Última atualização: 11/02/2024.
Capítulos: 01 | 02 | 03 | 04






Reino unido, 2018
— Você consegue achar artistas que fazem música mais badalada que elas, gente mais bonita, mais nos padrões esperados… mas não é a perfeição que as fazem serem famosas, é a autenticidade. Essas garotas tem algo nelas que é difícil de achar, esse amor tão forte pela música — a mulher gesticula enquanto comenta sobre kairos, um sorriso nostálgico em seu rosto — Elas tem essa sede por criar, como se estivessem perdidas em um deserto e o único jeito de se manterem fosse respirar melodias e se saciar em partituras.
Um silêncio tomou a sala enquanto a produtora tentava encontrar as palavras certas.
— Mas isso não acontece, digo, saciar-se… A fome por criar nunca vai embora e enquanto ela está ali presente no coração de cada uma, elas fazem o que sabem fazer de melhor: estar no palco.





PARTE I - Reveal ‘n roll

— Ah, eu sempre quis uma banda…

Em 1974, durante as férias de verão, Lasowski trabalhava em uma cafeteria no centro da cidade, não porque era uma garota aplicada que desejava aumentar sua experiência no mercado de trabalho, mas porque era o único jeito do senhor Clark deixá-la cantar quase todas as noites de microfone aberto no lugar.
De manhã, o café era um espaço onde estudantes iam para confraternizar, estudar e até planejar secretamente manifestações, fingia não escutar nada, desde os detalhes sórdidos de festas de fraternidade até as senhorinhas reclamando de netos bagunceiros. No entanto, era só fingimento, a garota ouvia tudo —e transformava qualquer coisa em melodia. adorava improvisar no palco, cantar para as pessoas na plateia e fazê-las entender que ela os enxergava de verdade.
— Posso ajudar? — ela perguntava com um sorriso no rosto, lembrando-se do porquê estar fazendo tudo aquilo.
, mais conhecida como por todos (porque nunca parava de cantar), tinha o apoio de sua mãe em relação ao seu sonho. Não que sua mãe não tivesse fé nas capacidades de , mas era difícil para uma mãe solteira nos anos 70 acreditar que a filha que trabalhava de garçonete todos os dias se tornaria a próxima Janis Joplin. Especialmente porque sua geração ainda tinha o diploma acadêmico como uma garantia de um futuro estável.
Lasowski acreditava que aquilo era balela.
Ela sonhava em estar em um palco desde que era pequena. Ligava as lanternas da mãe e apontava para seu rosto, em uma tentativa de se acostumar com os holofotes. O processo doía seus olhos o suficiente para ela ter que ir dormir logo depois, mas quando pegava a escova de cabelo para usar de microfone, nenhuma luz era forte o suficiente para tirá-la de seu mundinho.
gostava de dizer que seu DNA era diferente dos outros, que significava Determinação, Nostalgia e Arte ao invés de toda a normalidade biológica que sempre a corrigiam.
Sua melhor amiga brincava que na verdade era Disciplina, Noção e Aflição, tudo aquilo que não tinha.
Durante os pequenos intervalos de , quando não tinham clientes chegando ou pessoas pedindo pelas contas, ela se sentava na banqueta do caixa e puxava seu caderno, cheio de etiquetas de preços que ela colava na capa.
Ali, guardava seus maiores segredos, rabiscos de letras, poemas, desenhos, tudo que ela acreditava que poderia lhe dar mais inspiração para escrever uma música depois. Ela gostava de desenhar clientes e fazer melodias com todos aqueles traços diferentes, era um talento único poder achar arte em qualquer pessoa que passasse pela porta.
— Eu te pago para desenhar ou trabalhar aqui? — o senhor Clarke perguntou, com sua voz grossa e bigode branco, franzindo o cenho para a garota e a acordando de seu mundo de pensamentos.
respirou fundo. Talvez não qualquer pessoa que passasse.

O parque das laranjas era longe de sua casa o suficiente que ela tinha que pegar dois ônibus, mas era também suficientemente bonito para fazer valer a pena a viagem. adorava sentar-se no banco e assistir as pessoas andando. Ela se encontrava bastante nessa situação, de observadora —apesar de todos olharem como a protagonista do dia.
Ela se sentou no banco perto da estátua de mármore e da fonte. abriu seu caderno, olhando para os cachorros e as crianças chorando para irem embora do parque, ela escreveu:
Eu consigo ouvir os latidos de noite, eu consigo sentir os dentes afiados entrando na minha pele;
A pior parte é como me olham quando conto meu medo, como se eu fosse uma maníaca, uma criminosa —como se algo bonito fosse incapaz de machucar.
Talvez, eu apenas odeie o que parece comigo, talvez meu medo de olhar nos olhos-esperançosos-esperando-na-porta de um cachorro e ver eu mesma em sua íris.
Ele só existe quando ele é amado.
(Eu ainda tenho medo da mordida)
(Eu coço a minha palma, esperando por você.)

Ela franze o cenho, pendendo a cabeça para o lado, como se fosse mudar sua perspectiva.
— Ugh…
Xiou consigo mesma, perguntando a si mesma se metáforas com cachorro já estavam fora de moda. Não que fosse ligar para isso, arte era arte, e ninguém faria a arte dela como ela.
Sua atenção foi tomada por um letreiro colorido, fazendo se levantar, olhando animada para o lugar. Não teve dúvidas, se levantando e caminhando até a loja.
A Claflin Records, uma loja de discos, não tinha nada de especial, mas para uma amante fervorosa da música como , era tudo que ela podia querer em uma tarde nublada sem nada para fazer.
— Boa tarde, procurando por algo específico? — o atendente sorriu para ela, e teve de sorrir junto.
Ele parecia simpático, apesar de ter um olhar ansioso, ao redor de seu pescoço, ela conseguia notar um grande colar, vários braceletes nos braços e um sorriso nervoso.
— Preciso da seção rock, só apontar que eu me acho.
disse, sorrindo enquanto o encarava, era engraçado como ele parecia nervoso só por falar com ela. Eles se conheciam de algum lugar?
— Por ali, senhora…?
Os olhos dele se arregalaram quando percebeu o título que usou, a boca de abriu em choque, uma gargalhada ecoando pela loja, fazendo os outros clientes olharem para ela.
— caramba, senhora é nova pra mim…
Disse apenas, mandando um beijo na direção do garoto e indo até a seção onde ele apontou.

morava em um apartamento pequenino mas com uma vista impecável e escadas para o jardim do terraço, junto com a mãe, uma senhora que passava a maioria das manhãs tricotando e vendo o mesmo canal de tevê (mais por preguiça de se levantar e mudar de canal do que realmente ter apego aos anúncios de jóias que nunca poderia comprar). Ela amava a mãe com todo o coração, que a amava de volta na mesma intensidade.
As duas tinham uma rotina nas noites de terça-feira, assistir ao filme favorito de , um corpo que cai, enquanto comiam as bolachas de confeitos que as duas fizeram na tarde anterior.
Entretanto, esta noite foi diferente, a mulher estava indisposta e decidiu tirar um cochilo, prometendo rever o filme na noite seguinte. não se incomodou, sentada na frente da tevê, pegou seu caderno para anotar ideias.
Sua coelha preta, a senhora pulgas, estava deitada confortavelmente no chão frio, enquanto seu gato, Galileu Gatolei, estava andando pela casa, se espreguiçando e buscando coisas para arranhar, já que todas as cadeiras já tinham suas marcas e aparentemente, isso as deixava sem graça.
se levantou do sofá quando a tevê começou a chiar, arrumando a antena e mexendo no botão de canais até que achasse um sinal bom. Ela não sabe quantas vezes apertou para mudar de canal, mas acabou em um canal que nunca viu antes, assistindo um filme que nunca tinha visto em sua vida.
Na tela, um homem quase nu dançava para uma plateia e um padre, suas vestes lembrando a pintura do nascimento de Vênus de Boticelli.
se sentou no chão, hipnotizada com a tela, gritando quando o frame trocou de repente, na tevê, um esqueleto com larvas aparecia.
Pelo sotaque presente, ela julgava ser um filme religioso, um filme religioso com muitas sátiras, mas mesmo assim deveria ser religioso.
Sua mãe apareceu no batente da porta, passando pela cortina de miçangas e sorrindo para a filha, fazendo-a dar um pulo e se esticar rapidamente para desligar a televisão.
— Ah, Pippa sempre foi muito tranquila. — afirmou com a cabeça, tentando segurar uma risada enquanto encarava a câmera.
— E ai? Quem tá pronta para uma festa?! — Pippa entrou na casa de , uma garrafa de vinho na mão enquanto fazia uma dancinha animada. A mãe de encarou a amiga da filha, com a mão na testa, enquanto negava com a cabeça.
— Nem pensar, Pippa, a gente vai pro café, lembra? — a cantora entrou na sala, colocando argolas nas orelhas — eu vou cantar lá.
— De novo? — a mãe perguntou, cruzando os braços — você e essa mania de desperdiçar suas noites com hobbies ao invés de dança…
— Não é um hobbie, mãe, é um-
— chamado. — as outras duas mulheres presentes terminam a frase, rindo da careta que bufou, não só por ser interrompida, mas também ao ter sua sentença completada. O quão previsível ela poderia ser?
— Vamos lá, tá na hora, tchau mãezinha.
— Tchau, querida.
— Tchau, tia.
As duas garotas saíram, se despedindo com um abraço na mulher e sorrisos no rosto.
Ao sair da casa, Pippa abraçou de lado, colocando sua cabeça no ombro dela.
— Você tá carente hoje, o que aconteceu, o Marcus foi viajar?
Foi a vez de Henrietta bufar, negando com a cabeça e sorrindo.
Touch starved? I've never tasted it.
As duas riram até perceberem que o ônibus já estava no ponto. A corrida foi desesperada, mas valeu a pena, logo Pippa e estavam dentro do veículo, sorrindo aliviadas —e reclamando das mudanças de horário.

Quando chegou ao café, ela rapidamente começou a arrumar o palco provisório (que ficava lá por tanto tempo que nem provisório era), colocando as mesmas no estoque e limpando os bancos em formato de disco de vinil. As mesmas estavam todas postas, com biscoitos especiais em cima, guardanapos quadriculados e copos coloridos.
Ela ajustou o karaokê, arrumando o volume e testando os microfones, sorrindo para uma Pippa animada, pulando pelo café enquanto colocava cartões nas mesas —cartões com as informações de , para caso alguém precisasse de uma cantora para festas e celebrações.
Então, ao final da arrumação, as duas pararam na frente das portas de vidro, olhando para o lado de fora, esperando empolgadas.
E então, esperando um pouco menos empolgadas.
E então, esperando cansadas.
E então, não esperando mais, frustradas.
— Ninguém veio…
reclamou, se jogando na beirada do palco, as mãos na cabeça, decepcionada.
— Comece a cantar, , você invoca até os deuses congelados no polo norte com sua voz. — Pippa tentou sorrir empolgada, mas não conseguia esconder sua tristeza em ver a amiga triste. a olhou.
A cena do filme que havia assistido, aquele que não sabia o canal, o nome ou a data de lançamento, a deixou embasbacada. A cena de uma mulher suplicando por beleza e perdão para Deus enquanto asas de demônio pareciam nascer de suas costas, enfeitiçou a mente de .
Olhando para o café vazio, a garota se questionava sobre o que imploraria se tivesse a chance, se realmente acreditasse que alguém estava ouvindo.
Pediria por fama eterna ou por manter a chama de sua paixão pela música acesa para sempre?
Ela encarou Pippa, a melhor amiga que continuava tentando sorrir empolgada, e teve certeza: ela preferiria mil vezes continuar a cantar com a mesma paixão apenas para a amiga.

— Você e suas teorias da conspiração… o governo te levaria embora se soubesse suas ideias mirabolantes…
Pippa riu, olhando para encantada como sempre olhava. Ela tinha muita admiração pela melhor amiga, como uma criança olha para a mãe, se perguntando se algum dia poderia existir um ser maior que aquele.
— Você pensa em como as coisas seriam se você não fosse você?
Henrietta balançou a cabeça, confusa pela pergunta.
— Tipo, às vezes eu penso em como as coisas seriam mais fáceis se eu não fosse uma artista… e eu nem digo pela estabilidade, eu poderia entrar em uma faculdade se eu quisesse, viver a vida de uma mãe suburbana se aguentasse, mas eu sei, eu sei que sempre existiria esse pedacinho de mim lá no fundo do meu estômago, se revirando, me comendo por dentro, implorando para eu criar algo… — para de varrer, encarando o chao, perdida rm seus pensamentos, uma feição dolorida em seu rosto — é horrível ser artista, pois é horrível ser Deus; você olha para sua criação e não consegue imaginar como fez isto, mas você fez, e é uma benção e uma maldição ao menos tempo… você fez isso e isso sente.
Ela tomou uma golada de ar, encarando a amiga com as sobrancelhas fincadas.
— Como é a vida daqueles que não sentem a imensa necessidade de criar o tempo todo, Pippa? Como respirar sem transformar o ar em arte e os pulmões em poesia? Eu queria poder só exalar e inalar sem precisar me preocupar em tornar aquilo útil para minha arte…
Minette negou com a cabeça, um sorriso triste nos lábios. Talvez ela não entendesse a profundidade do sentimento, mas ela entendia a necessidade de fazer arte, mesmo que ninguém olhasse.
— Dizem que Jesus morreu pelos pecados de todos, acho que alguns tiveram o azar de nascer com eles de volta.
— É a cruz que carregamos.
— Muita arte é feita em madeira, , mas nem toda árvore precisa ser derrubada, entende? Pelo contrário, a gente precisa de florestas.
sorriu, os olhos marejados mas sem deixar nenhuma lágrima cair. Ela murmurou um obrigada sem som. Pippa correu até o outro lado da sala, abraçando a melhor amiga.

Quando chegou em casa, todas as luzes já estavam desligadas, todas exceto o abajur do lado da porta que sua mãe sempre deixava ligado, na esperança da filha lembrar de tirar os sapatos sujos antes de entrar na casa.
A garota os tirou, caminhando de meia até o quarto de sua mãe e a dando um boa noite baixinho, deixando um beijo em sua bochecha.
Depois, ela tomou um banho demorado, demorado o suficiente para que o espelho do banheiro embaçasse e as paredes suarem. saiu do banho com pijamas, uma camisa em volta do cabelo e pantufas e se jogou na cama, cansada.
Ela suspirou, se perdendo em pensamentos enquanto olhava para as poucas estrelas que restaram em seu teto. Ela lembra quando seu pai a ajudou a colocar. Sentiu saudades de Pippa e sua habilidade em tirá-la de memórias tristes.
se levantou da cama, apenas para sentar no chão de seu quarto e puxar o violão para seu colo, começando a dedilhar algumas notas. Não se preocupou com o sono da mãe, a mulher já estava acostumada.
I've sing this song before, I've told you this again and again… — ela murmurou sozinha, fechando os olhos com força, frustrada — again and again…?
Pegou sua bolsa no pé da cama e procurou pelo caderno de músicas, puxando uma página qualquer, já que viu que improvisação não a ajudaria nesta noite.
— Okay, okay, respire, … — balançou a cabeça, tentando reiniciar seu treino — and when you think of me, I hope it ruins rock and roll…
Dessa vez, sua voz era mais firme, certa das palavras que iriam sair por sua boca, feliz por saber tocar de cor a melodia de uma de suas bandas favoritas.
Seu canto continuou por horas.
E Quando acordou, era quase meio-dia. Ela olhou para o céu confusa, as costas doendo por ter dormido sentada no chão, as pernas implorando para ela ajustar —e o relógio parecia zombar do desespero dela ao ver o horário.
Quase quatro horas e meia de atraso, esse era seu novo recorde.
Colocou as primeiras roupas que viu na cama torcendo para não serem da pilha suja que ela estava enrolando para lavar, e então correu para a porta, saindo ansiosa.
Parou de repente, ao ouvir um grito da mãe.
Ela voltou para casa, dando um beijo de despedida na bochecha da mulher e então voltando a correr.
Quando chegou, ela quase foi de encontro ao chão. Trombando com um homem na sua corrida para a cafeteria.
— desculpa, Lasowski, garçonete daqui, licença, preciso ir…
— Eu não tinha ideia de quem ele era… — a mulher gargalhou, animada — se a eu do passado soubesse que ele tinha algum parentesco com o Sr. Clarke, eu jamais teria me aproximado.
— Sou , Williams… — respondeu para o nada, uma vez que a garota já estava a metros de distância.



Quando o garoto chegou na cidade de Seattle, as luzes fortes e o barulho o fizeram recuar dois passos, atrapalhando a fila do aeroporto. O lugar estava mais cheio do que esperava, sua visão começava a embaçar pela descarga de adrenalina que ele sentia em qualquer situação social, era desgastante apenas existir de vez em quando.
Ele passou pelas portas de vidro, procurando por uma mala na esteira e, após achar, se direcionou à saída do aeroporto, procurando por seu tio.
O homem segurava uma placa com letras em caixa alta, e o garoto quis morrer por dentro com todos aqueles olhares para um senhor ranzinza segurando uma placa desenhada com giz de cera.
não gostava de seu nome, aliás, odiava ter de usá-lo a todo momento, odiava como todas as garotas (todas = duas) que tentou sair, achavam que ele estava querendo as enganá-las após falar seu próprio nome.
odiava a ideia de ter de ser tão bom para então as pessoas aprenderem a como falar.
— Oi tio… — sorriu sem graça, acenando para o homem, que o puxou para um abraço sem jeito.
— Ah, rapaz, senti muito sua falta! Que ótimo dia para Seattle, dois Clarke’s na cidade!
não tirou a felicidade do homem, falando em como seu pai não tinha colocado Clark na certidão.
Os dois entraram no carro, as janelas abertas fazendo o cabelo de ficar bagunçado, o deixando quase maluco. Ele arrumou suas vestes, tentando tirar sua atenção dos fios despenteados.
O carro estava em silêncio, apenas com o batuque dos dedos no volante.
— Já tem ideia do que vai fazer, ? Ir conhecer a faculdade primeiro? Ou vamos direto ver sua avó? Aposto que ela vai ficar maluca! O único netinho já tão crescido… a mulher vai se acabar de chorar…
deu um sorriso desconfortável, já se martirizando com a futura situação, ele não sabia lidar bem com lágrimas, ainda mais quando era ele o culpado.
O garoto apertou os dedos das mãos, respirando fundo ao imaginar que essa seria sua nova vida: nada do que ele deixou para trás iria voltar aos seus braços. Ele já sentia falta de sua cidade natal e tudo que conhecia.

A casa de sua avó era pequena e amarela, as janelas eram brancas e tinham canteiros de flores coloridas em cada uma delas. Apesar do tamanho, a casa era sempre admirada por aqueles que passavam na rua, encantados pelo enorme e belo jardim na frente. Era também o espaço favorito de .
O garoto desceu do carro com um sorriso no rosto, mesmo sabendo que sua avó conseguia lê-lo como ninguém —e que provavelmente não seguraria suas inúmeras perguntas desconfortáveis.
! Ah, você chegou! — a senhorinha se aproximou dele.
A vovó Clarke era uma mulher curiosa, estava sempre a par de todas as notícias da rua, apesar de não comparecer a nenhuma das festas do bairro. Ela sabia de tudo, até daquilo que as pessoas mais queriam esconder. Usava sempre sapatilhas pretas, com uma pérola em cada pé, que faziam um som característico.
Quando era menor, ele e seus irmãos brincavam de esconde-esconde na casa da mulher, sempre sabendo quando a avó estava chegando perto do esconderijo pelo som dos sapatinhos. O garoto sentia falta da adrenalina de se esconder e esperá-la.
— Você não parece bem, veja, James, ele não está bem, está? Não, não está não — perguntou, apesar de não esperar para ouvir uma resposta.
A mulher segurou as bochechas do neto com as duas mãos, o inspecionando como um colecionador inspecionava uma obra para comprar. Até olhar dentro dos ouvidos de , ela olhou.
— Venha, entra, entra…
Ela os pediu com urgência para entrarem, abrindo a porta de casa e caminhando até a cozinha.
— Odeio ficar lá fora com visita, a Senhora Thompson é uma fofoqueira nata — bufou, colocando o pó de café no filtro.
A cozinha estava exatamente como o rapaz se lembrava: cheia de peças que a avó tricotou, cheiro de bolachas caseiras e muitas, muitas, muitas estátuas de galos e galinhas.
Seu tio saiu de seu campo de visão, provavelmente indo ao banheiro. nunca ia ao banheiro de visitas, sempre recorria ao da avó. O banheiro de visitas tinha tema de oceano, e sua avó achava o máximo colocar um quadro enorme de tubarão perto do box. Ele tinha pesadelos até hoje da noite em que se levantou para ir fazer xixi quando era menor.
— Como anda sua mãe, querido? Não deve ser fácil para ela…
Sua avó foi logo ao assunto, nunca foi uma mulher a dar voltas. Em outro universo, ela teria se formado em advocacia e conseguido inocentar até Judas.
— Ela finge que o divórcio não existiu… finge que meu pai morreu.
A voz de era neutra, ele tinha parado de se importar com a separação depois de uma bronca de sua avó.
Quando o garoto ouviu as notícias, havia ficado irritado com ambos os pais, como se a relação dos dois fosse irrevogavelmente ligada a relação de com cada um, até que sua avó lhe deu um tapinha na nuca e reclamou sobre como as crianças nunca viam seus pais como pessoas. Ele parou de ver o divórcio de seus pais e passou a ver o divórcio de Jacob e Adeline. Mesmo assim, não podia deixar de se sentir triste com a ideia de que seus irmãos não teriam a mesma infância que ele teve ao redor dos pais. — E como você sabe que ele não morreu?
Sua avó perguntou, o encarando de um jeito que só bruxas de contos infantis sabiam fazer, um jeito mágico, daqueles que guardam todas as respostas para todas as perguntas do mundo.
— Não sei, vovó… acho que as pessoas morrem uma vez que não podemos mais vê-las e falar com elas.
— Então devo conhecer muitos mortos andando vivos para outros… — a senhora deu uma risadinha e colocou sua mão na do neto — podemos ficar de luto pelos vivos que deixamos também, meu filho…

A segunda coisa que fez após chegar na nova cidade, foi procurar um emprego. A tarefa só não era mais importante que ir visitar sua avó e pedir bênçãos para ela. Apesar de saber que poderia trabalhar no café do tio, preferia estar ao redor de algo que realmente gostasse. Com isso em mente, o garoto foi até a loja de discos mais perto do parque.
parou na entrada, estudando o lugar. As prateleiras eram todas marrom, discos de pessoas mais famosas expostos, tinha uma área com uma vitrola e dois bancos vermelhos em um dos cantos, o caixa tinha luzes de natal e o resto da loja era cheio de estantes e caixas com discos, parecia um labirinto de música.
— Licença, posso ajudá-lo.
— Eu quero um emprego.
A rapidez e sinceridade da pergunta fez o outro atendente rir, afirmando com a cabeça e sorrindo.
O rapaz tinha um cabelo longo em um corte mullet, uma blusa cinza com um nome que não reconheceu e calças jeans com muitos, muitos chaveiros pendurados.
— Certo, certo… — ele rodou os olhos pela loja — sorte sua que meu colega foi demitido ontem, parece que a derrota de um homem realmente é o sucesso do outro, huh?
— Não irei reclamar — o rapaz olhou para os bottons na roupa do atendente — Argent? Não achei que era tão famoso assim… na verdade, é bem fraco né? a divulgação poderia ser melhor… acho que nenhuma banda de rock está realmente nas raízes como costumava ser antigamente, anos 70: anos da decaída…
— Eu que produzi eles.
Com a fala, começou a balbuciar, negando com a cabeça enquanto tentava achar as palavras certas para se desculpar, seu rosto quente pela vergonha.
O homem riu de novo, uma gargalhada que fez os outros clientes da loja encararem a conversa dos dois.
— Tô brincando, tá tudo bem, quem nunca ouviu críticas ao seu trabalho, certo? Eu gosto de um pouco de honestidade… — ele ofereceu sua mão para apertar, o que fez prontamente — Sou Dante, trabalho aqui faz um tempo e, apesar de não ter produzido Argent, eu sou produtor também… só para caso você queira reclamar de outra banda underground.
— Certo, irei lembrar disso… — riu sem graça, coçando sua nuca.
— Vem, vou te dar a folha de informações, aí você preenche e já pode começar, ok?
— Rápido assim?
— O que aconteceu com o “quero um emprego”?
— Não, eu, é…
E o homem riu de novo.
— Tô brincando, é que vou precisar dar uma saída, aí se você pudesse começar agora seria perfeito.
— Não, não, perfeito, tá ótimo.
sorriu nervoso, não estava acostumado a pessoas que faziam tantas brincadeiras como Dante parecia fazer, mas ele estava feliz pela oportunidade.
— Você sabe bastante de música, né? Por acaso está tentando uma carreira?
— O que? — franziu o cenho, até que as palavras realmente caíram em seus ouvidos e ele respondeu — ah, não, eu sou mais do tipo que fica na plateia mesmo.
— Entendo, meu lugar sempre foi nas coxias… acho que eu mijaria nas calças se tivesse que subir em um palco.
A frase fez rir, e Dante teve que o acompanhar, ele tinha uma risada engraçada.
— Bom, essa é minha deixa, boa sorte, eu volto rapidinho!
E com isso, estava sozinho, em meio a inúmeros discos e um casal perto da vitrola. A mulher tinha um cabelo volumoso e escuro, bem moldado em sua cabeça, ficou pasmo com o modelo, nenhum fio sequer para fora, o rapaz ao lado dela tinha a cabeça raspada em contrapartida, usava uma camisa de botões amarela com listras laranjas e uma calça marrom claro, os dois pareciam ter saído de uma revista e, com essa visão, pegou sua câmera (aquela que sempre sempre estava em volta de seu pescoço) e tirou uma foto do casal.
Ele sorriu com o resultado, parecia que tinha capturado um casal de músicos, ouvindo canções com promessas de amor feitas um para o outro.
amava tirar fotos, e amava o amor também, apesar de nunca ter tido sorte em nenhuma das coisas —amar e ter uma carreira fotográfica de sucesso.
Tirou seus pensamentos de suas derrotas quando viu a porta abrir, querendo focar na cliente que entrava com passos determinados na loja.
Depois de seu expediente, Dante insistiu em levar ao café —ainda mais quando descobriu que o café pertencia ao tio do rapaz, o chamando de herdeiro pelo resto da caminhada. Os dois fecharam a loja e caminharam até o lugar.
O sino costumeiro os recebeu, soando alto enquanto eles procuravam um lugar para se sentar. Ao escolher uma mesa perto da janela, onde uma bela planta estava em um plantada em um pote colorido, a garçonete se aproximou dos dois. Eles fizeram seus pedidos e entraram em um pequeno debate sobre livros —Dante insistiu (novamente) em deixar o assunto música para a loja de discos.
— Você acabou de dizer que não devemos discutir música pois a qualidade é relativa, mas devemos discutir literatura? ambos são artes propensas ao debate!
— Discordo, , o amor pela música sempre vai pender para o gênero ou cantor que o fez se apaixonar pela música, é ciência: a epifania do amor, ou o que costumo chamar, amor à primeira nota.
— E não existe amor à primeira página?
— Sinceramente? Duvido que exista — Dante deu de ombros — eu não gosto do mesmo gênero que gostava quando criança, o gosto literário muda conforme a idade, o gosto musical pode adicionar, mas tirar o que você gostava antes? é quase impossível, existe muita nostalgia nos acordes para isso acontecer.
O rapaz pegou sua mochila, colocando-a em cima da mesa.
— Cuida pra mim um segundinho? preciso achar o banheiro…
afirmou com a cabeça, incapaz de ficar em silêncio por muito tempo sem se sentir estranho, ele tirou um livro de sua bolsa.
— Seu livro favorito é Romeu e Julieta? Você só pode tá brincando…
A voz da garçonete se fez presente, assustando Willians, que a olhou curioso.
— Se você falar algo sobre adolescentes dramáticos, eu juro que vou embora.
— Ok, eu não vou falar, mas saiba que estou pensando…
A garota respondeu, um sorriso presunçoso nos lábios enquanto tirava os pedidos da bandeja e os colocava na mesa.
— Essa é a beleza dessa obra, em como as pessoas os veem como dramáticos apenas por serem jovens no amor! — não se conteve, precisando expor sua opinião em um assunto que gostava, era sempre assim, ele era calado, até ter uma conversa sobre algo que realmente o interessava e, então, nunca mais ficava quieto — a primeira conversa dos dois é um soneto, isso já indica a beleza da relação! E quando ela, ah, meu deus, quando ela “o corta em pequenas estrelas”? é beleza da literatura na sua forma mais crua.
— É uma ótima leitura, mas sou mais fã do melodrama de Ofélia…
— Você gosta de tragédias shakespearianas então, só que tem preferência àquelas destinadas à solitude.
Os olhos da garçonete se arregalaram um pouco, apesar dela ter feito seu máximo para esconder a surpresa.
— Bom apetite, Hamlet.
franziu o cenho, negando com a cabeça, seu rosto quente novamente por ter falado com uma estranha tão bonita e com um assunto tão bobo. A garota o deixou bem na hora que Dante voltou do banheiro.
— Se eu fosse você, não iria nesse banheiro, tem umas fotos bizarras de cachorros lá dentro… eu sou um grande fã de cachorros, mas qual o sentido de uma decoração dessa no banheiro?
— Meu tio é louco por cachorros, sério, maluco de paixão…
— E você? tem algum cachorro? — Dante perguntou, pegando sua carteira e mostrando a foto que tinha nela, uma cachorrinha salsicha, preta e marrom, estava deitada — essa é a Joplin
riu do nome.
— Ela é uma fofa… — o rapaz pegou sua pasta de dentro de sua bolsa, procurando as polaroids que tinha tirado desde que chegou de viagem — esse é o manteiga.
entregou a fotografia a Dante, uma foto de um cachorro Golden enorme com uma bola de tênis na boca, parecia estar rindo, ao lado de seu tio, que ria também.
— Dá pra ver que eles são família, tem uma pequena semelhança.

— a primeira vez que vi as cinco juntas, foi em uma noite de rock ao vivo no café do meu tio… eu tinha acabado de chegar de viagem e — riu, seu olhar perdido enquanto encarava as mãos — e elas ainda nem se conheciam.
O café que parecia uma sala marrom sem graça, nas noites tinha o letreiro de disco de vinil brilhando em um arco-íris neon.
As mesas eram reorganizadas para dar espaço a um palco improvisado, a jukebox no canto da sala ficava ligada o tempo inteiro e luzes de natal adornavam as paredes. Se pudesse, ela deixaria o café o tempo inteiro daquela maneira, mas então se lembrava que talvez fosse só especial porque não acontecia o tempo todo.
Seu casaco de pele esquentava o suficiente para ela não reclamar do ar condicionado, o café não estava cheio mas uma quantidade boa de pessoas estava presente, ela secretamente pensou que a razão seria a presença de uma moça muito bem vestida para um café qualquer, uma pessoa importante talvez?
Importante o suficiente para se arrumar demais, precisando manter as aparências. morreria se precisasse tirar sua essência em troca da fama.
Ela deu um beijo da bochecha de Pippa, como um sinônimo de boa sorte e subiu ao palco.
— Boa noite, gente, eu sou a — ela se introduziu, mas nenhum olhar se voltou a ela; bufou pela falta de atenção — e essa música é-
Sua voz foi cortada por um homem entrando no café. A porta abrindo com um baque e ele com a respiração entrecortada, suando. Depois de alguns segundos de silêncio desconfortável e olhares sem graça na direção do homem, os olhares voltaram à .
se sentou na mesa mais próxima, pressionando os lábios, nervoso.
— e essa música é muito importante pra mim, eu-
Henrietta ergueu seu dedão, em um “vai lá” silencioso e percebeu que tentar ser ouvida com palavras era inútil, então fez o que sabia fazer de melhor: ser escutada por sua música.
Ninguém tinha atenção em outra coisa quando cantava, sua voz tinha a mesma ação que as de sereias, atraindo todos ao redor como um ímã. Era um feitiço ouvir as melodias de .
Oh, I could hide 'neath the wings of the bluebird as she sings
Os olhos de Pippa não saíram da melhor amiga; A atenção de Odessa foi completamente voltada para a garota no palco, não se importando em dar atenção ao homem ao seu lado; e , sentadas lado a lado, as cabeças parando de olhar uma para outra pela primeira vez na noite para dar total importância à moça que cantava.
— Aquele não foi o momento que me apaixonei pela … pelos céus, ela me odiaria se eu sequer mencionasse amor à primeira vista ou algo do tipo — riu de suas próprias palavras, como se compartilhasse uma piada interna consigo mesmo — Aquele foi o momento que eu me apaixonei pela música dela.
, o garoto atrasado, levantou de seu banco, os dedos indo ao seus lábios em êxtase.
Aquela voz foi sua epifania e, de repente, ele não se importou em se mudar para Seattle, não se importou em deixar tudo que conhecia para trás. Tudo que já viveu foi em vão, agora era o momento que ele realmente conhecia o que era a beleza do mundo.
Ele se aproximou do palco, se sentando na mesa mais próxima, procurando por uma chance de fazê-la notá-lo.
teve os olhos dela em si por três segundos —e foi o suficiente para ele saber que ela o enxergava.
Quando a canção de chegou ao fim, ela sorriu, prometendo uma canção mais tarde e depois correu até a mesa onde sua melhor amiga estava.
mal teve tempo de produzir uma reação, aquela garota foi sua epifania, e a adrenalina de conhecer algo novo e bom ainda em seu corpo, não o deixava reagir.
Nem que ele quisesse, conseguiria. Seu tio sempre dizia que ele era covarde demais para tomar qualquer decisão importante.
— Podia ser o melhor começo de história romântica do mundo — o homem ri sem jeito, coçando sua nuca — exceto que eu só tive coragem pra chamar ela pra sair meses depois.



Após o espetáculo, Pippa ajudava a arrumar o café, como fazia todas as noites em que a amiga cantava. Ela gostava de fazer tarefas repetitivas como empilhar todas as cadeiras nas mesas ou lavar os pratos coloridos.
— Você acha que todo mundo vai ter um amor que vai lembrar para a vida inteira? franziu o cenho com a pergunta repentina, não que fosse novidade, Henrietta estava sempre trazendo inúmeros questionamentos e crises existenciais para as pessoas ao seu redor.
— O que é o amor senão apagar completamente o mundo ao seu redor? O que é o amor senão apagar as luzes para fingir que não está sozinho?
— Não gosto de pensar que o amor é sinônimo de solidão.
— Quanto mais rodeado de amor você está, mais você quer dele, — a cantora deu de ombros, sorrindo para a amiga enquanto varria o chão — e a gente sempre se sente ruim quando não tem o que quer.
— Prefiro pensar que amor é como um jardim… você planta, cuida e colhe, e então faz de novo e de novo. — as mãos de Henrietta balançavam enquanto ela dizia sobre o ciclo da vida de seu jardim de amor. Ela adorava gesticular enquanto falava.
— No meu jardim só teria uma flor, uma hortênsia provavelmente — deu de ombros, pensando seriamente sobre a indagação — e então ela ia mudando de cor de acordo com o ph do solo, mudando de pessoa, mudando de cor, mudando de pessoa, mudando de cor…
Pippa parou sua atividade, virando-se para encarar a amiga.
— Você não pode fingir que uma planta igual é uma pessoa diferente. Ninguém ama ninguém do mesmo jeito, nem pais, nem filhos. — ela negou com a cabeça, realmente brava pela ideia de — e como poderia mudar uma planta? tingindo ela como a rainha de copas?
— A planta muda dependendo do lugar que está, pois cada lugar dá uma coisa diferente, Pippa.
— a cor deles muda em lugares diferentes?
— O solo é a casa deles, todos nós começamos a nos formar ali.
— Eu não gostaria de estar em uma casa que me mudasse.
— Mas você não acha que o azul é mais bonito que o rosa?
a encarou, virando a cabeça e parando de varrer também enquanto esperava a resposta.
— Acho que o mais bonito seria ela decidir.
diz que não se pode decidir quem amamos e Pippa nega, dizendo que só amamos aquilo que conhecemos —e que sempre podemos escolher o que conhecer.

— Eu e nos conhecemos no dia em que eu me mudei… definitivamente foi um presságio de que minha vida ia só melhorar.

Quando Henrietta chegou em Seattle, seus únicos conhecimentos tinham haver com animais leiteiros, como tirar ervas daninhas de hortas e definir horários só pela direção do sol. Hoje em dia, dois anos depois, ela trabalha como secretária em uma empresa de advocacia e seus conhecimentos permanecem os mesmos —adicionando apenas como lidar com homens bravos e saber pesquisar arquivos no grande depósito do Sr. Carmichael.
Claro, existia também o seu conhecimento da música, mas o pai insistia que, a não ser que a filha se ligasse ao country, aquilo não valia muito.
Henrietta estava sentada em sua mesa, de frente para as portas de vidro do prédio, ela era sempre a primeira e última pessoa que os visitantes viam, mesmo que a maioria não fizesse questão de realmente notar sua presença.
Sua mesa era simples, de madeira escura, com muitos papéis e canetas em cima, uma tabela de horários, um telefone vermelho e um único porta-retrato, com a foto de e ela no seu aniversário passado.
O telefone tocou, e Pippa o atendeu rapidamente, acenando para um homem que acabara de entrar.
— Escritório de advocacia do Dr. Carmichael, pois não?
— Caramba, que voz de mulher metida…
Pippa teve que segurar a risada ao reconhecer a voz da melhor amiga, tentando manter as aparências para o senhor que esperava finalizar a ligação.
— Um minuto… — ela tirou o telefone do ouvido, tampando a saída de som para caso tentasse fazer alguma gracinha. O homem proferiu sua dúvida.
Henrietta analisou a tabela de horários, reconhecendo o nome do rapaz e o indicando até onde deveria ir. Logo, ela voltou ao telefone.
— Posso te ajudar em alguma coisa?
— Eu quero uma banda, Minette.
O apelido surpreendeu Pippa, era usado quando ela era pequena, algo que descobriu em uma das noites de vinho que as duas tiveram. Se ela estava usando-o, então realmente era algo sério.
— Dr. Carmichael é especialista em leis, não música, senhora.
— Dr. Carmichael é especialista em ser um merda, senhora.
Henrietta sorriu, tentando manter o riso guardado.
— E eu sou uma especialista em ter ideias incríveis, então você deveria me ouvir.
A atendente suspirou, pensando se deveria ou não alimentar as ideias malucas da amiga. Henrietta morava com desde que chegou em Seattle. A mãe da menina passava bastante tempo fora na época e não queria que ficasse tão sozinha, Henrietta conquistava qualquer um que a visse, não era difícil aceitá-la em qualquer lugar —mesmo que fosse um lugar tão sagrado como uma casa.
Elas não passavam fome, ou precisavam recorrer a meios piores para conseguir pagar as contas, mas isso não quer dizer que tinham o luxo de sonhar com algo tão alto como virarem artistas, ainda mais de rock’n roll, que andava genérico e com o mercado decaindo em originalidade e novidade.
Pensando bem, Pippa se deu conta que talvez fosse o momento perfeito para tentar. Ao menos, tentar.
se manteve em silêncio, sabendo que a amiga estava com suas engrenagens da cabeça funcionando.
— O que você precisa que eu faça, ? — o gritinho de felicidade da cantora podia ser escutado até a três metros longe do telefone.
— Preciso que você toque o teclado, é claro — disse em um tom de obviedade — e que faça cópias do panfleto que coloquei na sua bolsa, beijos, tchau.
Ela disse a segunda parte rapidinho, desligando logo para não ter chances de Henrietta brigar com ela. A garota bufou, como faria cópias de algo assim com as máquinas do Dr. Carmichael? E se alguém visse? E se o próprio homem visse? Se levantou de sua cadeira de couro, arrumando sua saia lápis e caminhando até a sala de impressão. Dr. Carmichaels não gostava que ninguém usasse os equipamentos, pelos céus, ele nem gostava que Pippa usasse o elevador caso não fosse algo urgente, imagina o que diria sobre imprimir coisas para sua banda, ela mataria o velho com um ataque do coração.
Mas estava para existir ainda algo que Pippa não fizesse por . Ela a ajudou em seu momento mais perdida, foi a luz que a garota precisava —e ela mantinha a promessa de fazer qualquer coisa para pagar de volta a ajuda, mesmo que dissesse que não tinha sido nada demais.
A garota olhou ao redor, notando que estava sozinha, entrou correndo na saleta e começou a abrir as folhas para copiar o panfleto. Seu coração a mil, rezando baixinho que ninguém entrasse.

Todas as quartas feiras, às três horas e dez minutos da tarde, Pippa ficava na frente do telefone, esperando sua mãe ligar.
Era sempre muito difícil conseguir uma ligação em qualquer outro momento, os pais da garota, ou ela mesma, ocupados ou em ligação com outra pessoa, a solução para se falar além das cartas, era marcar horário e dia para as novidades.
Após alguns sinais, o telefone foi atendido.
— Minette!
Henrietta riu baixinho com o entusiasmo da mãe, sorrindo ao ouvi-la tão alegre.
— Oi mamãe.
— Ah, querida, como está? Por favor, conte-me tudo!
— As coisas andam as mesmas por aqui, nada de novo no trabalho…
— As mesmas? Achei que a cidade grande traria um pouco mais de emoção, hm? — a voz da mulher não abaixava no quesito entusiasmo.
— Aqui as coisas estão iguais também, filha… — começou a falar e Pippa sabia que ela só pararia depois de atualizá-la de toda a cidade — Sua irmã finalmente marcou o casamento! Mal posso esperá-la para vê-la de branco, ah… Louise está se dando muito bem com a eguinha nova que o sr. Forwel nos deu, e Marco! Ah, o pequeno Marco quebrou o dedo na segunda! Mas já está melhor, voltou a correr logo em seguida, ninguém segura seu irmãozinho, Minette…
A conversa se seguiu com notícias de todos da pequena cidade, comentando sobre a senhora Carlota e sua coleção de pratos, como o jardineiro da cidade quebrou um e a mulher se vestiu de preto pela semana inteira, sobre a festa do Santo em que algumas crianças pegaram mais doces do que deveriam e em como a vizinha da esquerda estava sempre brigando com o marido por causa de seu vício em fazer caramelos e estragar todas suas panelas.
A mãe deu uma respirada profunda, Henrietta conseguia quase ouvir as batidas do coração da mulher aceleradas, seu cérebro rodando para funcionar.
— Bom… todos sentimos sua falta, Pippa.
Ela sabia o que a mãe queria dizer com “todos”. Pippa não soube o que fazer com aquilo, com aquele sentimento, então ela apenas o escondia, deixava enterrado nas areias de seu estômago. Porém, um grande X estava desenhado em cima: não levaria muito tempo para o tesouro terrível ser exposto de novo.
— Sinto falta de vocês também, mamãe.
Henrietta disse, um sorriso triste no rosto, pressionando os lábios.
Ela não estava triste por sentir saudade, estava triste por não se sentir culpada em escolher ficar.

Ao abrir a porta de casa, Pippa foi recebida com um grito agudo de — que raramente gritava por medo de machucar suas cordas vocais — assustando a garota. Henrietta não sabia se estava mais apavorada pelo grito, pelo fato de ser gritando ou pelo amontoado de papéis no chão da sala.
— O que cê tá fazendo? Um furacão passou por aqui? Os Beatles voltaram e eu não tô sabendo?
— Isso — ela mexeu sua mão, indicando a bagunça em volta de si — é arte.
— Sinto que você usa essa desculpa muitas vezes… — Henrietta riu animada, se sentando no sofá, fazendo rir também, nunca tinha tempo ruim ao lado de Pippa.
Pippa se esticou, pegando um dos papéis do chão, olhando diferentes palavras que rimavam com casa. Olhando para outros papéis, ela conseguiu ler alguns rabiscos do que imaginou serem poemas e letras de música.
— Eu estou organizando a setlist para os ensaios com a banda.
Henrietta mexeu a cabeça, olhando curiosa para toda a “bagunça organizada” que a melhor amiga tinha ao redor de si. Pippa deitou no sofá, esticando os pés para cima e encarando a tevê desligada.
— Você deve ser a pessoa mais determinada que eu conheço… teve essa ideia hoje.
— Tenho tido essa ideia minha vida inteira, Pippa…
— Certo, a coragem veio hoje… — Henrietta concordou, rindo baixinho enquanto brincava com seus anéis.
Ela encarou a nuca da amiga, sentada perto do sofá.
— Eu fiz o que você pediu.
Outro grito veio, em seguida um pulo para o alto e um abraço apertado em Henrietta.
— Eu te amo tanto.
— Eu sei. — Pippa deu uma risadinha, apertando a amiga forte contra si.
Um silêncio confortável recaiu enquanto as duas estavam uma no abraço da outra. — Você realmente acha que temos uma chance? — a voz dela era baixinha, como se falasse mais alto, iria concretar o possível fracasso.
— Sim, eu acho — concordou, a voz clara e certeira — e se não tivermos, nós criamos uma.
Henrietta sorriu, respirando fundo e mexendo a cabeça, concordando com a amiga.
— Quem quer pipocaaaa?
A mãe de chegou na sala, empurrando as meninas para se sentar no meio das duas.
A senhora Marta adorava as noites de filme em que podia receber carinho em dobro, fazia questão de sentar no meio para ter as carícias das duas meninas —mesmo que elas insistissem que era só para ficar com a pipoca na mão.
Ela encarou Pippa, sorrindo para a recém achada filha, a garota energética e emotiva havia conquistado um pedaço gigantesco no coração da mulher, que a tinha realmente como uma segunda filha.
— Pippa, querida, é sua vez de escolher.
— Não! — reclamou, mas era tarde demais, Henrietta já tinha em mãos a fita de Nosferatu — Eu não aguento mais filmes de terror velhos…
— Vampiros feios são muito melhores que vampiros bonitos…
Foi a única coisa que ela disse, rindo baixinho e, após colocar a fita, voltou ao seu lugar, a cabeça deitada no ombro de sua segunda mãe, se sentindo feliz —e livre.



— Você sabe, paixão é algo muito complicado… é ainda pior quando você tem tantas dúvidas e possibilidades no meio, mas a paixão por criar música? — a mulher suspirou, olhando para a entrevistadora — ah, essa é a pior de todas.
Matthews nasceu em uma manhã fria, exatamente às nove horas e quarenta e seis, e seu choro foi tão alto que os pacientes seis andares acima souberam que uma nova vida chegava.
E a infância de continuou do mesmo jeito que ela começou: com muito choro alto. Ela sempre foi muito repreendida, razão pela qual mal chorava hoje em dia, mas existiam duas pessoas no mundo em que ela conseguia confiar para secar suas lágrimas.
Uma delas estava extremamente perto, sua melhor amiga de infância, já a outra, sua avó, continuava aproveitando sua aposentadoria: fazendo viagens por todo o globo. tentava não sentir tanta falta dela (tentava não sentir tanta raiva) mas era quase impossível; sua avó a criou, a única que lhe deu carinho —e a única que a aceitou depois da tragédia do aniversário.
A casa de era enorme e gelada, extremamente fria durante invernos e com uma brisa relaxante durante os verões, como se vários fantasmas fizessem um sopro eterno nas paredes. Quando pequena, jurava que podia escutá-los. Hoje, o único som que tinha em sua casa era de conchinhas batendo uma na outra, um sino de vento que e ela fizeram quando as vozes da cabeça de estavam quase insuportáveis.
desceu as escadas, procurando por algum de seus pais, mas a única coisa que viu foi o piano da sala quieto como uma criança.
Ah, por Deus, ela nunca viu uma criança quieta, ela nunca foi uma para início de conversa, talvez esse seja o motivo de não ter irmãos —ela sugou toda a energia de seus pais antes deles poderem pará-la de deixar ela sozinha.
A garota bufou, cruzando os braços enquanto procurava por Genevieve, a nova governanta da casa. Pensou no que poderia acontecer caso achasse ela, o que realmente faria se a visse. gostaria da presença de alguém mais velho e carinhoso, isso não queria dizer que qualquer um mais velho fosse ser carinhoso.
Ela subiu as escadas de novo, voltando ao seu quarto e calçando o primeiro par de chuteiras que encontrou.
Depois, ela foi para o quintal, pegando sua bola de futebol velha e treinando chutes consigo mesma, tentando fazer gols entre as cadeiras de flores da mãe.

Eu e ? — a voz da mulher é nasalada, tentando segurar uma risada — sempre fomos muito unidas… fazíamos tudo juntas, e quando digo tudo quero dizer tudo mesmo! Entramos na mesma faculdade só para ficarmos juntas, eu estava no time de futebol e fiz ela entrar pra torcida só pra passarmos os treinos juntas… entrou na banda depois de eu insistir demais…
— Esse é o pior sabor de sorvete do mundo, por favor, me lembre de nunca mais ouvir você.
— Você é muito amargurada… — riu enquanto mordia seu sorvete de menta.
— Aí, eu não aguento você mordendo — chorou, tentando segurar o riso — faz que nem uma pessoa normal e lamba!
— sem doer os dentes fica sem graça.
— você come sorvete pelo sabor, não pela sensação… ao não ser que você esteja doente ou sei lá — negou, pressionando os lábios enquanto pensava — e você-
— você ama a pessoa por ela mesma e não pela experiência, sim sim, já ouvi esse sermão da irmã Matthews…
— engraçadinha — riu, mostrando a língua para a melhor amiga.
e ia) se conheceram quando tinham doze anos, estava saindo de sua aula de ballet e, ao entrar no ônibus, sentou ao lado de , uma garotinha com franjinha escondendo seus olhos e sapatilhas pretas. Ela parecia uma náufraga naquele mar de pessoas altas.
Mais tarde, ia) iria descobrir que ela estava de fato perdida. E que ao encontrar , teria encontrado a si mesma também.
— Vai ir assistir ao treino hoje, certo? — encarou a amiga com olhos enormes, como de um gatinho implorando para ser adotado.
A garota era jogadora do time de futebol da faculdade, atuando no meio-campo enquanto a assistia (e torcia ativamente, tendo entrado no time de torcida apenas para ter acesso a todos os treinos do time).
— Eu não perderia por nada nesse mundo — respondeu, sorrindo alegre para , olhos cheios de carinho enquanto a olhava.
Ao terminar a amostra de sorvete, as duas se levantam do banco em que estavam, caminhando pelas ruas perto do campus.
— Como andam as coisas em casa, meu bem?
O assunto fez franzir o cenho, uma careta no rosto ao pensar em como estavam as coisas com seus pais.
— o mesmo de sempre… nem ruim, mas também não tá bom, sei lá como descrever, … é uma sensação estranha. O silêncio quando eles estão lá é pior do que quando não estão.
afirmou com a cabeça, colocando o braço ao redor dos ombros da melhor amiga e beijando seu ombro.
— Sinto muito, … eu queria poder te colocar em um aquário e te proteger de tudo de ruim nessa vida.
— Se eu ficasse presa lá, não ia conseguir passar tempo com você… que existência sombria seria!
A garota colocou a mão na testa, com uma expressão de dor e agonia, fingindo um drama intenso. gargalhou.
— Okay, ficamos as duas em um aquário com aqueles castelinhos engraçados e um peixe amarelo… sabe, pra gente ainda ter um pedacinho do sol. — as vestes rosa de Matthews brilhavam enquanto ela caminhava no sol daquela manhã, até que ela parou de repente — Ei, esse café parece legal!
disse, segurando a mão de e a puxando para ir até o estabelecimento com discos de vinil no letreiro. Ao abrir a porta, um sininho toca e ela sorri encantada com a atmosfera.
— O que vão querer?
É o que as duas ouvem ao se aproximarem do balcão. Uma moça alta, com maquiagem bem feita e um cabelo modelado as olha com um sorriso misterioso.
— hm… eu quero um pedaço desse bolo de ervas e um suco de laranja, por favor.
— Eu vou aceitar um chá.
— Chá? Nesse calor? — franziu o cenho, encarando a melhor amiga e brincando com a barra de sua blusa — você está doida.
— Você tá usando meia-calça nesse calor! O que tem um cházinho temporário em comparação com isso?
— Eu prefiro passar calor do que perder a oportunidade de estar estilosa, é uma questão de honra, !
As duas se encaram por um tempo, ambas segurando sorrisos. Por um momento, teve inveja do carinho que estava no olhar das duas, mas era melhor ver duas garotas se olhando com o maior amor do mundo que ter um homem ranzinza pedindo o café mais difícil de se fazer às quatro da tarde.
— Bom, vai ser só isso, muito obrigada! — disse, sorrindo enquanto apertava a mão da outra garota.
Matthews pagou a conta e puxou para a mesa perto da janela, mas longe o suficiente do barulho das outras mesas.
— Eu gostei desse lugar, é ótimo para sentar e fazer meus trabalhos. — balançou a cabeça, confirmando as próprias palavras enquanto sorria animada.
— Um ótimo lugar para escrever músicas também… — disse baixinho, fingindo brincar com os guardanapos.
— Ai, não começa, — a garota grunhiu, deitando a cabeça na mesa — eu tô muito ocupada com essa grade, não tenho tempo pra hobbie nenhum…
— Então larga a faculdade, você nem gosta da sua futura profissão mesmo!
— Meus pais me matariam, você sabe disso… Aliás, eu amo estudar a história da arte e literatura, okay?
— Claro, claro, você ama o conteúdo, não o que pode fazer com ele, são coisas diferentes… é como ser o historiador quando você deseja por ser a arte analisada.
ergueu a cabeça, encarando a melhor amiga com uma expressão cansada.
— E o que você espera que eu faça? Encontre uma banda pra fazer parte e viver mudando de cidades em turnês? ah certo, tenho certeza que esse é um futuro bem mais estável que ter meu diploma…
— Poderíamos viver juntas! fazendo o que temos vontade! Como isso soa ruim para você?
A voz de era um pouco triste, seus lábios tomando a forma de biquinho enquanto ela olhava para a amiga com olhos brilhantes.
— Não é um sonho ruim, … Mas é só um sonho, não somos nenhum Beatles…
— Tem razão… Nós somos melhores.
franziu o cenho, rindo quando olhou para a expressão da amiga.
Nós falamos sobre música, lemos poesia, e o ar entre nós incendeia.
franziu o cenho, não por conta da citação, era um hábito de o fazer, mas porque estava tentando entender os significados por trás de suas palavras. sempre sabia o que dizer.
— Aqui está, garotas.
sorriu, entregando os pedidos e planejando sair rapidamente.
— Sua blusa é muito legal! Adoro o Bowie!
— Ah… — os olhos de se arregalaram um pouco, franzindo para as próprias vestes, ela sorriu alegre ao ver que usava a blusa de um de seus artistas favoritos — valeu! Eu comprei bem baratinho naquele brechó perto da biblioteca! Eles não sabem precificar nada…
As três garotas riram do jeito de falar da garota, que se despediu com um rápido “até mais” para ir atender outra mesa.
— Nós vamos encontrá-la de novo.
— Por que acha isso? — franziu o cenho, tomando um gole de seu chá e encarando a melhor amiga.
— Ela disse “até mais”, não foi um adeus.
— ah sim, o destino une aqueles que não se despedem direito…
— Você vai ver, está escrito nas estrelas! — A garota riu, fazendo sua companhia sorrir também.
As duas ficaram em silêncio por um tempo, uma perdida no olhar da outra.

A faculdade de música era menos interessante do que esperava, as aulas de canto eram seu maior terror e, agora, ela fazia o que fazia quase todos os horários: matar tempo no banheiro. Ela sabia que a professora notaria sua falta, pois sabia que ela decorava os rostos dos alunos que não gostavam de sua aula, a mulher era um terror.
Entrando no banheiro, a garota ligou a luz, se direcionando a pia para lavar as mãos, encarou o espelho, sua respiração cortada pelo susto, o rosto corado enquanto ela passava as mãos pela face, tentando se manter presente.
Uma sensação horrível passou pelo seu corpo quando viu seu reflexo, ele estava igual a ela, mas tinha a impressão de que ele iria se mexer, de que iria mudar e olhá-la de um jeito que ela não olharia a si mesma. sentiu seu corpo amolecer e lágrimas virem ao seus olhos, medo do espelho e medo de sentir medo de si própria.
Tentou se acalmar, jogando água no rosto e pressionando seu nariz, queria mostrar a si mesma que estava ali, que era real e que estava bem.
saiu do banheiro, parando na porta e fechando os olhos enquanto respirava fundo três vezes.
Ao abrir suas pálpebras, a garota teve uma única visão: o mural de notícias da faculdade. Com letras brilhantes e grandes, um panfleto chamou sua atenção. “Você toca algum instrumento e tem vontade de mostrar para todos seu talento? Venha fazer um teste para nossa (futura) banda!”
E seus pensamentos ficaram claros.

— Eu vi o panfleto no mural da faculdade.
encarou , tentando manter seu rosto neutro enquanto a estudava. Era difícil não tomar conclusões precipitadas, a garota usava roupas descoladas, um cabelo despojado mas impecável, maquiagem forte bem feita e tinha um olhar pesado, (que consideraria determinado se estivesse em um dia melhor), ela sabia que Lasowski era o tipo de garota nascida para estar nos palcos, o tipo de pessoa que era obcecada por criar e fazer outros sentirem, ela já parecia uma estrela do rock, tinha um ar até hippie.
E a odiou por tudo isso.
— E como isso funcionaria? — perguntou, um sorriso polido no rosto.
encarou , ela não escondia o olhar de análise. A garota tinha um cabelo escuro, uma franja no rosto e bochechas cheias. Suas vestes eram cor de rosa, uma blusa de pelinhos e uma saia estudantil, junto com um par de botas e um casaco de estampa de onça que estava dobrado no braço da menina. Ela parecia ter saído de um musical escolar da Broadway.
E ficou enojada por tudo isso.
— Estamos ainda montando a banda, a ideia é se apresentar para o café e então- — para o mundo! — Pippa completou a frase da melhor amiga, rindo alegre, alheia a tensão compartilhada entre olhares pelas outras duas.
mexeu a cabeça, concordando e olhando os discos na parede, era a oportunidade perfeita para ela e .
— Podem parar de procurar um baixo, — ela disse, sua voz convencida e um sorriso prepotente no rosto — e eu arranjo uma guitarrista também, uma incrível guitarrista.
Matthews disse, virando-se e já caminhando para a porta de saída, e Henrietta se encararam, até que a voz da vocalista a parou na porta.
— Nós ainda temos que fazer o teste.
deu um sorriso ladino, se apoiando no batente com os braços cruzados.
— Sem problema, amanhã eu venho aqui nesse mesmo horário, não vão achar ninguém melhor que nós.
E com isso, saiu do café, deixando duas garotas confusas, surpresas e intrigadas.

A casa de não era só grande e cheia de cômodos, mas também era cheia de espaço no quintal —um terreno grande o suficiente para ter uma horta e um lago possível de se banhar.
ia) não era a maior fã de pedaços de água onde não se podia ver o chão, por isso, adorava estar no lago da casa de , onde a água era quase cristalina, mostrando as pedras no chão. Ela não conseguia nem pensar no preço que aquela poça d'água deveria ter custado para o Senhor e a Senhora Matthews.
estava dentro d'água, enquanto a amiga, sentada na beirada com os pés balançando e criando pequenas ondinhas, estava com folhas, galhos e flores ao seu redor, criando coroas de pétalas e plantas.
a encarava curiosa, pensando no que a garota deveria estar pensando, apesar de que sabia que se perguntasse, a resposta seria a mesma: “Não estou pensando em nada, querida , apenas sentindo o quanto amo você e-”
Oh, certo, essa parte não era realmente sincera, mas gostava de imaginar seguindo o roteiro que sua própria cabeça criava.
Quando pensava em , ela não pensava em um amor que a aquecia por inteiro, mas um amor que a cozinharia em um forno a 200 graus e a consumiria por inteiro.
Ela imaginava sentada de frente à uma bela mesa, esperando seu coração na bandeja.
Ela imaginava que aceitaria o prato, que comeria cada pedaço dizendo promessas de amor —imaginava que a aceitaria em seu corpo de todas as maneiras.
— Você acha que os dinossauros sabiam que estavam prestes a morrer? Me sinto tão triste em pensar que eles podem ter apenas pensado que era um milagre uma coisa tão brilhante ter chegado tão perto… — apertou os lábios juntos, parando de tecer as folhas para encarar o trabalho em progresso e tirando de sua própria cabeça — Acho que é assim com todas as coisas quentes e brilhosas, uma hora elas te fazem virar pó…
— Você acha que teria sido diferente? Se eles soubessem?
— Muita gente só começa a amar depois de saber que podem nunca amar de novo, não é?
— Bom, é a lógica de Confúcio… Mas não sei se eu gostaria de saber que o fim está tão próximo, às vezes, a ignorância pode ser um presente.
— Mas não deixa de ser uma mentira.
— Mas vai acabar de qualquer jeito, … Que diferença faz uma mentira bonita? — encarou a melhor amiga, ela sabia que nada era mais importante para ela do que a verdade, era por isso que tudo era tão doloroso e confuso para .
percebeu que deveria ser honesta. — , preciso te contar algo — ela falou, sorrindo nervosa — eu achei uma oportunidade para nós, uma oportunidade irrecusável…
A outra garota olhou-a curiosa, entrando no rio para ficar mais perto da amiga.
— Eu encontrei duas garotas que começaram uma banda e…
— Ah não. — deu dois passos para trás, já fazendo menção de sair d'água.
— Por favor, me ouça ao menos! — apertou a mão da amiga em um pedido silencioso — por favor…
suspirou, confirmando com a cabeça e se ajeitando no abraço da amiga.
— Elas só têm vocal e teclado, nem nome, nem nada! Começaríamos tudo juntas! Seria algo criado por todas nós…
— É uma ótima ideia para você, , não existe guitarrista melhor que você nesse planeta.
— Não quero isso para mim, quero isso para nós.
A garota encarou a melhor amiga, um sorriso confuso no rosto, pensando em como deveria lidar com essa situação.
— Cisne, eu preciso que você confie em mim nessa… — disse, a voz séria, se aproximando e abraçando a cintura da melhor amiga, sua cabeça se deitando no ombro da garota — por favor.
virou a cabeça, encostando-a na de , seu nariz tomando o cheiro do creme de cabelo da amiga. A água ao seu redor estava gelada, mas seu corpo estava quente —seu coração também.
— Okay… um teste…

Continua



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Nota da autora: Sem nota.










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