comida, água, chupeta, brinquedo, já olhei a fralda dela, tentei colocar pra dormir… nem ficar com o Hayato ela quer, e ela já tá chorando há horas, eu não sei mais o que fazer.
— Consegue ver se ela tá com febre? — perguntei, balançando a cabeça quase imediatamente. Provavelmente não, a temperatura dele era toda bagunçada por causa da Individualidade. — Quer saber, deixa quieto. Eu chego aí daqui a pouco, tá?
— Obrigado.
Desliguei o telefone, garanti que todos os arquivos em que estivera trabalhando estavam salvos e fechei o computador, guardando os relatórios físicos em suas devidas pastas. Eu quase não tinha ido a campo mais desde o resgate das crianças. Beifong tinha me confinado ao trabalho burocrático e a ajudar os policiais com o fechamento da investigação, então estava basicamente trabalhando de “casa” – que na verdade era de volta o hotel no qual eu tinha ficado assim que cheguei ao Japão. Por segurança, eu não estava mais no apartamento de Ito, mas tinha entrado naquela missão tão rápido – e estava tão sem cabeça pra isso na época – que não tinha chegado a procurar um lugar pra mim ainda. Estava fazendo isso agora, uma vez que parecia que eu não iria embora tão cedo.
Parei em uma farmácia no caminho para comprar um termômetro, chegando à casa de Shoto quase meia hora depois de ele me ligar. Como da última vez, ele veio abrir a porta com Suki nos braços. Pude ver imediatamente as olheiras escuras sob seus olhos.
— Desculpa ter te feito vir até aqui, minha irmã está trabalhando e eu não sabia pra quem mais pedir ajuda.
— Não tem problema, de verdade. Eu falei que podia me chamar caso precisasse de ajuda. Além do mais, algo me diz que o dono da agência não vai ter um problema com o meu intervalo não planejado. — Brinquei, mas ele mal pareceu notar, uma vez que Suki começava a se debater em seus braços, o volume de seu choro aumentando outra vez. Suspirei, estendendo os braços. — Me dá ela aqui, deixa eu ver se descubro o problema.
Shoto hesitou por um segundo antes de fazer o que eu disse.
— Agora vem cá, princesa, vamos descobrir o que tá acontecendo.
Suki enterrou o rostinho no meu ombro, uma mãozinha agarrando uma mecha do meu cabelo e a outra agarrando minha blusa, seu choro ainda muito alto.
Corri uma mão por seus cabelos, aproveitando para verificar a temperatura da testa dela, franzindo o cenho imediatamente.
— Ela tá quente — murmurei, avançando para dentro da casa. Shoto me seguiu de perto.
Pousei a bolsa na bancada da cozinha, procurando com uma mão só até conseguir puxar o termômetro para fora.
— Isso não é normal?
— Não muito. Sei que temperatura corporal é uma coisa relativa pra você, e a diferença é sutil, mas isso aqui é básico em qualquer casa com crianças. — Balancei a caixinha para indicar o termômetro, e ele tirou delicadamente da minha mão para abri-la, devolvendo o objeto em seguida.
Ajustei Suki no colo, posicionando o termômetro na axila dela e segurando seu braço no lugar. Ela ameaçou se debater assim que apertei o botão e o objeto apitou.
— Não, meu amor, fica parada só um pouquinho. É pra gente descobrir o que você tem e te ajudar a melhorar. Eu prometo que vai ser rapidinho. — Abracei-a com firmeza, mas sem apertar, pelos poucos segundos que demorou até o apito seguinte, tirando o termômetro imediatamente e acariciando suas costas de leve. — Pronto, pronto, já acabou. — O visor piscava com o número 37, ganhando uma careta minha. Entreguei o objeto para Shoto. — Febril. Não chega a ser muito preocupante, mas não é bom. Deve ser por isso que ela tá assim.
— E o que a gente faz? Vai até o hospital?
— Quem vai no hospital?
Me virei rapidamente, a voz preocupada de Hayato vindo do corredor. Ele trazia o ouriço de pelúcia de Suki nas mãos e tinha uma expressão preocupada.
— Por enquanto, ninguém. — Tranquilizei os dois. — Bebês têm febre por um milhão de motivos diferentes, e vários deles não precisam de uma ida ao médico, só de um pouquinho de tempo e muito carinho. Nem realmente com febre a Suki tá, só febril ainda, então primeiro a gente vai tentar descobrir o problema aqui mesmo, tá?
Sua expressão não se suavizou muito, mas não ter que ir ao hospital já o tranquilizava um pouco. Hayato continuava extremamente desconfiado de qualquer adulto que não fosse eu ou Shoto, e ele não gostava especialmente de pessoas de jaleco. Aproximou-se de mim, oferecendo o bichinho de pelúcia para a irmã, mas ela não quis. Testando uma teoria, apoiei uma mão na barriguinha dela, apertando de leve, mas não obtive nenhuma reação diferente. Ok, não era cólica.
— Hum… o que será que você tem? — murmurei. Como se em resposta, ela levou uma das mãos à boca, esfregando a gengiva furiosamente. Arqueei uma sobrancelha.
— Suki, não faz isso, você vai se machucar, eu já falei pra você — pediu Shoto, tentando delicadamente puxar o braço dela. Pousei minha mão sobre a dele, parando-o.
— Ela já tava fazendo isso antes? — Ele me ofereceu um olhar confuso e foi Hayato que respondeu.
— Começou hoje de manhã. Por quê?
Sorri aliviada.
— Porque isso quer dizer que eu tenho quase certeza de qual é o problema, e definitivamente não precisamos de um médico.
— O que ela tem?
— Dentinhos nascendo — respondi, recebendo um olhar levemente chocado de Shoto.
— Dentes?
— É normal causar febre antes de romper a gengiva. E fazer o bebê ficar agitado e irritado, até porque dói e incomoda. Tem bebês que passam sem nenhum sintoma e tem bebês que sofrem bastante, mas não é motivo de preocupação. Se a Suki tá esfregando a gengiva assim, muito provavelmente são só dentinhos novos que tão incomodando.
— Então o que a gente faz?
— A gente ajuda a sua irmã a ficar mais confortável. E dá muito carinho pra ela enquanto esses dentes não aparecem. Mas só o tempo mesmo vai fazer ela melhorar.
— Então eu me desesperei por nada? — A exaustão era óbvia na voz de Shoto, quase desistindo.
Contive uma risada, mas estava com pena. O coitado estava se esforçando muito, mas não era fácil ser “pai” de primeira viagem, ainda mais por conta própria. Comecei a buscar uma das chupetas de Suki que ela não havia gostado.
— Não por nada, era um comportamento estranho por um motivo que você não sabia. Tava certo em se preocupar. — Encontrando o objeto, estendi para ele. — Consegue encher o bico de gelo? Vai aliviar a gengiva dela. — Ele estendeu a mão direita, encostando só a ponta do dedo. A borracha foi imediatamente preenchida, mas a espessura dela não deixava que a temperatura ficasse desconfortável ao toque. — Aqui, princesa. — Suki mordeu a chupeta em vez da mão, e seu alívio, por menor que fosse, foi óbvio. Ela parou de se debater tanto, aquietando em meus braços. — Prontinho. Agora é só controlar a febre dela e manter sempre algo que ela possa mastigar por perto. — Shoto correu uma das mãos pelo cabelo, suspirando. — Vai descansar. Deixa que eu cuido deles um pouco.
— Tem certeza, ? — Assenti. — Pode me chamar se precisar.
— Fica tranquilo. Temos tudo sob controle, né Hayato?
O menino apenas ergueu os olhos para mim, depois para Shoto e assentiu. Isso pareceu finalmente convencê-lo, e o homem foi pelo corredor até a porta que eu sabia ser seu quarto.
— Tatá? — perguntou Suki sem parar de mastigar a chupeta.
— Tatá? Você sabe o que é “tatá”, querido?
— Jantar. Ela não quis comer muito no almoço.
— Hum… e você, quer comer alguma coisa também?
Ele cogitou por um momento antes de assentir.
Não querendo sair mexendo na cozinha de Shoto sem a presença dele, acabei pegando frutas para os dois, já que estas estavam em cima da mesa. Depois disso, sentei na sala para brincar com eles. Suki, apesar de desanimada, agora que estava mastigando gelo, conseguiu comer e chegou a brincar um pouco, mas logo veio se aconchegar no meu colo para dormir, seu ouriço de pelúcia nos braços. O brinquedo tinha se tornado seu favorito, e Shoto tinha me dito que ela dormia abraçada no bichinho todos os dias.
Para não acordá-la, me ajeitei no sofá com ela ainda no colo mesmo. Vendo que Hayato parecia ter perdido completamente o interesse em brincar agora que a irmã estava dormindo, peguei meu celular.
— Quer me ajudar a procurar uma casa?
— Que casa você quer procurar?
— Eu to morando em um hotel, preciso achar uma casa pra morar. Eu não morava aqui no Japão antes, e não tinha uma casa minha enquanto tava infiltrada. Como quero que vocês fiquem lá comigo, acho justo que você me ajude a escolher.
— Você… quer que a gente fique com você? — Ele soou surpreso e um pouco… decepcionado, eu acho? — Mas e o Shoto?
Inclinei a cabeça em confusão por alguns instantes, até que finalmente entendi do que ele estava falando. Sorri, correndo uma mão pelos cabelos do menino. Fiquei feliz de saber que ele realmente havia se apegado a Shoto.
— Não, meu amor. Não foi isso que eu quis dizer. Vocês vão continuar morando aqui com o Shoto, até porque ele que é oficialmente o guardião temporário de vocês, e eu não vou conseguir ter uma casa grande igual essa. Mas quero ter uma casa onde vocês dois possam vir ficar de vez em quando, quando o Shoto precisar trabalhar ou só vocês quiserem passar um tempo comigo. Assim como eu vim pra cá hoje, quero que vocês também possam me visitar. Entendeu?
— Então… então a gente vai continuar aqui?
— Acho que sim. Por quê? Você não quer continuar aqui?
Hayato baixou os olhos verdes, suspirando, e não me respondeu por vários segundos. Eu já estava ficando preocupada quando ele finalmente falou, a voz baixa e triste partindo meu coração:
— A gente não tem mais casa pra voltar, né? — Quando não respondi imediatamente, ele ergueu o olhar para mim, a dor óbvia neles, mesmo que ele estivesse tentando passar uma imagem de força. — Eu vi as pessoas que levaram eu e a Suki colocando fogo na nossa casa. Não sobrou nada, né?
Ele não tinha dito, mas eu sabia que “nada” não era a casa. Hayato era inteligente e, apesar de pequeno, já entendia muito bem o mundo à sua volta. Além disso, tinha passado muito tempo em contato com o pior que a humanidade tinha a oferecer sem ninguém para protegê-lo. Não me surpreendia que ele tivesse chegado à conclusão de que os pais haviam sido assassinados.
E, por mais que ainda não houvéssemos encontrado provas disso – ainda nem havíamos descoberto o sobrenome das crianças ou quem realmente eram seus pais para tentar encontrar notícias da sua família – eu também sabia que a chance de eles estarem vivos era minúscula. Takahashi era cruel, não tinha o menor apreço pela vida humana e não gostava de pontas soltas nem de ter que esperar. Se Hayato estava com eles sendo torturado pela sua Individualidade, que era a mesma de seu pai, significava que o adulto não era mais uma opção. Engoli o nó na minha garganta, sabendo que não podia dar falsas esperanças a ele.
— Provavelmente não, amor. A gente ainda não descobriu nada sobre a vida de vocês antes, mas… as chances são bem pequenas. Sinto muito. — Ele assentiu resignado e tentou disfarçar quando fungou, contendo as lágrimas. — Hey, olha aqui pra mim. — Os olhos verdes se ergueram na minha direção e eu mesma tive que conter lágrimas. Passei o braço que não segurava Suki ao seu redor, puxando-o para um abraço de lado. — Vocês não estão sozinhos. Eu não posso trazer a sua vida antiga de volta. Você não sabe o quanto eu queria conseguir mudar o passado, mas infelizmente esse poder nós não temos. Mas o que eu posso fazer é cuidar do seu presente e do futuro. Vocês não estão sozinhos e não vou deixar que fiquem sozinhos nunca mais. Vocês têm eu e o Shoto, e nós não vamos a lugar nenhum. — Minha voz estava estranha pelo choro que eu tentava impedir de cair, mas não pude mais me conter quando Hayato me abraçou de volta, escondendo o rosto no meu ombro.
— Promete? — perguntou, a voz abafada. Senti suas lágrimas silenciosas molhando minha blusa e as minhas acompanharam, caindo no cabelo dele quando me inclinei para depositar um beijo no topo da sua cabeça, apertando-o mais contra mim.
— Prometo, meu amor.
Minha mente trouxe de volta as lembranças de uma promessa parecida feita alguns anos antes, só que naquela situação não fui eu quem a fez. É, eu daria tudo para poder mudar o passado.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
10 de janeiro
— Aí eu fui embora, né? Não ia continuar trabalhando naquele hospício. Aproveitei o tempo de sobra pra vir pra cá, minhas coisas são todas remotas mesmo.
— E onde entra a entrevista de emprego de ontem? — perguntei divertida.
Havia descoberto por acaso que uma amiga da época da faculdade estava em Tóquio e não pude deixar passar a oportunidade de encontrar com ela, marcando um almoço. Diferente de mim, havia se mantido na nossa área de formação, e era uma excelente professora, mas ela tinha uma noção sobre o meu trabalho desde a época em que fui contratada na primeira agência, ainda no Brasil. Não conversávamos fazia algum tempo, então ela não sabia que eu estava morando no Japão nem eu que ela estava vindo pra cá, mas tinha adorado a ideia de nos encontrarmos para matar as saudades quando sugeri.
— Completamente por acidente. — Riu. — Achei a vaga por acaso na internet, no dia que eu cheguei. Até achei que era um anúncio falso, sabe como é, né? Gente doida é o que não falta. Mas fui pesquisar a empresa e tinha um anúncio mesmo no site oficial deles, então pensei: por que não? Aí no dia seguinte eles ligaram pra marcar a entrevista.
— Então existe a chance da bonita vir morar aqui pertinho de mim?
— Olha, queria viu — disse, roubando um nacho do meu prato. — Não vou mentir que seria lindo vir morar aqui. Mas não posso deixar a minha mãe, e ela não ia se adaptar, você sabe.
Sorri. Eu amava o que eu fazia, mas não podia negar que sentia muita falta das pessoas. Trabalhar em uma agência que me manteria estacionada sempre no mesmo país e ter uma das minhas melhores amigas morando aqui seria incrível.
— Aí, espero mesmo que você consiga. E quem sabe a Lenice não acostuma? Tem várias comunidades de brasileiros por aqui, não seria difícil de achar. Eu ia amar ter vocês aqui. Já to nesse país tem quase um ano e quase não conheci ninguém.
— Ué, mas você não disse que veio pra cá pra aceitar um emprego? Que a agência foi te buscar lá no Brasil?
— Sim, mas eu já cheguei começando missão. Eles foram atrás de mim porque o problema tava ficando grande e precisavam de uma solução meio urgente. Tive coisa de uma semana de preparo antes de deixar de ser .
— Mas você foi sozinha? Não tinha nenhum parceiro da agência nem nada do tipo? Na outra agência vocês iam sempre em dupla, não era?
Engoli em seco, desviando o olhar. Eu sabia que não tinha perguntado para me machucar, mas ainda doía.
— É. Mas acho que não quero mais trabalhar com parceiros. É… complicado no meu ramo.
Ela pegou uma das minhas mãos por cima da mesa e apertou de leve.
— Oh , sinto muito.
Ela sabia sem muitos detalhes o que tinha acontecido, Liam tinha contado. Respirei fundo, oferecendo um pequeno sorriso agradecido, e continuei:
— Além disso, essa missão em específico teria sido muito mais trabalhosa se tivesse que colocar mais gente comigo. Eu to feliz que finalizamos ela. — Franzi o cenho. — Quer dizer, finalizamos a primeira parte. Ainda tem muito pra resolver dela.
— Algo que você possa falar? Ou só burocracia?
— Tem muita burocracia sim. Meu quarto no hotel tem mais papelada que espaço. — Nós rimos. — Mas tem bastante coisa pra fazer mesmo. A finalização foi meio corrida mês passado, ainda tem muita ponta solta. — Como se invocado pelo assunto, meu celular começou a tocar, a foto de Shoto acendendo a tela. Soltei um risinho. — E falando em ponta solta…
Ela ergueu as sobrancelhas para mim, me direcionando um olhar indagador, mas levei um dedo aos lábios pedindo silêncio conforme atendi.
— Oi. Ta tudo bem?
— Sim, sim, dessa vez as crianças estão bem. Desculpa te ligar. Pode falar agora? — disse Shoto do outro lado da linha.
— Eu já falei pra você que não tem problema. E posso sim. Mas a que devo a honra dessa ligação? — começou a fazer caras e bocas, zoando com a minha cara, mas apenas revirei os olhos, segurando o riso.
— Hum… — Ele soou confuso por um momento com a minha frase, mas deixou passar. — Você está ocupada amanhã à noite?
Ergui as sobrancelhas.
— Ah, não, não to ocupada não. Meus planos na verdade eram maratonar uma série. Por quê?
— Eu preciso comparecer a um evento, mas vai ter muita gente, e não quero obrigar as crianças a irem. É muito tarde pra Suki, e o Hayato ainda não se sente confortável com ninguém além de nós dois. Desculpa pedir assim em cima da hora, mas eu ainda estava tentando dar um jeito de não precisar ir. Você poderia vir cuidar deles? Eu posso pagar, se você quiser. — Revirei os olhos.
— Nem pense nisso. É óbvio que eu vou, Shoto, jamais recusaria um pedido desses. Eu vou adorar, na verdade. — Ouvi um suspiro aliviado do outro lado.
— Obrigado. Mesmo. Fico bem mais tranquilo em saber que eles estarão com você. Tem certeza que não te atrapalha?
— Claro que não. Que horas devo chegar na sua casa?
— O evento começa umas 20h, então acho que meia hora antes?
— Perfeito. Então 19h30 eu to aí.
— Obrigado mais uma vez, .
— Até amanhã.
Desliguei sob uma expressão de choque.
— “Ah porque não conheço quase ninguém aqui.” E aí liga o cara pra ela ir na casa dele amanhã. Mas é dissimulada! E é famoso ainda! O suficiente pra até eu saber quem é. A senhora quer fazer o favor de explicar?
Revirei os olhos, rindo muito.
— Ele também é meu chefe.
— Pode ser, mas você chamou ele pelo nome sem honorífico e vai na casa dele. Isso quer dizer que você tá dando em horário de trabalho? , já falamos sobre isso, não se come a carne onde se ganha o pão!
— ! — Minhas bochechas queimaram, e ela logo apontou para elas.
— Ó, tá toda vermelha. Quem te viu, quem te vê, hein, . Descobriu vocação pra ser piranha?
— Vai se fuder, ! Eu não to pegando ele! — Ri, revirando os olhos. Ela não tinha mudado mesmo.
— Deus te ouça, amiga.
— E — continuei, ignorando o comentário — ele não me chamou pra um encontro amanhã, me chamou pra ficar de babá das crianças que a gente resgatou.
— Que crianças?
Expliquei resumidamente a história de Hayato e Suki e como eu e Shoto estávamos compartilhando o cuidado deles desde o resgate.
— Oh meu deus, coitados. E vocês ainda não tem nem pista sobre a família deles?
Balancei a cabeça.
— Tenho quase certeza que os pais estão mortos, e o Hayato disse que o pai tinha a mesma Individualidade que ele, mas isso é tudo o que a gente conseguiu descobrir.
— E enquanto isso vocês estão responsáveis por eles.
— Mais ou menos. Tecnicamente é só o Shoto, sabe como funcionam essas coisas de guarda, mas ele não tinha a menor ideia de como lidar com crianças.
— E você não conseguiu deixar quieto, né?
Sorri e dei de ombros.
— Você me conhece. Eu me apeguei àqueles dois antes do resgate.
— E ao guardião deles? — Provocou uma última vez, me arrancando uma risada e um revirar de olhos.
— Se fosse outro momento, — respondi, lhe lançando um olhar cheio de significado, — eu não vou mentir e dizer que acharia ruim. Maaaaas…
— Ai , aproveita. Do jeito que o mundo tá, um homem bonito desses, e rico do jeito que deve ser ainda? Vai dar, mulher. Se fuder um pouco do jeito divertido.
Ri alto, lhe lançando o dedo do meio. Eu nem havia notado o quanto senti a falta desses momentos de brincadeiras descontraídas.
🟥🔥❄️⬜️
12 de janeiro
Shoto’s POV
Abri a porta cansado. O “evento” ao qual eu não pude faltar era um jantar em homenagem ao meu aniversário. Midoriya e Ashido não deixavam que nenhum de nós passasse sem comemoração, dando um jeito de celebrar todos os anos. Era principalmente um jeito de comemorar que, mesmo com tudo o que havíamos passado e todos os riscos que ainda corríamos, estávamos todos vivos. Eu tinha tentado convencê-los a deixar passar o meu esse ano, por conta das crianças, mas todos tinham se recusado. Até meus irmãos já tinham sido envolvidos, então eu realmente não tive como escapar. Não me leve a mal, eu adorava eles, só estava preocupado com Hayato e Suki. Eles tinham se escondido no quarto no dia em que Fuyumi viera trazer comida para nós, só saindo quando tinham certeza de que ela tinha ido embora, eu não podia apresentá-los a tantas pessoas novas de uma vez.
Pelo menos agora eles estavam avisados que eu não poderia ficar saindo, pelo menos até essa situação estar resolvida. Não seria justo ficar fazendo ficar de babá o tempo todo, ainda mais se ela se recusasse a receber por isso.
Tirei os sapatos e o casaco, deixando-os na entrada, e estranhei as luzes estarem todas apagadas. A bolsa de ainda estava no sofá da sala e seus sapatos perto da porta, o que me dizia que ela não tinha ido embora, mas nem ela nem as crianças estavam à vista.
— ? — Chamei cuidadosamente, mas também não obtive resposta, o que começou a me preocupar. Será que tinha acontecido alguma coisa enquanto eu estava fora?
Continuei vagarosamente avançando, entrando na cozinha para deixar a comida que Bakugo havia mandado na geladeira quando algo na bancada chamou a minha atenção. Indo verificar, encontrei um bolo com as palavras “Feliz aniversário”. Era claramente um bolo caseiro, e, à exceção das palavras, o acabamento parecia levemente bagunçado, como se tivesse sido feito por alguém que não tinha muita habilidade.
Deixando aquilo de lado, fui até o corredor dos quartos, onde finalmente entendi o silêncio e a escuridão: Suki dormia dentro de seu berço, abraçada em seu bichinho de pelúcia, e, na cama ao lado, Hayato estava deitado com a cabeça no colo de uma também adormecida.
Ela estava toda torta. Parecia que estivera sentada, mas acabou escorregando um pouco pela parede, onde sua cabeça estava apoiada, os cabelos escondendo parte de seu rosto. Uma das mãos repousava nos cabelos de Hayato, e o outro braço estava caído ao lado dele em uma posição que não parecia muito confortável.
Sabendo que ele tinha dificuldade para dormir, me perguntei se ela teria deitado com ele por conta disso, e por um momento fiquei em dúvida se deveria acordá-la. Balancei a cabeça em seguida, me abaixando. Já era tarde e ela provavelmente queria voltar pro seu hotel. Apoiei uma mão de leve em seu ombro.
— ? ? — Minha voz mal passava de um sussurro, não querendo acordar Hayato.
Ela estremeceu quase imperceptivelmente.
— Hum… — seus cílios tremularam antes de ela piscar algumas vezes, abrindo os olhos e focando em mim. — Shoto…? Ah!
— Shhh. — Apontei para Hayato e ela pareceu entender, se calando. Me afastei para que ela pudesse levantar, e delicadamente tirou o menino de cima de si antes de deslizar para fora da cama.
Ela andou até o berço para dar uma última olhada em Suki antes de sairmos do aposento.
Acendi a luz da sala a tempo de vê-la passando as mãos pelo cabelo em uma tentativa de deixá-lo menos bagunçado.
— Que horas são?
— Meia noite e meia. Desculpa, eu tentei sair cedo, mas eles se empolgam um pouco. — Franzi o cenho de leve.
— Nesse caso, com meia hora de atraso, feliz aniversário. — Parei, surpreso. Eu não havia dito que era meu aniversário. — Era esse o evento que você não podia faltar, né?
— Era. Como você…?
— Eu tava com uma amiga quando você ligou ontem. Não sei se ela pesquisou você ou se viu por acaso em algum lugar, mas ela me falou umas horas atrás. — Ela deu de ombros, as bochechas ficando levemente coradas, o que ressaltou suas sardas. — As crianças queriam ficar acordadas pra te dar parabéns depois que descobriram, mas achei que ia ficar muito tarde. E realmente, os dois apagaram faz tempo.
— É, acho que acabei não mencionando com eles também. — Admiti, esfregando a nuca. — Pra falar a verdade, não me importo muito com comemorações.
— Ah, não. Não ouse dizer isso pra eles. O Hayato ficou empolgado pra fazer um bolo pra você, e foi a primeira vez que ele se empolgou com qualquer coisa desde o resgate.
— Então é daí que surgiu aquele bolo?
— É, e por tudo que é mais sagrado faz cara de surpresa de manhã e finge que gostou. Eu juro que tá direitinho o bolo, apesar de ter deixado os dois fazerem a maior parte.
Inclinei a cabeça em confusão.
— Mas eu gostei. Hayato se animou mesmo?
Ela assentiu, um pequeno sorriso tomando seus lábios.
— Sim. Ele gosta bastante de você. No outro dia ficou todo preocupado, achou que eu tava sugerindo que eles fossem morar comigo.
Pisquei algumas vezes, absorvendo a informação. Aquela possibilidade nem havia passado pela minha cabeça, mas faria todo o sentido. tinha mais disponibilidade que eu, conhecia os dois há mais tempo e realmente sabia cuidar de crianças, não precisava ficar pedindo ajuda para descobrir o que fazer o tempo todo, como eu.
— Você estava? Quer que eles morem com você?
Ela se girou para me encarar, claramente surpresa com a pergunta. Seus olhos se fixaram em meu rosto, parecendo tentar analisar o que eu achava daquilo, antes de responder com certa hesitação:
— Não, eu não… Olha, eu não quero tirar eles daqui. — Balançou a cabeça. — Nunca vou poder dar pra eles todo esse espaço, mas, mais que isso, com você eles estão seguros, e se sentem seguros. Eu to morando em um quarto de hotel, Shoto. Claro que eu adoraria passar mais tempo com eles, e eu não teria problema nenhum em ficar com a guarda provisória deles se você não tivesse se oferecido, mas eles estão bem aqui com você, e isso pra mim é o mais importante. O que eu disse pro Hayato foi que, quando eu tiver uma casa, quero que seja um lugar que eles gostem, que eles possam ir me visitar. A gente nem sabe ainda o que vai acontecer com eles, se eles têm familiares vivos, se vão ser colocados pra adoção… — desviou o olhar nessa última parte, seu tom mudando de forma sutil. Ela suspirou então, continuando: — Eu to tentando focar no presente deles, porque é o que dá pra fazer. E no presente o melhor pra eles é continuar morando com você, então…
— Será que é? Na maior parte do tempo, eu não tenho ideia do que to fazendo. E não sei até quando vou poder continuar trabalhando só de casa. — Admiti. Eu me questionava aquilo todos os dias. Não era só que eu não sabia as necessidades de uma criança, eu também não tinha tido o que se pode chamar de bons exemplos de paternidade na vida. A última coisa que eu queria era acabar causando mais traumas aos dois.
— Eu não sou nenhuma especialista, mas a maioria dos pais e mães de primeira viagem não têm ideia do que estão fazendo na maior parte do tempo. Você tá se saindo muito bem, e isso fica claro na sua preocupação com eles e no carinho que eles têm por você. — Garantiu, me oferecendo um sorriso. Minhas preocupações não foram embora, mas foi tranquilizador saber que ela achava que eu estava fazendo um bom trabalho. — E de resto, bom… vamos focar no presente deles e ir resolvendo os problemas conforme aparecerem, que tal?
Assenti. Soava como uma boa estratégia.
Parecendo satisfeita com a nossa conversa, pegou sua bolsa e começou a se dirigir para a porta. Parei ao seu lado enquanto ela calçava os sapatos, esfregando a nuca, suas palavras de antes ainda ressoando em minha mente.
— Pode… — Pigarreei. — Pode vir vê-los. Quando quiser. É só aparecer.
Ela ergueu os olhos ao ouvir minha voz e sustentei seu olhar.
— Quê?
— Você disse que queria passar mais tempo com as crianças. Quando quiser visitá-los, pode vir. Eles ficam felizes quando você vem.
Suas bochechas se tingiram de vermelho outra vez e ela desviou o olhar.
— Olha que eu venho mesmo, hein?
— Mas é pra vir — respondi confuso. Por que eu estaria chamando se não fosse pra ela vir?
Ela soltou um risinho de canto após ver minha expressão.
— Obrigada por convidar. Vou vir sim.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
7 de fevereiro
’s POV
Àquela altura eu já não me surpreendia mais quando meu celular tocava e era Shoto ligando, embora agora a foto não fosse mais uma que eu havia pego na internet, e sim uma dele com as crianças que eu havia tirado em um dos dias que fui visitá-los. Sorri amarelo para o corretor que estava me mostrando o apartamento.
— Você pode me dar licença um minuto? Eu preciso atender.
— Claro, sem problemas.
— Obrigada. — Entrei em um dos quartos pelos quais havíamos acabado de passar antes de atender. — Diga.
— Você tá ocupada, ?
Suspirei. Ele não tinha protestado meu pedido pra me chamar pelo apelido, e vinha me chamando pelo primeiro nome, mas parecia que esquecia toda hora.
— , Shoto. Já falamos sobre isso. E mais ou menos, eu tava conhecendo um apartamento e depois tenho uma reunião com a Beifong. Por quê?
— Ah, será que você consegue me ajudar por telefone então? A Suki não para de chorar e eu não sei mais o que fazer. — Ele parou por um momento. — De novo. Já tentei a chupeta de gelo, mas ela não quis, e não tá esfregando a boca, então não acho que sejam mais dentes.
Franzi o cenho, preocupada.
— Você já tentou as outras coisas?
— Já, e também medi a temperatura dela. Não está com febre.
Ajeitei o cabelo atrás da orelha, mordendo o lábio e tentando fazer uma lista mental do que poderia ser. Quando meu silêncio se alongou, acabei ouvindo a voz de Hayato do outro lado.
— Você também? O que você tá sentindo? — perguntou-lhe Shoto preocupado.
— O que foi?
Alguns segundos se passaram em que não obtive resposta, apenas pude ouvir a conversa abafada dos dois do outro lado.
— Hayato disse que está com dor de barriga.
— Hum… — Passei uma mão pelo cabelo, pensando. Eu não queria mandá-los pro médico se não fosse absolutamente necessário. — Será que é a mesma coisa? Vê se a Suki tá com a barriguinha inchada ou se ela se incomoda se você mexer na barriga dela.
Houve um silêncio enquanto Shoto provavelmente fazia o que eu havia dito, e logo pude ouvir os protestos de Suki.
— Desculpa, pequena. Ela se incomoda, com certeza. — Não pude deixar de sorrir. Shoto tinha desenvolvido esse hábito de chamar Suki de “pequena” nas primeiras semanas, era adorável.
— Ok. O que você deu pra eles comerem hoje? Algo diferente, alguma comida forte…?
— Nós almoçamos em casa, comemos umas coisas que o Bakugo mandou. — Ele parou por um momento, parecendo refletir. Ouvi Hayato fazer algum comentário. — Você achou apimentado?
— Pode ter sido isso. Tem gente que não se sente muito bem com pimenta, ainda mais se não tá acostumado a comer. E as crianças não estão.
— E o que eu faço?
— Comidas leves. Macarrão sem muitos molhos ou temperos, purê de batata, gohan, torrada ou pão… evita dar fritura ou derivados de leite pra eles. São coisas simples de fazer, mas posso te mandar algumas receitas. A Suki deve estar com um pouco de cólica também, bebês têm cólica por qualquer coisa. Se você conseguir fazer sua mão funcionar como uma bolsa de água quente, deve ajudar.
— Comidas leves com pouco tempero e sem leite, e calor na barriga da Suki. Entendi. — Seu tom parecia mais aliviado, por mais sutil que a diferença fosse. Shoto não era uma das pessoas mais expressivas do mundo, mas eu estava rapidamente aprendendo a lê-lo. — E não preciso levá-los ao médico?
— Só se eles vomitarem muito ou continuarem se sentindo muito mal amanhã. Ah, e mantém os dois hidratados.
Ele soltou um som de concordância.
— E eu achei seu casaco. Tava no meio dos bichos de pelúcia.
— Nossa, como foi parar lá? Bom, não importa. Obrigada por encontrar. Da próxima vez que eu for aí eu pego. — Vi o corretor me aguardando na porta do quarto e senti minhas bochechas se aquecerem. — Eu preciso ir, mas vai me falando como eles estão, ok?
— Claro. Obrigado mais uma vez.
— Hey, eles são minha responsabilidade também. Não precisa agradecer.
— Precisa sim.
Revirei os olhos, sorrindo e desistindo de discutir aquilo com ele.
— Tá, a gente se fala depois.
— Tchau .
— Tchau Shoto.
— Desculpe interromper.
— Não, tá tudo bem. Já estávamos acabando mesmo.
— Seu namorado está sozinho com os filhos de vocês? — Parei na mesma hora, arregalando os olhos.
— Quê? Não, não, ele não é meu namorado. E as crianças não são nossos filhos. — Balancei a cabeça enfaticamente. De onde aquele cara tinha tirado que éramos um casal? — Somos só amigos, e as crianças estão só passando um tempo com a gente.
— Oh, perdão. Eu acabei ouvindo parte da conversa e assumi… bom, não importa. Podemos continuar?
— Claro.
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[N/A: gente, só pra ninguém se perder, quando as falas estiverem em negrito é pq os personagens tão falando português, ok? Em diálogos q forem inteiros na mesma língua não vai ter essa diferenciação, só quando tá misturado, q é pra deixar claro que parte das pessoas presentes não ta entendendo o q ta sendo dito]
8 de março
’s POV
— ? Seu telefone tá tocando. — Hayato chamou, apontando para o aparelho em cima da mesa.
— Consegue ver quem é, meu amor? — pedi, ajeitando Suki no meu quadril e guardando as últimas roupas dela no armário. O menino ficou alguns segundos em silêncio antes de responder.
— É o seu irmão com o gato preto. — Soltei uma risada de leve, olhando pra ele por cima do ombro.
— Pode atender pra mim? Só preciso terminar aqui.
Hayato não respondeu, mas ouvi o celular parar de tocar.
— Hey, ta… hum? — A voz do meu irmão soou confusa ao ver que não era eu na câmera. — ?
Virei a tempo de ver Hayato timidamente acenando com uma mão enquanto segurava o telefone com a outra e depois apontando para mim, virando o aparelho pra que Liam me visse. Acenei com a mão que segurava um pijama, rindo.
— Já te atendo, Li, só me dá um minuto.
Liam não falava muito japonês além de frases básicas como “bom dia”, “por favor” ou “obrigado”, e Hayato não falava nenhuma língua além de japonês – embora eu estivesse começando a ensiná-lo algumas palavras em português –, o que tornava uma conversa entre os dois praticamente impossível. Mesmo assim, meu irmão estava começando a arranjar tempo para aprender um pouquinho mais e ele se esforçava para se entender com Hayato dentro do possível.
Não consegui conter o sorriso, um quentinho no coração, ao ouvir meu irmão perguntando “Neko*?” e Hayato soltando um tímido “sim” em português, seguido pelo jovem do outro lado do mundo chamando o nome da gata de estimação, uma vez normalmente e uma segunda em tom exasperado. A risadinha tímida de Hayato com o que quer que o animal estivesse fazendo diante da câmera foi um presente inesperado.
*Neko significa gato em japonês
Ele estava melhor a cada dia. Três meses depois do resgate, ele e Suki já não tinham marcas físicas visíveis de seu tempo em cativeiro além de serem um pouco menores do que a média para as idades deles. Ela já tinha vários dentes, já balbuciava pedaços de várias palavras e começava a alcançar o estágio de desenvolvimento em que deveria estar, brincando e explorando o tempo todo, engatinhando pela casa inteira – e deixando Shoto e eu um pouco malucos. Hayato ainda estava longe de estar bem, mas cada dia que passava o aproximava mais disso. Ele já brincava sem que a iniciativa precisasse partir de Suki, falava um pouco mais, demonstrava interesse em algumas coisas, como desenhar ou cozinhar, e já não abominava interações com pessoas além de mim e Shoto, desde que elas fossem virtuais e com pessoas em que ele sabia que nós confiávamos – o que era ótimo, porque tínhamos conseguido que ele começasse a fazer terapia, mesmo que virtualmente –, mas seus sorrisos e risadas ainda eram raros.
Engolindo o nó de emoção na garganta, consegui terminar de guardar as roupas e fui até eles.
— To! — Suki exclamou risonha ao ver Lena se esticando no balcão da cozinha e quase derrubando uma tigela.
— Gata dissimulada, fazendo graça pras crianças como se não estivesse causando dois segundos atrás. — Resmungou Liam em português do outro lado e eu ri.
— Liam. — Hayato chamou e meu irmão virou a câmera de volta para seu rosto, sorrindo ao me ver. O menino acenou para ele antes de me entregar o telefone, ainda inseguro com a pronúncia da palavra “tchau”.
— E ai?
— Achei que fosse te pegar no hotel. — Vendo a menina em meus braços, ele sorriu, acenando para ela. — Oi Suki!
— Ii! — Ela respondeu, estendendo uma das mãozinhas para o celular. — To?
— O Shoto precisou fazer patrulhamento hoje e eu tava de home office, então vim ficar com eles. — Assisti enquanto ele pegava a gata no colo, colocando-a frente à câmera para atender o pedido de Suki. Liam ergueu uma sobrancelha para mim, a expressão cheia de escárnio.
— Ah, claro. Como se você precisasse de motivo pra ir aí. ), você ta aí todos os dias.
— Não… Não é todo dia, seu exagerado. — Protestei, vendo-o rolar os olhos.
— , pelo amor de deus, até a vovósabe que é mais fácil achar você aí na casa do Shoto com as crianças do que em qualquer outro lugar.
— Nossa, não precisa falar assim também — resmunguei, sentindo as bochechas esquentarem. Ele apenas riu da minha cara.
— Não é ruim, é só que você praticamente mora aí com eles.
— Seu irmão tem razão. — Soou a voz do meu pai um segundo antes de ele aparecer na tela e foi minha vez de revirar os olhos.
— Que isso, complô? — Mas fui ignorada em favor de Suki, para quem meu pai abriu um sorriso enorme.
— Oi! Dá oi pro tio?
Ela virou os olhos verdes pra mim como se para confirmar e eu apenas suspirei, contendo o sorriso.
— Ele é meu pai, princesa, lembra? Ele tá dando oi. Pai, já te falei que a Suki não entende uma palavra que você diz. — Sentei no chão ainda com ela no colo. Após a minha tradução, ela balançou uma das mãos gorduchinhas para ele, rindo das caretas que ele fazia.
— Pode não entender, mas ela gosta do tio, olha como ela tá rindo! — Balancei a cabeça, rindo de leve. Meus pais e Liam tinham sido virtualmente apresentados às crianças recentemente, já que eles normalmente me ligavam por vídeo e, apesar dos meus protestos, eles tinham razão, eu passava mais tempo aqui do que em qualquer outro lugar, até mesmo no meu quarto no hotel. E considerando o quanto minha família amava crianças, eu frequentemente ficava em segundo plano nas ligações, mas não me importava. Ele voltou os olhos para mim então. — Como você ta? Já encontrou algum lugar?
— To bem, mas ainda não achei nada. Os últimos lugares eram muito pequenos pro quanto custavam, ou muito longe da sede da agência.
— , me ajuda? — Hayato pediu timidamente, apontando para a estante. Tínhamos comprado vários livros infantis e de atividades para eles, e talvez eu tivesse me empolgado um pouco e abarrotado o móvel, o que às vezes tornava difícil tirar alguma coisa dali.
— Claro, meu amor. — Entreguei o celular para ele e terminei de puxar o livro que ele apontou.
— Oi Hayato! É Hayato, né? — Ouvi meu pai cumprimentar animadamente e depois baixar a voz para confirmar com Liam.
— Oi. — Ele respondeu, devolvendo o celular pra mim em seguida e saindo do alcance da câmera com seu livro. — Obrigado.
— De nada.
— Ele é tímido demais.
— Pai, ele não é tímido. Ele tá se recuperando do trauma de tudo que ele passou. Já expliquei isso. O fato de ele aparecer quando vocês ligam e realmente responder quando falam com ele em vez de se esconder atrás de mim já é um avanço sem tamanho.
— Tá bom, tá bom, desculpa. — Ele ergueu as mãos e eu e Liam trocamos um olhar de resignação, sabendo que não adiantava falar nada. — Você já pensou em procurar um apartamento aí perto?
— Eu nunca mostrei o lado de fora da casa aqui, né? Nem tem apartamento nesse bairro, só casas enormes e completamente fora do meu orçamento. — Ri. Suki se inclinou para frente e a soltei, deixando-a engatinhar até o irmão para brincar com ele. — O pai do Shoto foi o herói número 2 do Japão por anos, depois o número 1 quando o All Might se aposentou, e agora o próprio Shoto tá sempre no TOP 10. O menino é rico desde pequeno, eu ganho bem, mas não tenho condições de ver um lugar aqui perto.
— Bom, você não pode morar naquele hotel pra sempre. Achei que o ponto de ir pro Japão fosse você arranjar estabilidade. — Suspirei, contendo o impulso de virar os olhos. Sim, estabilidade era parte do motivo da minha mudança, mas longe de ser a maior, e não era como se eu não estivesse tentando arranjar um apartamento.
— Eu sei, pai. Já disse que estou procurando, e pode ficar tranquilo que eu vou achar o lugar certo e aviso quando isso acontecer, tá?
— Espero que sim. — E com isso ele saiu do campo da câmera.
Liam me ofereceu um olhar compreensivo e eu apenas balancei uma mão, querendo deixar pra lá.
— Já saiu do castigo burocrático?
— Mais ou menos. Ainda tem muita coisa dessa última missão pra resolver, mas agora tenho feito alguns patrulhamentos pontuais. E a Beifong também me colocou pra treinar alguns dos outros agentes, então pelo menos não to mais fazendo só papelada.
— Ah, pelo menos. — Ele deu uma pausa, sua expressão se tornando preocupada por um momento. — E como você tá? Considerando…
— Um dia de cada vez. Tem momentos mais difíceis que outros. — A mudança no meu tom de voz fez Hayato imediatamente erguer os olhos pra mim, preocupado, e Suki engatinhou até mim, pondo a mãozinha na minha bochecha. Virei o rosto para lhe dar um beijo, arrancando uma risada, e sorri para eles. — Cuidar dessas coisinhas lindas ajuda bastante. Tá tudo bem, Hayato, não precisa se preocupar, tá?
Ele hesitou por um segundo antes de assentir e voltar ao que estava fazendo.
— Que bom. Eu fico preocupado com você lidando com isso aí, longe de todo mundo. — Abri a boca para responder, mas ele foi mais rápido. — Eu sei, eu sei porque você foi e que você precisava disso. Mas me preocupo mesmo assim.
— Você é o melhor irmão de todos. Mas pode ficar tranquilo que eu to bem.
— Sabe que eu não consigo não me preocupar, foi você que me ensinou a ser assim.
— Isso você podia não ter aprendido, né? — Ri e Liam deu de ombros.
— Agora preciso ir. A gente se fala amanhã, tá? — Assenti. — Tchau Hayato, tchau Suki.
— Tchau Liam.
— Ii! — Suki acenou animadamente em resposta, e eu sorri, acompanhando-a antes de terminar a ligação.
🟥🔥❄️⬜️
11 de março
Shoto’s POV
Tirei os sapatos e o casaco, suspirando cansado. O trabalho tinha se estendido muito mais do que deveria por conta de um grande acidente de trânsito entre dois ônibus e um caminhão que aconteceu nos últimos minutos do meu patrulhamento, deixando vários feridos e causando risco de explosão. Como resultado, meu turno, que deveria ter acabado às 22h, tinha se estendido até quase 3h da manhã.
Mais uma vez, as luzes estavam todas apagadas conforme avancei pela casa, e agradeci mentalmente pela disponibilidade de para ficar com as crianças ao ver os sapatos dela na entrada. Eu me sentia mal de ficar usando-a como babá, especialmente porque ela continuava se recusando a aceitar meu dinheiro, mas também não tinha idéia do que faria se ela não pudesse me ajudar a cuidar deles. Por mais que a melhora dos dois fosse óbvia, eles ainda tinham muito medo de encontrar outras pessoas que não fôssemos nós.
— ? — Chamei baixinho ao abrir a porta do quarto das crianças.
A imagem que encontrei foi uma que já havia se tornado comum: Suki dormia pacificamente em seu berço abraçada ao ouriço de pelúcia que ganhou de Natal e Hayato estava em sua cama de alguma forma agarrado a uma também adormecida.
— Posso te fazer uma pergunta? — pedi em uma das muitas noites que cheguei depois de colocar as crianças na cama. Ela estava colocando os sapatos para ir embora.
— Claro, o que foi?
— Por que você sempre acaba dormindo na cama com o Hayato?
— Ah. — Ela desviou o olhar, suas bochechas ficando levemente vermelhas. — Eu não sei se com você também é assim, mas ele só… não dorme. Se eu não deitar com ele. É o medo de acontecer alguma coisa, eu acho. Eu não pensei muito da primeira vez que eu fiz, foi só no automático. — Inclinei minha cabeça, sem entender do que ela estava falando, e suspirou, ficando em pé outra vez. Mesmo assim, ela precisava olhar para cima por conta da nossa diferença de altura. — Quando meu irmão tinha a idade do Hayato, a gente dormia no mesmo quarto, e eu deitava na cama junto com ele e ficava cantando ou contando histórias até ele dormir quando ele tinha pesadelos. O Hayato não quis dormir no seu aniversário, daí eu só tentei isso e deu certo. Mas eu dormir também não costuma ser de propósito.
— Você tá cansada. — Afirmei. — Eu consigo dar conta deles sozinho se-
— Shoto, cuidar das crianças não é o que me deixa cansada. Já falei várias vezes, eu venho porque gosto de ficar com eles.
Franzi o cenho. Ela podia gostar, mas não podia se exaurir por causa disso.
— Precisa descansar. — Ela sorriu, balançando a cabeça.
— Obrigada pela preocupação, de verdade, mas eu to bem. Sempre tive um pouco de insônia, não é nada demais.
Pensei em acordá-la para que ela voltasse para o hotel, mas a lembrança da nossa conversa me fez parar. precisava desse descanso. Era o mínimo que eu podia fazer por ela. Além disso, já era muito tarde, ela não conseguiria um táxi e eu não a faria voltar a pé no meio da madrugada.
Dando meia volta, deixei a porta aberta e atravessei o corredor para o quarto de hóspedes. Abri o armário, pegando travesseiros e cobertores e ajeitando na cama antes de retornar para o quarto das crianças.
Hayato tinha se movido enquanto eu estava fora, mas continuava dormindo. Ele agora estava apenas ao lado de , encostado no braço dela. Hum, isso facilita. Abaixei, passando um braço por baixo dos joelhos dela e o outro pelas suas costas, erguendo-a delicadamente para não acordar nem ela nem Hayato.
Segurei-a com cuidado contra mim, seu perfume invadindo meus sentidos quando ela se mexeu. Congelei, esperando pra ver se a tinha acordado, mas apenas se ajeitou em meus braços, deitando o rosto contra meu peito, os cabelos escondendo parte de suas feições. Respirei fundo e me encaminhei para o quarto de hóspedes, tentando fazer o mínimo possível de barulho.
Pousei-a na cama devagar e ela se ajeitou mais uma vez, sem acordar. Puxei um dos cobertores que havia pegado antes, cobrindo até os ombros, e ela soltou um suspiro. Seus cabelos estavam espalhados no travesseiro ao seu redor, mas algumas mechas ainda caiam sobre seu nariz e bochechas. Sem pensar, estiquei uma mão e corri os dedos de leve por seu rosto, tirando o cabelo do caminho em um carinho suave. Linda. Ela suspirou de novo e, notando o que eu estava fazendo, me afastei rapidamente, o cenho franzido.
Sai do quarto o mais rápido possível, fechando a porta e depois fazendo o mesmo com a porta das crianças.
Apoiei a testa na minha própria porta uma vez que estava no meu quarto, respirando fundo.
tinha passado a integrar minha vida nos últimos meses de uma maneira que eu nunca teria previsto. Após a aparição surpresa dela no Natal, começamos a nos falar quase todos os dias, depois ela começou a vir até a minha casa pelo menos uma vez por semana e agora eram raros os dias em que não nos víamos por pelo menos cinco minutos. E nesses poucos dias que ela não vinha, ficava óbvio que as crianças sentiam sua falta, mas… eu também sentia. Por mais breves que fossem, eu gostava das nossas conversas. Ver seu sorriso iluminava meu dia. A companhia dela era… fácil. Confortável. não se incomodava com minhas falhas de comunicação, na verdade parecia achá-las divertidas, e não usava isso contra mim.
Ainda assim, a sensação de estar com ela era diferente de estar com meus amigos. Eu não sabia apontar exatamente o que era. Do mesmo jeito, chegar em casa e vê-la com Hayato e Suki, ou passarmos o dia juntos nós quatro parecia tão certo. Como se devesse ser assim sempre. Como… como se fôssemos uma família.
O pensamento me atingiu quase como um soco. Família. Eu não tinha as melhores experiências ou lembranças de infância com uma família. Eu sabia o que deveria ser, e era a isso que os momentos com , Hayato e Suki se assemelhavam, não às minhas memórias.
Dei um passo para trás, piscando várias vezes. Midoriya. Ele vai saber entender o que ta passando na minha cabeça. Decidindo que precisava de ajuda, fiz uma nota mental de mandar uma mensagem para ele na manhã seguinte e achei melhor ir dormir logo. Antes que meus pensamentos se tornassem ainda mais confusos.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
’s POV
Lutei contra a consciência. O sono estava tão bom… acho que eu não dormia bem assim há quase um ano. Me afundei no travesseiro, não querendo acordar. Peraí, travesseiro? Meu cérebro finalmente começou a recapitular meus últimos momentos acordada.
Eu estava na casa de Shoto, ele ainda não tinha voltado do trabalho, eu tinha colocado Suki pra dormir e deitado com Hayato, que acabou dormindo no meu colo de novo. Pisquei repetidas vezes até conseguir manter os olhos abertos, certa de que eu não estava mais onde tinha caído no sono. Essa cama parecia grande demais e eu não sentia nenhuma criança deitada em cima de mim.
Quando consegui focar no ambiente ao meu redor, finalmente reconheci o quarto de hóspedes que ficava do outro lado do corredor, em frente ao quarto das crianças. Eu ainda usava as mesmas roupas de ontem. Será que… olhei ao redor, vendo o sol entrando pelas frestas da janela. Puta merda, já é de manhã! Cuidadosamente, me levantei e abri a porta.
De imediato pude ouvir Suki balbuciando animada e as vozes baixas de Shoto e Hayato conversando. A casa estava toda iluminada pelo sol, me dizendo que já devia ser tarde. Mais alguns passos e minha presença finalmente foi percebida, Suki acenando animada para mim e rindo. Vendo essa reação, Shoto virou na minha direção. Seus cabelos estavam bagunçados e ele ainda estava de pijama, e, quando sua expressão se suavizou em um sorriso para mim, meu coração quase parou. Deus realmente tem seus favoritos.
— Bom dia, .
Limpei a garganta, sabendo que minha voz estaria estranha.
— Bom… bom dia.
— Bom dia, . — Hayato disse, em seguida apontando para uma tigela com frutas cortadas na bancada. — A gente não sabia quando você ia acordar, mas eu fiz pra você.
Sorri para ele, me aproximando e pegando a comida antes de me sentar em um dos banquinhos. Agora eu conseguia ver o relógio do fogão, que apontava que já eram quase 11h30 da manhã. Eu precisava voltar para o hotel e tomar um banho, tinha uma reunião com um delegado às 14h e ainda estava com as roupas de ontem.
— Obrigada, meu amor. — Limpei a garganta mais uma vez antes de começar a comer. — Por que não me acordaram antes?
Shoto apenas deu de ombros e foi Hayato quem respondeu, andando até Suki em seguida.
— Shoto disse que você precisava descansar. — Levantei os olhos para o homem, arqueando uma sobrancelha, a minha verdadeira pergunta pairando no ar.
— Shoto. — Chamei baixinho quando ele não respondeu.
— Já era de madrugada quando eu cheguei. Não achei certo te fazer voltar para o hotel àquela hora.
— Eu caí no sono no quarto das crianças.
— Sim.
Ele não disse mais nada, e seu tom era tão casual quanto se estivéssemos conversando sobre a comida. Sua expressão também não entregava nada. Era óbvio que ele tinha me carregado e me colocado na cama, mas Shoto se recusou a dizer qualquer coisa a mais. Suspirei, sabendo que não adiantava tentar arrancar nada dele.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
18 de abril
’s POV
Respirei fundo, acordando com as lágrimas correndo pelo meu rosto. 1 ano. Hoje fazia um ano. A dor já não era mais a mesma de meses atrás, e a maioria dos dias era suportável; alguns dias eu até conseguia ficar feliz com as lembranças, mas hoje especificamente…
Senti um puxão no meu cobertor e logo em seguida mãozinhas apertando minhas bochechas. Abri os olhos, encontrando o sorriso desdentado de Suki bem na minha frente.
— Oi princesa. — Ofereci um sorriso cansado, minha voz saindo estranha por conta do choro. Naquele dia, mais do que o normal, eu precisava da distração, da luz que eram Hayato e Suki na minha vida.
Eu não havia explicado nada para Shoto, apenas me oferecido para ficar com eles ontem e “acidentalmente” ficado até muito tarde para ir embora. A essa altura, eu já tinha ficado tantas vezes que sempre tinha algumas roupas aqui.
— Ia! Oda! — exclamou, apertando meu rosto para me fazer sair da cama mais rápido. Traduzindo, ela estava dizendo “dia” e “acorda”, embora muitos dos sons ela ainda não conseguisse pronunciar. Soltei um riso leve, virando o rosto para mordiscar a palma da mão dela de levinho, lhe arrancando uma gargalhada.
— Tá bom, já acordei, Suki. Bom dia pra você também. — Ela bateu as mãos no colchão enquanto eu me sentava, tirando o cabelo do rosto, e então esticou os braços para mim, pedindo colo. — Eu e o Shoto estamos deixando você muito mal acostumada. — Comentei com carinho, pegando-a mesmo assim e indo até o banheiro escovar meus dentes.
Suki colocou as mãos no meu rosto outra vez, inclinando a cabeça em uma imitação perfeita de quando Shoto ficava confuso com algo, e franziu as sobrancelhas.
— Titi? — Triste. Respirei fundo, colocando-a sentada na pia e fazendo carinho no cabelo dela.
— Só um pouquinho, meu amor. Mas não precisa se preocupar comigo, ta? Eu vou ficar bem.
Ela não pareceu muito convencida, mas não pude fazer nada a respeito, escovando meus dentes e lavando o rosto, tentando disfarçar os olhos inchados. Torcendo para ninguém além de Suki notar meu estado, a peguei e fomos para a sala.
Lá, Hayato e Shoto estavam arrumando a mesa de café da manhã. Era um dos raros dias de folga de Shoto e, coincidentemente, também um dos meus. Eu não sabia se ele ia me convidar para passar o dia com eles, embora isso fosse bem frequente, mas esperava que sim. A última coisa que eu queria hoje era ficar sozinha com meus pensamentos.
— Bom dia, .
— Pequena, eu disse pra deixar a dormir. — Shoto franziu as sobrancelhas muito de leve, uma expressão que quase não estava lá, antes de virar para mim. — Bom dia.
— Bom dia — respondi somente, forçando um pequeno sorriso e me sentando.
O olhar heterocromático acompanhou meus movimentos, estudando meu rosto, mas ele não disse nada.
Comemos praticamente em silêncio, e os olhares que Shoto e Hayato trocaram repetidas vezes pela minha falta de animação em começar ou manter algum assunto não me passaram despercebidos.
— Por que não fazemos algo diferente hoje? — Sugeriu Shoto quando fiz menção de me trocar para ir embora.
— Diferente? — perguntou Hayato e ele assentiu.
— É seu dia de folga também, certo?
— É… — respondi, sem conseguir descobrir onde Shoto queria chegar.
— O dia tá bonito. Não dá pra ir até o parque, mas podemos fazer um piquenique no quintal e depois assistir alguns filmes. Se você puder ficar.
— Fica, . — Pediu Hayato, pegando uma das minhas mãos. Shoto também me observava com cuidado. Sorri, verdadeiramente dessa vez.
— Claro, meu amor. Fico sim. — Suki bateu palmas e baguncei o cabelo de Hayato com a mão livre. — Mas eu ainda preciso ir me trocar, eu to de pijama.
— Bo? — Suki pediu do corredor, engatinhando atrás de mim.
— Preciso ver se temos os ingredientes, princesa, mas podemos fazer um bolo sim.
— Pode ser aquela torta que o Liam mostrou?
— Ota!
Colocando a blusa rapidamente, abri a porta outra vez, tentando lembrar de qual torta Hayato estava falando.
— A de maçã? — Ele assentiu, me esperando em frente à porta do quarto de hóspedes. — Tem certeza? Ela é mais difícil.
— Tenho. Hoje dá tempo, não dá?
— Tempo dá… Shoto? — Chamei, vendo-o aparecer na ponta do corredor. — Tem maçã aí? Da normal e da verde.
— Tem um pouco. De quantas vocês precisam?
— Pelo menos umas 7 de cada.
— … Não temos tudo isso — respondeu após uma pausa. — Posso passar no mercado.
— Espera, Shoto. Tem que ver os outros ingredientes também. Né, ?
Listei os ingredientes da torta, que não eram muitos, e as quantidades de cada um e deixei que Hayato e Shoto verificassem o que faltava na cozinha enquanto eu terminava de me trocar.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
O dia acabou passando muito rápido, e sendo melhor do que eu poderia imaginar. Hayato insistiu que Shoto e Suki ajudassem a fazer a torta, o que honestamente foi um desastre e a cozinha virou um caos de farinha, açúcar e canela para todos os lados, mas foi engraçado e acabou arrancando gargalhadas de todos nós. Depois que limpamos toda a bagunça – inclusive das nossas roupas – as crianças quiseram brincar no quintal, onde realmente fizemos um piquenique na hora do almoço. E de tarde eles quiseram voltar para dentro e fazer “cinema”.
Eu ainda estava mais calada que o normal, mas eles fizeram um excelente trabalho me mantendo distraída o suficiente para que eu quase esquecesse que dia era. Lá pelo início da noite, durante um dos filmes, acabei deixando escapar algumas lágrimas silenciosas. Hayato, que estava com a cabeça deitada no meu ombro, notou, me abraçando apertado sem dizer nada. Abracei-o de volta.
Alguns minutos depois, tirei-o de cima de mim delicadamente, indo até o banheiro. Mesmo assim não foi difícil ouvir a voz indignada de Suki:
— Titi!
— Eu sei, pequena. — A voz preocupada de Shoto me alcançou antes que eu fechasse a porta. — Eu sei.
Respirei fundo, me sentindo culpada por estar lhes causando preocupação, o que só piorou meu choro. Merda.
Quando consegui me recompor e voltar para o sofá, nenhum deles disse nada a respeito, as crianças se aconchegando contra mim como eu fazia quando queria consolá-los.
Até o filme acabar, Hayato tinha pegado no sono no meu colo e Suki no colo de Shoto, e resolvemos que era hora de encerrar o dia dos dois, os pondo na cama.
— Bom, acho que é minha deixa.
— . — Voltei os olhos para Shoto, que balançou a cabeça. — . Aconteceu alguma coisa? — Suspirei. Eu tinha torcido para não precisar discutir o assunto, mas não tinha como escapar. — Se é algo com a sua família e você precisa ir pro Brasil, eu digo pra Beifong que te liberei.
Foi minha vez de balançar a cabeça.
— Não, tá tudo bem. Não aconteceu nada… novo. É só… — inspirei, entrelaçando meus dedos e olhando para o teto — hoje é uma data complicada.
Esperei que ele perguntasse, os olhos multicoloridos analisando meu rosto com cuidado, mas Shoto só assentiu.
— Não precisa ir embora. Janta aqui. — Ele parou, franzindo o cenho de leve. — Eu não vou me arriscar a cozinhar pra você, não quero te deixar mais triste. Mas posso pedir comida.
— Tem certeza? Hoje eu não vou ser uma companhia muito boa.
— Você é sempre uma companhia boa.
— Tá bom, eu fico. — Aceitei por fim. Eu não devia, mas a ideia de ir ficar sozinha no meu quarto de hotel não era nem um pouco atraente.
No fim, Shoto acabou pedindo soba e ficamos conversando por algumas horas. Não que ele fosse a pessoa mais falante do mundo, e eu também estava quieta, mas o silêncio com ele não era desconfortável. Não havia pressão para manter nenhum assunto, mas todos os que começávamos fluíam com facilidade. Ele também não perguntou em nenhum momento o porquê de eu estar mal, focando em me distrair. Foi… bem, foi exatamente o que eu estava precisando. Ele até conseguiu me fazer rir mais um pouco. Eu gostava da companhia dele. Nossa relação podia ser muito baseada nas necessidades das crianças, mas havíamos realmente desenvolvido uma amizade ao longo dos últimos meses, até porque nos víamos quase todos os dias e nos falávamos mesmo quando não estávamos juntos, e não só sobre Hayato e Suki ou trabalho.
— Ok, agora eu realmente devia ir embora. Daqui a pouco não tem mais nenhum táxi — falei, me preparando para levantar do sofá.
— Ou… — Shoto começou, mas parou, suas sobrancelhas baixando quase imperceptivelmente no que eu havia aprendido ser sua expressão pensativa.
— Ou…? — Encorajei.
— Ou você podia ficar.
— Shoto, eu não posso ficar dormindo aqui todo dia. — Virei os olhos, divertida, mas seu olhar era intenso e sério quando o encontrei, me pegando de surpresa.
— Por que não? — perguntou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Shoto… — balancei a cabeça, incrédula.
— Você ainda não achou um lugar. Está morando em um hotel. Vem pra cá na maior parte dos dias e frequentemente dorme aqui. — Apontou. — Seria mais fácil se você se mudasse pra cá.
— Você… você tá falando sério? — Ele inclinou a cabeça.
— Por que eu não estaria?
— Hum, porque não faz nem seis meses que a gente realmente se conhece.
— Não entendo o que o tempo tem a ver com isso. — Franzi o cenho, sem saber muito bem como reagir ou o que responder. Shoto podia ser uma pessoa extremamente literal às vezes. — Ia ser mais fácil pra todos nós. Eu, você, as crianças…
— Eu… Shoto, eu não posso aceitar.
— Claro que pode. Assim você também não precisa ficar pagando pela sua hospedagem ou preocupada de não encontrar um apartamento.
Mordi o lábio, pensativa. Ele tinha razão sobre a praticidade. E seria muito melhor para nós dois, por conta da preocupação com as crianças. Fora que a divisão do trabalho de cuidar deles ia ser melhor e mais organizada, e não precisaríamos ficar combinando toda vez. Mas…
— Dorme aqui, pensa na ideia e me responde amanhã. — Ofereceu e eu honestamente não consegui pensar em motivos para recusar, assentindo.
Seus lábios se repuxaram em um pequeno sorriso e ele apertou de leve uma das minhas mãos antes de se levantar.
A batida que meu coração pulou com isso foi honestamente inesperada.
🟥🔥❄️⬜️
23 de maio
Shoto’s POV
O som do noticiário preenchendo a sala de repente me pegou de surpresa.
— A Suki sentou no controle. — Explicou Hayato quando ergui o olhar da pia.
— Espera. — Pedi, franzindo o cenho. Ele ia desligar a TV de volta, mas a imagem na tela chamou minha atenção. “… de um vilão no distrito de Ginza aconteceu cerca de meia hora atrás. A explosão derrubou toda a rede elétrica da região, além de causar o desabamento de alguns edifícios e deixar muitos outros em condições precárias. Até o momento, não se sabe precisar o número exato de mortos e feridos. As equipes oficiais estão com dificuldade para acessar a área mais atingida por conta do risco de mais desabamentos, e os heróis que estavam mais próximos estão começando a chegar para auxiliar com o resgate.”
Ginza. la) estava em Ginza. E não havia respondido nem mandado nenhuma mensagem na última meia hora. Sentindo um pânico que há muitos anos não me dominava fechar minha garganta, peguei o celular.
Me diz que você não tá na área atingida.
18:44
— Pode desligar.
— É lá que a ia, não é? — perguntou Hayato, não desligando a TV e apenas baixando o volume. Não querendo preocupa-lo, balancei a cabeça.
— Não, ela não tá lá. Pode ficar tranquilo.
Ele me observou por alguns instantes antes de voltar ao que estava fazendo, mas não pareceu convencido. Eu mesmo não estava convencido, mas não podia considerar a ideia de estar entre os mortos.
Ela estava morando aqui havia um mês, e nesse tempo eu percebi que estava apaixonado por ela. Bom, na verdade foi o Midoriya quem percebeu, porque eu ainda era péssimo com essas coisas. Não que eu tivesse feito algo a respeito desse sentimento, porque eu gostava de como as coisas estavam, da nossa amizade, e não queria estragar isso – o que, considerando o desastre que eu ainda era em interações sociais, era uma possibilidade bem real. Mesmo assim, o pensamento de não tê-la mais na minha vida, de que ela poderia estar morta…
, por favor responde
18:50
Você tá bem?
18:57
Atende o telefone
19:00
Desesperado com a falta de resposta, busquei o rádio que eu deveria usar apenas enquanto patrulhava e rapidamente sintonizei na frequência de quem eu sabia ter mais chances de estar lá.
— Kaminari.
— Meu amigo Shoto! Você tá aqui em Ginza também? Achei que hoje era seu dia de ficar com seus pirralhos — respondeu a voz animada do outro lado. Passei uma mão pelo cabelo, tirando a franja do rosto enquanto olhava Hayato e Suki na sala. Ele me observava da minha posição no corredor com o cenho franzido, e tentei lhe oferecer um sorriso, mantendo a voz baixa para não ser ouvido.
— Eu estou com as crianças em casa.
— Ué, o que você tá fazendo no rádio então? Não aguentou de saudades de mim?
— Na verdade, eu preciso de um favor.
— Pode falar. — O tom brincalhão deu lugar a uma voz séria.
— Eu preciso que você ache uma pessoa que estava aí.
— Eu não tô exatamente ajudando com essa parte, mas, se você tá preocupado assim, posso procurar, cara. Descreve a pessoa pra mim. — Pausei, sem saber como responder. estava lá a trabalho, averiguando alguma coisa que ela tinha se recusado a explicar, então certamente não estaria com a própria aparência.
— Eu… não sei. — Ouvindo um palavrão seguido de uma risada do outro lado, tentei me explicar: — A Individualidade dela é mudar a aparência. Eu não sei nem se ela estava como homem ou mulher.
— Isso não ajuda. Civil, policial ou heroína?
— Heroína. Ela tava trabalhando aí perto, mas infiltrada.
— Aah, é a sua agente secreta?
— Isso.
— Qual o nome dela?
— . — Ouvi uma risada de outro lado.
— Não, Shoto, o nome de heroína dela.
— Ah. — Fazia tanto tempo que eu tinha me acostumado a usar o nome dela que nem me passou pela cabeça. — Moonlight. — O nome também me lembrou outro fato que poderia ajudar a identificá-la. — Ela tem uma tatuagem. É uma lua crescente nas costas. As vezes ela mantém quando muda de aparência. — Respirando fundo, adicionei, minha voz tremendo um pouco: — Me avisa assim que você tiver notícias, por favor.
— Aviso sim.
E com isso eu encerrei a ligação. Por favor, por favor, esteja bem. Você precisa estar bem.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
’s POV
Vilão estupido estragou a bosta de uma patrulha que era pra ser FÁCIL! Reclamei mentalmente, externando apenas um grunhido. Ao ver que todas as pessoas tinham passado, soltei o portão, deixando que batesse. Eu conseguia sentir os cortes nos meus dedos, mas não era nada preocupante.
— Todo mundo bem? — perguntei para o grupo, analisando-os com mais calma.
Eles tinham ficado presos dentro de um restaurante quando a explosão aconteceu e parte do edifício desmoronou, mas não pareciam estar no grupo de feridos mais graves. Obtive respostas positivas e suspirei, aliviada. Agora eu conseguia ver as equipes de resgate e os heróis profissionais circulando pela região, o que me deixava bem mais tranquila. Claro, eu também era uma heroína profissional, mas as pessoas não sabiam disso e nem deviam saber, não era pra eu atuar em resgates nem nada do tipo.
Sabendo que agora a situação estava sob controle, me permiti respirar fundo e acompanhar esse novo grupo até a equipe de primeiros socorros. Meu celular estava com pouca bateria quando tudo começou, devia ter acabado a essa altura, mas eu não estava particularmente preocupada.
Apesar de estar sentada perto da equipe médica, aguardando para ser atendida – já que meus ferimentos mal passavam de arranhões –, eu estava de olho ao redor para o caso de precisarem de ajuda. A situação, pelo que eu podia ver, não era tão ruim quanto parecia a princípio. Pelos comentários dos médicos, além do vilão, havia apenas mais dois mortos – o que, considerando quão movimentada a região era e o nível de destruição, era praticamente um milagre.
— Moonlight? Moonlight? — Ouvi após mais algum tempo. Franzi o cenho. Eu não conhecia aquela voz, mas a pessoa definitivamente estava me chamando.
Levantei, me escondendo atrás da ambulância, onde estava fora de vista, e esperei ele passar, puxando-o pelo colarinho e pondo-o contra a parede, aproveitando que no momento eu era um homem de quase dois metros de altura.
— Uou, calma, cara!
— Por que você tá por aí chamando Moonlight? — Sibilei. — E como você conhece esse nome?
Os olhos amarelos estudaram meu rosto por vários segundos, a expressão se tornando séria. Quando ameacei empurrá-lo outra vez contra a parede, o homem ergueu ambas as mãos em rendição.
— Calma aí, mulher, meu deus. Parece o Bakugo. — Bakugo. Bakugo era amigo do Shoto e um profissional também. Não relaxei, mas esperei que ele falasse. — Você que é a do Shoto, né? Ele mentiu pra mim, disse que você era fofa. — Choramingou. — Ele me mandou te procurar. Eu sou o Chargebolt.
Meus dedos afrouxaram e o soltei, um pouco em choque, mas reconhecendo o nome do herói, já tinha ouvido na TV. Shoto tinha mandado um amigo me procurar?
— Ele… como você…? — Respirei fundo, balançando a cabeça. — Desculpa a reação.
— Tá tudo bem. É mesmo, né? — Assenti. — Ele disse que não dava pra te descrever, pra eu te procurar pelo nome ou pela tatuagem.
— Desculpa mesmo. Na minha área nunca é bom sinal quando alguém sai chamando meu nome por aí, ainda mais um desconhecido. Eu me assustei.
Ele balançou uma das mãos.
— Não esquenta. Você tá bem? Se machucou ou algo assim?
— Hum? Não, só uns arranhões, mas nada demais. Eu tentei ajudar enquanto vocês não conseguiam acesso à área, mas tava longe da explosão inicial.
— Então por favor tranquiliza aquela bengala doce ambulante, ele tá achando que você morreu ou sei lá.
Balancei a cabeça, rindo de leve com o apelido.
— Não precisa exagerar também.
— Não, é sério. Ele invadiu o rádio do resgate pra falar comigo e implorar pra eu te achar. Que não tava conseguindo falar com você. E ele veio pedir ajuda pra mim, isso não acontece nunca, foi só porque eu era quem tava mais perto.
Arregalei os olhos, sentindo as bochechas esquentarem.
— A bateria do meu celular acabou durante a confusão. Eu…
— Eu aviso ele. Mas vai pra casa antes que ele tente aparecer aqui e me transformar num picolé.
— Tá. E… obrigada. — Ele piscou, sorrindo pra mim.
— Pode falar, eu sou o cara.
Ri de leve, acenando e indo embora.
Já era tarde da noite quando cheguei em casa – ainda era estranho pensar na casa de Shoto como minha também, mas ao mesmo tempo tinha sido uma transição tão… natural depois dos últimos meses, que também era estranho pensar em qualquer outro lugar como casa. A ideia de lar agora vinha acompanhada de imagens de Shoto, Hayato e Suki. Abri a porta, ainda com as roupas de antes, mas já de volta em minha própria aparência e mal tive tempo de tirar os sapatos antes de ser agarrada.
Por meio segundo, comecei a me transformar novamente para escapar do ataque, mas senti o perfume de Shoto invadir minhas narinas, sua voz sussurrando meu nome num tom aliviado. Ele estava… me abraçando. Seu rosto estava enterrado no meu cabelo, seus braços ao redor do meu tronco, prendendo os meus, e nossa diferença de altura fazia com que meu rosto estivesse pressionado contra seu peito. Hesitante, retribui o abraço, ouvindo seu coração acelerado e sentindo o meu entrar em descompasso.
— Tá tudo bem. Não aconteceu nada comigo. — Garanti, sentindo o nó de choro na garganta.
Eu realmente não tinha estado em perigo real em nenhum momento, e não é como se não fosse acostumada e treinada pra isso. Há muitos anos que situações de quase morte não me faziam mais chorar quando a adrenalina baixava. Não, o que estava me fazendo chorar era o abraço, a preocupação que Shoto tinha ficado mesmo que não houvesse acontecido nada.
Corri uma das mãos para cima e para baixo nas suas costas e o senti estreitar os braços e soltar um suspiro trêmulo.
— Você não respondia.
— A bateria do celular acabou. Desculpa deixar você preocupado.
Respirando fundo, ele finalmente se afastou. Ignorei firmemente a vozinha na minha cabeça insistindo para puxá-lo de volta para os meus braços.
Seus olhos finalmente encontraram os meus e meu coração errou uma batida. Shoto não era a pessoa mais expressiva do mundo na maior parte do tempo. Pela convivência e através da nossa amizade, eu tinha aprendido a ver as sutis mudanças, mas não estava preparada para a intensidade que me encarava, estudando meu rosto e depois meu estado geral.
— O sangue não é meu. — Garanti quando Shoto deu um passo para trás, o cenho franzido para a minha blusa. — Eu ajudei um pessoal que ficou preso antes das autoridades conseguirem aparecer.
— Hum — disse somente, me puxando com delicadeza pela mão até a cozinha. Lá, ele me fez sentar em um dos bancos e tirou a caixa de primeiros socorros do armário, pegando gaze e álcool e sentando de frente pra mim. — Você não recebeu atendimento médico.
— São só uns arranhões, eles tinham casos piores pra se preocupar.
Shoto estreitou os olhos, como se quisesse discordar do que eu tinha dito, mas não abriu a boca, apenas se pondo a limpar meus ferimentos. Ele começou pelas mãos, passando a gaze onde os cortes eram visíveis com todo o cuidado do mundo, como se eu fosse uma flor rara que não podia ser amassada. Quando essa mesma atenção passou pro meu rosto, cuidando de um corte na minha testa, e as borboletas no meu estômago resolveram ganhar vida, foi que eu percebi o problema em que tinha me metido. Engoli em seco, desviando o olhar e tentando permanecer quieta.
— Pronto — murmurou, seus olhos encontrando os meus.
Engoli em seco, sorrindo pra ele e me levantando.
— Obrigada. Você não precisava ter…
— Claro que precisava. Você é… — Shoto desviou o olhar por um segundo, depois me ofereceu um mínimo sorriso. — Eu me importo com você.
— Eu… eu vou tomar um banho. — Precisava me afastar dele, tipo, nesse segundo. Pelo menos até controlar meus pensamentos e batimentos cardíacos outra vez. Shoto inclinou a cabeça com minha reação abrupta.
— Tá bom. Só… — Quando eu já estava quase dentro do quarto, estaquei.
— ? — A voz de Hayato estava sonolenta e chorosa e ele esfregava os olhos parado na porta do quarto. Do meu quarto.
— Oi, meu amor. — respondi, me agachando para ficar na altura dele e voltando olhos arregalados para Shoto.
— Eu não fui o único que ficou preocupado. Ele só dormiu quando deixei ele ficar na sua cama. — Explicou, esfregando a nuca em seguida. — Tentei dizer que você tava bem, mas…
Mas Shoto era um péssimo mentiroso, apesar de ser pouco expressivo, e Hayato prestava extrema atenção a tudo. Abracei o menino, acariciando seus cabelos.
— Eu to aqui, meu amor. Pode ficar tranquilo. — Ele passou os bracinhos ao redor do meu pescoço, fungando e me segurando apertado, como se tivesse medo que eu fosse desaparecer. — Eu preciso tomar um banho primeiro, mas quer dormir aqui comigo? — Hayato assentiu e o peguei no colo, entrando no quarto.
— Boa noite, .
Ouvi a voz baixa de Shoto vindo do corredor e me virei apenas para assentir antes de fechar a porta com o pé.
Eu não podia estar realmente me apaixonando por Shoto.
— Agora sério, eu não entendi o seu desespero. — Comentou quando finalmente conseguiu parar de rir da minha cara. Ergui o rosto da mesa para fazer uma careta para ela.
— Que tal essa ser a única coisa que eu não podia ter deixado acontecer?!
— , você se apaixonou, não é o fim do mundo.
— É sim. — Resmunguei, apoiando a testa na mesa outra vez.
Fazia aproximadamente uma semana que eu tinha percebido a mudança nos meus sentimentos e talvez eu estivesse surtando um pouco. tinha conseguido o emprego no fim das contas – remoto, mas ela precisava vir uma vez a cada seis meses, mais ou menos, o que permitia que continuasse a cuidar de sua mãe lá no Brasil e ainda aproveitasse o Japão. Ela me avisou que estaria aqui e resolvemos passear pelo distrito comercial, então eu decidi que era um bom momento pra pedir conselhos, mas até agora ela não tinha sido de muita ajuda.
— Para com isso, guria! Você era pra ser a romântica de nós duas, que palhaçada é essa?
— O problema não é se apaixonar em si, , sabe disso. O problema é… bom, todo o resto da situação. — Suspirei.
— Você tá com medo que aconteça com o Shoto igual…
— Não! — Interrompi, erguendo a cabeça. Então franzi o cenho. — Sim. Talvez. Não sei. — Corri uma mão pelo rosto. — Honestamente essa nem é a minha preocupação principal. Óbvio que eu me preocupo, mas já me preocupava com ele quando eu só sentia amizade.
— Então qual é o problema?
— Eu… bom, pra começar, tem as crianças.
— O que tem eles?
— Eles não têm mais ninguém. Eu e o Shoto somos as únicas pessoas em quem eles realmente confiam, com quem eles se sentem seguros.
— Mas e a família deles? Vocês tavam procurando ainda, não tavam? — Balancei a cabeça.
— Eu consegui descobrir os pais deles. Foram mortos em um incêndio que destruiu a maior parte da casa onde moravam, mas parecia um vazamento de gás na época e a polícia não foi tão a fundo. Nem a Individualidade de manipulação de vetores do pai deles foi o suficiente pra se salvarem. Mas isso a gente já tinha quase certeza. — Passei o polegar pelo copo do meu chá. Não fazia muito tempo que eu havia conseguido essas informações, e também quase não tinha conseguido, graças ao ataque em Ginza. — A Sra. Beifong colocou a polícia atrás de familiares mais distantes, mas até agora não achamos ninguém. E nem parece que vamos achar, pelo andar da carruagem. Sem falar que ainda não achamos a puta que era responsável pela tortura do Hayato e nem conseguimos prender o chefão, então eles não estão seguros.
— Tá, mas o que você se apaixonar pelo Shoto tem a ver com isso?
— Tem a ver que, se eu me declarar e as coisas ficarem estranhas, ou se eu não conseguir mais lidar com a convivência normalmente, eles vão ser os mais prejudicados! Eu não posso fazer isso com os dois.
— Em algum momento você cogitou a possibilidade dele corresponder os seus sentimentos? — arqueou uma sobrancelha e eu desviei o olhar, as bochechas queimando. Eu achava bem improvável, pra ser honesta.
— Na chance remota de você ter razão. Se as coisas entre nós dois derem errado, vai sobrar pras crianças de qualquer forma, e eu me recuso a arriscar isso. Eles já sofreram demais.
Balancei a cabeça em negação e ela revirou os olhos para mim.
— …
— Não. Eu não posso arriscar. Eu não consigo! — Engoli o nó se formando na minha garganta. — Seria lindo se desse certo. Se isso fosse um conto de fadas e eu tivesse certeza de um felizes para sempre. Mas eu sei melhor que ninguém que não existe essa certeza e felizes pra sempre só existem mesmo na ficção. Eu adoraria me jogar, mas não dá. Eu nem achei que era possível me apaixonar de novo tão cedo e tem fatores demais. Muitos corações que podem se partir nessa brincadeira.
Ela apenas suspirou, parando de insistir.
Eu entendia a preocupação dela com a minha mudança de opinião. tinha razão, de nós duas eu sempre tinha sido a mais romântica, aquela que de fato acreditava no amor, acreditava que as coisas podiam dar certo. Uma parte de mim ainda acreditava nisso. Eu só não conseguia mais ser tão otimista quanto antes. As rachaduras ainda cicatrizando no meu coração não me deixavam esquecer o quanto as coisas podiam dar errado, mesmo que parecesse um conto de fadas e um felizes para sempre.
Depois disso, mudamos de assunto e não fizemos mais nenhum comentário a respeito. Eu tinha uma reunião com o investigador responsável por recuperar o que fosse possível do passado das crianças, então não pude ficar até muito mais tarde, me despedindo pouco depois.
Quando cheguei à agência, ele já estava me esperando em uma das muitas salas de reunião.
— Boa tarde.
— Boa tarde, Moonlight-san.
— Não te deixei esperando muito tempo, deixei? — Ele balançou a cabeça.
— Não se preocupe, eu cheguei há menos de cinco minutos. Podemos começar?
— Claro. O que você descobriu? — Sentamos à mesa e ele me ofereceu uma pasta.
— Não sobrou muita coisa, como você já sabe. O incêndio causou uma destruição tão grande que mal foi possível recuperar os corpos na época, e nem teríamos voltado a investigar se vocês não tivessem descoberto essa história.
Assenti.
— Uma das especialidades daquelas pessoas é dar um jeito de sumir com os rastros do que fazem. Foi um acidente, um suicídio, a pessoa resolveu deixar a vida para trás… nunca foi um crime, nunca tem testemunha, nunca tem provas.
— Essa parte eu vou deixar pra vocês. Mas conseguimos recuperar isso. — Dentro da pasta, havia cópias de algumas fotos com as bordas queimadas, além do inquérito com todas as informações da investigação original e uma lista com os poucos itens recuperados que haviam sido mantidos no último ano. Na última folha, uma lista curta de nomes com a maioria deles seguidos por X. — Essas pessoas foram familiares que conseguimos rastrear, mas os que encontramos já estão mortos. Idade avançada ou doenças pré-existentes.
— E os nomes que faltam, vocês estão rastreando ainda, certo?
— Isso. Mas nossas expectativas estão baixas.
Suspirei ao ver uma foto de Hayato e Suki com os pais, passando os dedos com delicadeza pelos rostos deles. Eles tinham os olhos do pai e os cabelos da mãe, e Hayato trazia um sorriso largo e sem preocupações. Engoli o nó na minha garganta, segurando as lágrimas.
— Essas fotos…
— Havia um álbum guardado no fundo de um armário, sobreviveu por um milagre. Sei que está em contato com o guardião temporário deles. Se quiser levar as originais, as imagens não estão catalogadas como provas. — Pisquei, erguendo o olhar para ele.
— Como…?
— Eu recebi o relatório completo do dia do resgate e Beifong-san me disse que eles foram colocados em um tipo de custódia protetiva enquanto a situação não melhorava. E que você é a única em comunicação com eles. — Quando apenas continuei a encará-lo em silêncio, ele completou, desviando o olhar: — Eu sou pai. Não sei o que essas crianças passaram entre o incêndio e o resgate, mas a situação deles me corta o coração. Se devolver essas fotos pra eles trouxer algum conforto, é o mínimo que eu posso fazer.
Assenti, respirando fundo.
— Obrigada.
— Já decidiram o que fazer se chegarmos ao fim dessa lista? Se eles realmente estiverem sozinhos no mundo. Eu me perguntava aquilo todos os dias, e me pegava mais preocupada a cada dia que passava e essa possibilidade se tornava mais real.
— Até que todas as prisões tenham sido feitas, a situação se mantém como está. Apenas depois disso vamos começar a movimentar as crianças. — Ele assentiu. Limpei a garganta. — E quanto aos históricos médicos dos dois, algum avanço?
— Infelizmente sem a guarda oficial das crianças, mesmo que provisória, essas informações ficam fora do meu alcance.
— Tudo bem.
— O que eu consegui foram as certidões de nascimento dos dois. — Ele me entregou uma nova pasta com as duas folhas e assenti, guardando-a na bolsa.
Passamos mais algum tempo debatendo o andamento das investigações, mas logo finalizamos a reunião.
— Ah, se… se você puder trazer as fotos deles. — Pigarreei. — Se não for causar nenhum problema, é claro. Mas na próxima reunião, se puder…
— Claro, Moonlight-san. Trarei sim.
Me curvei em despedida e também agradecimento e observei o investigador ir embora.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
13 de junho
’s POV
— O que você acharia de mudar de agência?
— Mudar de agência? — Repeti levemente em choque. Shoto estava me demitindo?
Eu estava preparando o café da manhã, Hayato e Suki milagrosamente ainda dormindo, e só Shoto estava comigo na cozinha.
— É. Ter algo mais… estável. Que você não precisaria passar meses infiltrada de cada vez.
Soltei cuidadosamente a faca e a maçã que estava cortando e me virei para ele.
— O que exatamente você tá sugerindo? — Shoto era uma pessoa bem literal, eu havia aprendido que frequentemente era só mais fácil perguntar do que ele estava falando.
— Estou te oferecendo um emprego na minha agência principal. Não como espiã.
Franzi o cenho.
— Shoto, eu não sou treinada pra isso. Não sei ser uma heroína profissional comum, e ser conhecida pelo público meio que estraga o que eu consigo fazer.
Ele balançou a cabeça.
— Eu sei. Não seria pra você fazer o que eu faço, por exemplo. Eu tava pensando mais em algo similar ao que tem feito esse ano, missões pontuais de reconhecimento, patrulhas e situações com reféns. São… — ele esfregou a nuca, parecendo envergonhado. — São coisas que eu não consigo fazer, já que é tão fácil me reconhecer. Nossas habilidades de campo se complementam e nós nos comunicamos bem, então achei que poderíamos trabalhar como parceiros.
— Não! — Exclamei imediatamente, meu coração saltando de pânico. Shoto inclinou a cabeça, claramente surpreso pela minha reação. — Shoto, isso… não, eu não posso! Por que você pensaria…? — Balancei a cabeça furiosamente, dando um passo para trás e esbarrando em uma tigela, que caiu no chão com um barulho alto, se estilhaçando.
— … — ele chamou, a voz magoada e preocupada, quando me abaixei para recolher os cacos.
— Não! — Respondi apenas, sem conseguir encará-lo, minha voz saindo esganiçada pelo nó em minha garganta que eu tentava impedir de se transformar em lágrimas. — Só… não, ta legal?! Essa ideia… não dá, de onde você foi tirar- Merda!
Minhas mãos tremiam tanto que acabei me cortando com um dos pedaços da porcelana, minha palma começando imediatamente a arder. Apertei o ferimento para estancar o sangue.
— Deixa eu te ajudar com isso. Vou pegar um curativo.
— Não quero ajuda, Shoto! Só me deixa, eu mesma faço o curativo.
Eu sabia, no fundo, que estava sendo extremamente grossa com ele, mas não conseguia evitar. Eu só precisava colocar o máximo possível de distância entre nós dois naquele momento, me levantando sem olhá-lo e seguindo imediatamente para o meu quarto, onde bati a porta.
Lavei o corte, fazendo um curativo rápido, me vesti e saí sem dizer mais nada, mas não consegui não ver a cara de filhote perdido que Shoto fazia para mim. Andei sem rumo até me encontrar longe o suficiente da casa e sozinha, me sentei no primeiro lugar que encontrei e finalmente deixei as lágrimas virem.
🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔
Eu não voltei para casa até de noite. Tecnicamente eu deveria trabalhar de casa, mas não queria voltar e encarar Shoto, então fui até a agência e me enterrei no trabalho o dia todo. De noite, com a cabeça mais fria e o arrependimento martelando em minha mente, cheguei a tempo de dar o jantar para Suki e Hayato, que estavam confusos com a minha ausência. Shoto estava lá, mas estava em seu modo silencioso, falando apenas o mínimo necessário, e evitando meus olhos.
Assim que voltei para a sala após colocar as crianças para dormir, eu sabia que não podia mais adiar. Shoto merecia uma explicação, e respirei fundo.
— Shoto. A gente pode conversar?
Ele se virou, as mãos ainda dentro da pia.
— Claro. — Ele deixou o restante da louça para trás, secando as mãos no pano de prato para me encarar direito.
— Eu te devo desculpas. Pela minha… reação… mais cedo.
— Não precisa. Se você não quer trabalhar junto, não tem problema. — Balancei a cabeça.
— Mesmo que fosse só isso, eu não tinha o direito de falar com você daquele jeito. É só que… você tocou numa ferida e eu meio que surtei.
— Eu não sabia. Desculpa.
— Não, eu sei, você não fez de propósito. Eu… — suspirei, tirando o cabelo do rosto. — Você nunca soube o que aconteceu na minha última missão antes de me contratar, soube?
Shoto franziu o cenho levemente, balançando a cabeça.
— Sua antiga agência só disse que você costumava trabalhar com outra heroína, e você nunca disse nada. Não achei que havia nada de especial.
Mordi o lábio, engolindo o nó na minha garganta.
— É… é que ainda é difícil falar sobre o que aconteceu. Eu evito o assunto mesmo. Meu irmão sabe, e ele explicou pros meus amigos que sabiam pra me poupar de falar disso na época, mas só.
— , se não se sente bem, não precisa me falar. — Garantiu, a expressão preocupada. Balancei a cabeça outra vez, colocando uma chaleira pra esquentar, peguei duas canecas e puxei uma cadeira.
— Não, eu… quero falar. Acho que agora tô pronta pra isso. Mesmo que seja difícil, acho que continuar fingindo que não aconteceu vai acabar doendo mais. — Ele se sentou na cadeira à minha frente.
— O que aconteceu?
— Essa outra heroína, a que era minha parceira. O nome dela era . — Engoli em seco, sentindo o nó na garganta. Eu não dizia o nome dela em voz alta há meses. Baixei o olhar para minhas mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Ela já trabalhava na agência quando eu fui contratada. Era da equipe de elite que eu passei a fazer parte depois, mas também treinava os novatos às vezes. A gente se deu bem desde o meu primeiro dia. — Sorri, sentindo os olhos encherem de lágrimas. — Ela que me incentivou e me ajudou a ser promovida. Me treinou mais, me ajudou a melhorar o espanhol e todas as habilidades que eu precisava. Nessa equipe a gente sempre trabalhava em dupla, pra ter algum suporte quando não pudéssemos recorrer à agência. E como eu era novata, nós tínhamos ficado amigas e trabalhávamos bem juntas, nos transformaram em um time quando me promoveram.
— Então… isso foi bom? Você gostava de trabalhar com ela — concluiu, soando confuso.
— Eu adorava — respondi, finalmente erguendo os olhos para ele. Seu olhar acompanhou a primeira lágrima escorrendo pela minha bochecha e Shoto franziu o cenho. Balancei a cabeça, limpando o rosto e levantando pra verificar se a água tinha fervido. — A … ela era brincalhona, tinha um coração do tamanho do mundo, tava sempre disposta a me ouvir, mesmo que ela não entendesse uma palavra do que eu tava falando. Não tinha um dia que ela não desse um jeito de me fazer rir. Ela não fazia amizade tão fácil, mas quando decidia que gostava de alguém, ela ia estar lá pela pessoa independente do que fosse. me deixava maluca às vezes com as manias dela, principalmente de chegar sorrateira pra me dar um susto. — Ri de leve, servindo o chá nas duas canecas. — Nossas primeiras missões foram um sucesso. E a gente se aproximou bastante. E aí, no meio do caminho, a gente fez algo muito perigoso pra um espião. — Me sentei de volta, sentindo mais lágrimas tomarem o lugar daquela primeira.
— O que vocês fizeram?
— Nós… nós… — o soluço cortou minha fala, e precisei cobrir a boca, meu choro se tornando violento e me impedindo de continuar.
Não era pra ser assim. Não era pra essas lembranças serem tão dolorosas, era pra serem felizes. Foi um momento tão feliz. Shoto cobriu minha mão com a dele, apertando de leve. Ele não disse nada por vários minutos, apenas me deixando chorar o que eu precisava, mas não soltou minha mão, me oferecendo apoio silencioso. E um guardanapo quando finalmente me controlei o suficiente pra olhar pra ele de novo.
— Desculpa.
Shoto balançou a cabeça.
— Não. Não peça desculpas por isso, . — Funguei, assentindo. — Tem certeza que quer continuar?
— T-tenho. — Respirei fundo, tentando manter os soluços no mínimo, mas ainda sentindo as lágrimas correrem, por mais que eu as secasse com a mão livre. — Eu e a … nós nos ap-paixonamos.
— Vocês…? — Assenti.
— A gente começou a namorar. E aí fomos mandadas na nossa terceira missão grande. O plano era se infiltrar numa organização de tráfico de drogas, e precisávamos fingir que não nos conhecíamos. Até aí tudo certo. O problema… — sentindo que ia voltar a soluçar, parei, tomando alguns goles do meu chá. Quando vi que conseguiria contar até o fim, continuei: — o problema é que nós não éramos as únicas infiltradas lá. Tinha um cara de uma gangue rival deles ou algo assim. E o chefão tava desconfiado. Só que ele começou a desconfiar de nós duas. E eu não consigo deixar de achar que foi algo que eu fiz ou falei, que…
Shoto se levantou, pegando mais guardanapos e depois segurando minha mão outra vez. Ele claramente não sabia o que fazer com uma pessoa chorando tanto, mas estava tentando do melhor jeito que podia. Vários minutos se passaram antes que eu conseguisse falar de novo.
— Ele não achou que fôssemos heroínas, e nem tinha nenhuma prova. Mas pegaram a um dia. Ela entendeu o que tava acontecendo, fomos treinadas pra essa possibilidade. Ossos do ofício. — Dei de ombros e soltei uma risada sem humor algum que se transformou em mais soluços. — Ela… ela sabia que não iam d-deixar ela ir embora. Mas não era só isso. Eles queriam que ela me en-entregasse. — Balancei a cabeça. — Mas ela se recusou. Eu não sei o que ela disse, mas convenceu eles de que eu não trabalhava pra mais ninguém. Ela assumiu toda a culpa. Só que o estrago já tava feito, eles já tinham certeza que nós tínhamos alguma ligação, e essas pessoas gostam de fazer exemplos. — Limpei as lágrimas com raiva, mesmo que outras as substituíssem imediatamente. — Não foram atrás de mim, mas eu percebi que tinha algo errado e fui procurar. E eles me deixaram encontrar eles. — Fechei os olhos, a cena rodando em minha cabeça. Meu peito se apertou como se eu estivesse revivendo aquele momento e ficou difícil respirar. — Eu ch-cheguei t-tarde demais. A … ela morreu nos meus braços, Shoto. Eles machucaram ela de um jeito que sabiam que ela ia morrer, e que ia ser devagar. Eu não con-consegui salvá-la. Eu assisti ela sofrendo até morrer e não pude fazer nad-
Minha voz deu lugar a mais soluços, e não consegui continuar. Eu sentia como se meu coração estivesse sendo arrancado do peito mais uma vez, minhas mãos tremendo violentamente como se estivessem novamente cobertas com o sangue de .
— Ta tudo bem, . — Ela cobriu minha bochecha com a mão, sua pele já gelada contra a minha, e acariciou meu rosto com o polegar. — Obrigada por me fazer feliz.
Shoto segurou minha mão com firmeza e apertei de volta, usando a presença dele para me ancorar na realidade, no agora, completamente destruída pelas lembranças. A outra mão eu usava para inutilmente secar as lágrimas que não paravam de correr. Sim, eu precisava contar aquela história. Eu estava pronta para falar disso, mas nunca ia parar de doer. Sempre haveria uma parte do meu coração que pertenceria a e que tinha morrido com ela naquele dia.
— Era essa a “data complicada” de alguns meses atrás, não era? — perguntou ele após vários minutos em que o único som que se ouvia na cozinha eram os meus prantos. — Quando eu te convidei pra morar aqui. Tinha a ver com a .
Assenti, fungando. Ele agora acariciava as costas da minha mão com o polegar, algo incomum, mas um conforto que eu estava precisando naquele momento.
— Foi o aniversário de um ano da morte dela. Eu não tinha… desde que ela morreu, eu me mantive ocupada. Não tive tempo de realmente…
— Por isso você aceitou o emprego.
— Eu precisava me afastar de tudo que me lembrava que a não tava mais aqui. Continuar naquela agência, voltar pro Brasil… ia doer demais. Pelo menos na época. E vocês me ofereceram uma distração imediata com a operação do Takahashi. Mais importante, eu ia sozinha. — Respirei fundo, retornando ao motivo original de estarmos tendo aquela conversa. — Eu não posso… me ver responsável pela segurança de alguém em campo de novo. Não consigo. Especialmente alguém com quem eu me importo. — Alguém por quem eu estou apaixonada, adicionei mentalmente. — É muito arriscado, ainda mais porque eu não estaria com a cabeça fria e focada do jeito que deveria.
— Eu sinto muito que você tenha passado por isso. Só posso imaginar o quanto doeu.
— Obrigada. E me desculpa de novo. Não só por hoje cedo, mas por todas as vezes que eu… bom, que você teve que lidar com isso sem nem saber o que estava acontecendo. — Fiz uma pausa, franzindo o cenho de leve. — Inclusive quando fiz aquele estardalhaço sobre o resgate das crianças.
Ele balançou a cabeça.
— Não precisa pedir desculpas por nada disso. Especialmente pelas crianças, você estava certa. E no fim acabou sendo o melhor pra todos. Posso ter me oferecido para cuidar deles por impulso, mas não consigo mais imaginar a casa sem os dois morando aqui.
Ri de leve, a cabeça doendo por conta de todo o choro.
— É, acho que nem eu.
Bocejei, emocionalmente exausta depois daquilo tudo, e ele me ofereceu um pequeno sorriso, apertando minha mão uma última vez.
— Vai descansar. Eu termino de arrumar as coisas.
Pensei em protestar, mas eu de fato estava muito cansada, então só assenti.
Na manhã seguinte, pela primeira vez em muito tempo, acordei tarde. Na minha mesa de cabeceira havia um copo de suco, uma aspirina e um bilhete na caligrafia elegante de Shoto:
Convenci as crianças a te deixarem dormir.
Descanse o quanto precisar, eu me viro com eles.
Obrigado por confiar em mim.
Shoto
🟥🔥❄️⬜️
5 de julho
Shoto’s POV
Me peguei encarando a foto de no meu celular com um sorriso. Eu tinha acabado de desligar o telefone, tinha ligado para ela para ver se estava tudo bem com ela e com as crianças e dar boa noite para eles. Eu estava em um evento para arrecadar fundos do qual eu não tinha conseguido escapar, mas a realidade é que eu queria estar em casa, ajudando-a a colocar Suki e Hayato para dormir.
— Ooh, ta falando com a sua espiã? — perguntou Ashido em um tom estranho, parando ao meu lado. Assim como eu, vários heróis estavam presentes, o que significava a maioria dos meus amigos e antigos colegas de sala.
— Sim, ela estava pondo as crianças pra dormir.
— E esse sorrisinho aí? Você e ela, né? — Inclinei a cabeça em dúvida, sem entender do que ela estava falando.
— O que tem eu e a ?
— Essa é exatamente a pergunta que a gente queria fazer. — Kaminari se juntou à conversa, jogando um braço sobre meus ombros e balançando as sobrancelhas pra mim.
— Não to entendendo.
— Eles querem saber o que tá rolando entre vocês dois, mano. — Kirishima bateu de leve no meu ombro, explicando. — Sabe, romanticamente e tal.
— Por que vocês achariam que tem algo “rolando” entre eu e ?
— Ah Shoto, não seja assim. Vocês estão sempre juntos. Você chamou ela pra morar com você.
— Sim, por causa das crianças. E porque ela ainda estava morando em um hotel. Era mais fácil.
— Hum. E aquele surto no dia de Ginza?
— O ataque em Ginza? — Ashido perguntou e Kaminari assentiu. — O que isso tem a ver?
— Alguém invadiu o rádio do resgate em desespero pra me mandar procurar a espiã dele porque não conseguia falar com ela. Eu quase apanhei, não foi nada legal.
Desviei o olhar. Sim, eu realmente tinha feito aquilo, tinha ficado muito preocupado e não estava atendendo nem respondendo as minhas mensagens.
— Eu estava preocupado — respondi apenas.
— Engraçado que com a gente essa preocupação toda não acontece né.
— É diferente. — Franzi o cenho de leve.
— Claro que é diferente. Agora por que você não abre o jogo pra gente? — Ashido se inclinou na minha direção, cruzando os braços.
Suspirei exasperado. Eu realmente não entendia o que eles queriam que eu dissesse.
— Que jogo? Não tem nada para dizer. e eu não temos nada além de amizade.
— Aham, claro. — Jiro se juntou ao assunto, virando os olhos. — Então ela foi morar com você, vocês estão basicamente criando dois filhos juntos, você se dá ao trabalho de realmente dizer para as pessoas que não está interessado nelas desde que a se mudou, fala dela o tempo todo… e não tem nada rolando entre vocês dois? — Ela arqueou as sobrancelhas para mim. Antes que eu pudesse abrir a boca para responder, Bakugo apareceu, resolvendo se manifestar também.
— Mentira do caralho. Ou o Meio a Meio é mais burro do que eu achei que fosse.
— Mano, não precisa ser tão rude! — Kirishima intercedeu, mas me ofereceu um olhar quase que se desculpando em seguida. — Ele tá exagerando, mas não tá errado.
— Por que eu seria burro por não ter nada com a ?
— Shoto, querido, você claramente quer ter algo com ela, só você não percebe. — Ashido respondeu exasperada. Franzi o cenho mais ainda.
— Percebo sim. Do que vocês tão falando? — Cinco pares de olhos chocados se viraram na minha direção imediatamente.
— Mas você disse que não tem nada entre vocês! — Kaminari exclamou.
— Porque não tem. Mas eu nunca disse que não sentia nada por ela.
— Peraí peraí peraí. — Jiro balançou a cabeça, erguendo uma mão para me parar. — Como assim você não falou isso pra gente? Como assim você percebeu que gosta dela e a gente não ficou sabendo? Você tinha que ter contado, isso é um acontecimento!
— Eu falei pro Midoriya que tava apaixonado pela . Ele que me ajudou a entender isso.
— Oi, Deku! — Bakugo gritou, e me virei para ver Midoriya passando não muito longe de nós.
Ele virou um olhar assustado na nossa direção, se desculpando com a pessoa com quem conversava antes de se juntar a nós. Sem lhe dar tempo para perguntar o que estava havendo, Kaminari exclamou:
— Cara, como que o Todoroki te diz que ta apaixonado e você não conta isso pra gente?!
— Hum… E-eu… Eu não sabia que era… — ele começou a gaguejar, as mãos erguidas.
Suspirei.
— Por que vocês estão reagindo assim? Não é nada demais. E como vocês mesmos disseram, todo mundo já percebeu. — Ergui ambas as sobrancelhas.
— Porque é você! — Ashido disse como se aquilo explicasse tudo. Inclinei a cabeça, sem entender nada .
— O que tem de especial eu estar apaixonado por alguém?
— Mano… não me leva a mal, mas é que você não é exatamente uma pessoa aberta sobre sentimentos. Ou uma pessoa que entenda eles muito bem.
— Sim, eu sei disso. Continuo não entendendo o que tem de especial.
— T-Todoroki-kun, — Midoriya resolveu se unir a Kirishima no esforço de me explicar — é um pouco surpreendente, sim. Você nunca se apaixonou antes, não de verdade, e percebeu praticamente sozinho. Eu só te ajudei a dar um nome pro que você descreveu.
Pisquei algumas vezes, encarando meus amigos em silêncio. Ainda não me parecia motivo o suficiente para todo esse alvoroço que eles estavam fazendo, mas os pontos dos dois até que faziam sentido. Mas me apaixonar por tinha sido algo tão fácil, tão natural, que nunca me ocorreu que eles pudessem ficar chocados.
— Tá, vamos fingir por um minuto que isso não é uma notícia bombástica. — Ashido virou-se para mim. — Você já se declarou pra ela?
— Não. E antes que vocês digam alguma coisa, — lancei-lhes um olhar duro. Eu podia ser péssimo com esses assuntos, mas conhecia meus amigos há uma década, eu sabia como eles costumavam se comportar, e eles já estavam todos começando a protestar. — eu também não vou dizer nada. Gosto de como as coisas estão.
— Mas e se ela também gostar de você?! Você não sabe e não quer nem tentar descobrir? — Kaminari exclamou e balancei minha cabeça.
— Pra começar, eu não acho nem que a se interesse por homens.
— Ela disse isso especificamente? — perguntou Jiro, e eu neguei.
— Ela só mencionou uma ex-namorada.
— Tá, isso não quer dizer que necessariamente ela não se interesse por homens. Ela pode ser bi.
— Eu sei. Mas, como vocês mesmos disseram, eu sou um desastre pra falar de sentimentos.
— Eu não disse…
— Não disse, mas é a verdade. — Interrompi Kirishima. — E eu não vou arriscar estragar tudo, especialmente porque agora eu tenho as crianças pra me preocupar, e eles precisam de nós dois.
— Mas Todoroki…
— Não. Não adianta insistir.
— Continuo achando que você é um idiota de merda. — Bakugo pontuou e eu apenas dei de ombros.
🟥🔥❄️⬜️
20 de julho
— Shoto. — chamou. Ela tinha chegado do trabalho não fazia muito tempo, com uma expressão estranha.
Ainda era o meio da tarde, mas minha mãe tinha vindo brincar com as crianças de manhã e os dois tinham ficado bem cansados, então estavam tirando um cochilo. Tínhamos apresentado minha mãe e meus irmãos às crianças fazia alguns dias, assim que Hayato disse se sentir pronto para a experiência. Ele e Suki tinham aceitado tudo muito bem, apesar de terem ficado bem tímidos a princípio, então agora os três podiam frequentar a minha casa novamente, o que ajudava quando eu e precisávamos do auxílio de uma terceira pessoa.
— O que houve?
— Sabe o investigador que eu e a Beifong colocamos atrás dos parentes das crianças? — Assenti. — Ele terminou de procurar. — Ela balançou a cabeça, decepcionada. — Não sobrou ninguém.
— Ninguém? Pensei que havia uma lista de pessoas.
— É, bom… era uma lista bem curta desde o começo, e a única pessoa que ainda tá viva se recusou a cuidar deles. Disse que mal tem condições de se manter, quanto mais sustentar duas crianças pequenas.
Franzi o cenho, preocupado. Há pouco tempo havíamos finalmente concluído o caso Takahashi, conseguindo prendê-lo e encontrar a mulher que eu havia enfrentado durante o resgate, então as crianças não precisavam mais ficar sob a minha proteção – e a assistência social já havia me notificado de que devíamos dar os próximos passos para o futuro das crianças, entregando-os para algum familiar ou para a adoção. e eu já havíamos debatido nossa preocupação sobre entregar os dois, por não saber o que aconteceria com eles, não poder garantir que os dois ficariam juntos nem nada relacionado ao futuro dos dois. Nossa esperança era encontrar algum parente deles que ficasse com Hayato e Suki e que nos permitisse manter contato, mas isso tinha acabado de cair por terra.
— O que a gente faz então? Não quero arriscar levá-los pra um orfanato. — Ela mordeu o lábio inferior, respirando fundo e desviando o olhar. — O que foi?
— Eu tenho uma ideia. Mas não sei se daria certo.
— Qual a sua ideia?
— A gente podia… nós dois… e se a gente mantivesse as coisas como estão? — Inclinei a cabeça quando encontrou meu olhar, sem entender o que ela estava tentando dizer. — Nós podíamos ficar com eles. Adotar os dois. Seria só oficializar a situação que nós já temos. Se você também quiser, é claro.
Parei, piscando. Essa ideia nunca tinha me ocorrido, mas eu não podia negar que o pensamento me agradava bastante. Eu jamais tinha me imaginado como pai – minhas experiências me faziam ter medo do que eu poderia me tornar ao me ver responsável por crianças, eu tinha medo de repetir os erros do meu pai –, quanto mais adotar crianças; mas os últimos meses, apesar de todos os desafios, tinham sido maravilhosos. Eu tinha passado a amar Hayato e Suki e a amar tê-los na minha vida todos os dias, por mais que descobrir como lidar com eles me deixasse maluco às vezes. Eu conseguia facilmente ver a nossa situação atual se mantendo indefinidamente. Mas algo na fala de me chamou a atenção.
— Mas… nós dois? Como isso funcionaria?
— Bom… seria como se tivéssemos uma guarda compartilhada. Não acho que a assistência social entregaria a guarda deles pra nenhum de nós individualmente. Nós dois temos empregos com níveis muito altos de risco e não temos horários fixos, não são condições favoráveis. Mas juntos… não somos um casal, mas a gente já mora na mesma casa, já estamos responsáveis pelos dois desde o resgate, já conhecemos os dois e sabemos lidar com eles, mesmo com tudo o que eles passaram, já temos uma rotina com eles que funciona. Seria muito mais fácil do que colocar os dois em um orfanato e esperar outras pessoas que quisessem adotá-los, especialmente o Hayato, que já não é mais tão pequeno.
— Acha mesmo que daria certo?
— Espero que sim. Mas só se formos juntos. — Ela parou, franzindo o cenho antes de adicionar: — E se eles quiserem isso também, é claro. A Suki não entende o suficiente pra gente de fato explicar e perguntar, mas ela gosta de estar aqui. Com o Hayato a gente precisa conversar.
— Ele também parece gostar de estar aqui.
— Parece, mas é mais complicado que isso. Ele já entende mais do mundo e ainda lembra dos pais. Não quero que pareça que a gente ta passando por cima das vontades dele porque não perguntamos antes. — suspirou, depois ergueu os olhos para os meus, torcendo as mãos no que eu havia aprendido ser um sinal de apreensão. — Mas e você? Topa a ideia?
— É claro que sim.
Ela sorriu aliviada.
— Então o que diz de falarmos com ele quando Hayato acordar?
Sorrindo de volta, assenti.
🟥🔥❄️⬜️
— Não! Vocês… não! — Hayato sacudiu a cabeça, os olhos cheios de lágrimas, e correu para o quintal.
— Merda — murmurou . Inclinei a cabeça, confuso e levemente magoado pela reação dele.
— Achei que ele fosse ficar feliz…
— Ele acha que a gente ta tentando substituir eles. Apagar a existência dos pais dele.
— Mas não é isso.
— Eu sei. E você sabe. — Suspirou. — Vai indo atrás dele, eu vou buscar o álbum.
— Tem certeza? — Franzi o cenho. Aquele álbum era pra ser o presente de aniversário atrasado do Hayato, mas não estava pronto. Ela tinha conseguido algumas fotos da família deles e, mesmo antes de termos a ideia da adoção, já queríamos lhe dar uma lembrança deles e também dos bons momentos conosco. assentiu.
— A ideia toda de adotarmos os dois é ser algo bom, não traumático e motivo de briga. Acho que é o jeito mais rápido de mostrar isso.
Deixando-a para procurar, fui atrás dele, encontrando-o sentado junto a um arbusto, se escondendo e abraçando os joelhos. Me sentei ao seu lado, meus olhos voltados para a casa.
— Por quê? — perguntou Hayato com a voz embargada.
— Achamos que vocês dois iam ficar felizes de saber que têm uma família. — Suspirei. — A gente não tá tentando… não é pra substituir eles. Não é pra substituir nada, pequeno.
— Não? — Ele ergueu os olhos cheios de lágrimas e desconfiança para mim. Balancei a cabeça, lhe oferecendo um mínimo sorriso e bagunçando seus cabelos.
— Não. Eu e a não queremos apagar a família de vocês. Seus pais sempre vão ser seus pais.
— Mas… vocês querem mudar tudo.
— Não tudo. Vai mudar muito pouca coisa, na verdade. — Hayato inclinou a cabeça para mim, esperando que eu explicasse. — Eu trouxe vocês pra cá pra proteger você e a Suki. Pelo menos no começo. Mas agora que a ameaça não existe mais, vocês não precisariam continuar aqui. Só que eu não quero que vocês vão embora. E a também não. Nós queremos ter certeza que vocês vão estar bem, seguros e felizes, e aqui, com a gente, vocês estão. — Suspirei, passando um braço pelas suas costas e puxando-o para perto em um abraço de lado. — Só que vocês não podem ficar aqui pra sempre só porque a gente quer, entende? — Encontrei os olhos verdes e ele assentiu. — Precisa ser oficial se vocês forem ficar, pra gente poder cuidar direito de vocês.
— Então… ia ficar tudo igual?
— Ia. — respondeu da porta. Ela nos ofereceu um sorriso suave, caminhando até onde estávamos e se ajoelhando na nossa frente. — A gente só ia te dar isso quando estivesse pronto, daqui a algum tempo, mas acho que é um bom momento pra você ver.
Ela pousou o álbum na grama e abriu em uma das páginas com as fotos dos pais de Hayato. Ele arquejou ao meu lado, se inclinando para frente, e pousou as mãos ao lado da foto.
— Onde… onde vocês acharam…? — Hayato ergueu a cabeça para olhar e depois para mim, os olhos marejados.
— O policial que tava me ajudando a procurar a sua família disse que eles acharam um álbum na antiga casa de vocês que não foi destruído pelo incêndio, e ele disse que eu podia trazer as fotos pra vocês. — Ela limpou a garganta, piscando algumas vezes para manter as lágrimas sem cair. — Elas estavam meio queimadas… eu mandei pra uma pessoa no Brasil que sabe como restaurar elas, essas aqui são só cópias. Por isso ainda não tá pronto, minha amiga ainda não enviou as fotos consertadas de volta.
Hayato ficou vários momentos em silêncio depois disso, apenas olhando as fotos apoiado contra mim. e eu trocamos um olhar emocionado e mais aliviado conforme ele passava pelas páginas, chegando às fotos conosco.
— A gente não queria te deixar triste nem bravo. — começou . — E não íamos fazer nada sem falar com você.
— Falar comigo? — Ela assentiu.
— Nós só vamos começar o processo de adoção se você quiser. — Expliquei, correndo uma mão pelo cabelo de Hayato. — O plano era te perguntar se era isso que você queria antes de fazermos qualquer coisa. Se você queria ficar aqui com a gente.
— Ficar… nós quatro? Aqui?
— Nós quatro. — Confirmei.
Eu tinha esperanças que também quisesse isso. A ideia da adoção tinha sido dela, mas originalmente a mudança dela pra cá era pra ser temporária. Claro, eu também não a tinha visto procurando apartamentos desde então, mas ela podia estar só esperando a solução da situação das crianças.
Eu sabia que, de certa forma, era um pensamento um pouco egoísta querer que ela ficasse aqui. Não tínhamos nada além de amizade e eu nem ao menos achava que ela se interessava por homens, mas queria continuar a tê-la na minha vida desse jeito, todos os dias. Nossa pequena “família” era tudo o que eu nunca soube que queria, mas, como Hayato tinha dito, isso incluía nós quatro.
— Eu… — seus olhos verdes passaram por mim e por várias vezes antes de ele assentir, fungando e secando as lágrimas. — Eu ia ter que chamar vocês de pai e mãe?
— Só se você quiser, pequeno. Não precisa mudar nada se você não quiser.
Ele assentiu, se aconchegando contra mim.
— Então… então eu quero ficar.
— Então você fica, meu amor. — estendeu uma mão para acariciar os cabelos dele, uma lágrima escorrendo pela bochecha dela também.
Continua...
Encontrou algum erro de script na história? Me mande um e-mail ou entre em contato com o CAA.
Nota da autora: meses depois, estamos de volta! E finalmente com a revelação do que aconteceu com a Moonlight pra causar esses surtos dela. Esse capítulo sempre me dói um pouquinho, a gente entra no trauma de todo mundo da casa kkkkkry mas também estamos chegando na metade da história, o que significa que estamos cada vez mais perto do nosso casal finalmente ficar junto! O que acharam?
Nota da scripter: SENTA QUE LÁ VEM O TEXTÃO... 1 ANO DE FIBM!!!!
Primeiramente eu gostaria de agradecer a Cami por me escolher para scriptar esta MARAVILHA de história e já digo aqui que os spin-offs são meus e ninguém tasca! hahahah <3 Segundo, queria dizer que estou muito orgulhosa de ter acompanhado desde o início a história da pp e do menino Shoto que, saiu de um cara caladão para um bem falante (e safado, eu amo). Eu nunca vi BNH, mesmo assim consegui me apaixonar pelo jeito que a Cami descreveu o universo desses heróis (tá na minha lista de animes pra assistir haha).
Os personagens tomaram conta da minha mente de um jeito muito doido, parecia até que eles eram meus personagens kkkkk Hayato, melhor criança dessa história, um fofo, meio caladão, mas super gentil e ele cresceu tão rápido nesse tempo que ficou com a pp e o Shoto que nossaaaaa nem vi o tempo passar. Suki uma florzinha como sempre, muito sapequinha também depois de grande hahaha tudo pra mim ela sacaneando o irmão da pp hahaha. A pp durona e teimosa me lembra muito uma pessoa, não sei quem mds... (eu mesma) só sei que me identifiquei muito com ela haha E que bom que ela parou de resistir ao amor pelo Shoto, pq ne! ATÉ O SHOTO ADMITIU ESTAR APAIXONADO E ELA NADA! E, por fim, o Shoto foi a grande surpresa feliz dessa história, como falei acima, ele saiu de um cara caladão que não sabia identificar sentimentos para um cara super família, fofo, falante e muito safadinho (o Kohshi adoraria conhecer ele kkkry).
Enfim, amiga, eu queria dizer também que eu amei DEMAIS scriptar FIBM e me apaixonei, junto com você, pelo enredo, por tudo! De verdade, estou orgulhosa de tu <333 te amo.
P.S.: O crossover do Café!!!!! amei