O Paradoxo de Murphy


    Autora: Sial
    Scripter: Li
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Atualizada em: 24.03.2025

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Sexta-feira
09 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju


Até o mais velho ser humano vivo da atualidade acharia aquela ideia uma porcaria.
Os pedaços de papel cortados na palma da mão de Mingyu estavam dobrados de um jeito porco e desajeitado, mas ninguém estava animado para corrigi-lo. Dava pra ver os rabiscos e as silhuetas de palavras escritas em caneta preta nas bordas da folha, mas não fazia diferença, já que não revelavam nada além daquilo: rabiscos.
— Eu não queria ter que perguntar, mas por que voltamos à 2ª série mesmo? — Jungkook se manifestou, com as duas pernas erguidas para cima da cadeira antiga de madeira enquanto girava a taça de vinho – que tinha cerveja – nas mãos. Ele tinha sido o único dos outros amigos que tinha topado cortar os filetes de papel com uma régua quebrada que achou em alguma gaveta.
Mingyu revirou os olhos.
— Eu já disse, é um sorteio muito importante, pra ajudar na harmonia da casa nesse feriado. Nunca viu um sorteio assim?
— Eu já! Aconteceu quando eu nasci. Minha mãe tava indecisa sobre o meu nome. — Yugyeom respondeu do outro lado da mesa retangular de carvalho, com os cotovelos apoiados no tampo enquanto segurava um vídeo game portátil.
— E ele acabou saindo Yugyeom? Caramba, tomara que ela nunca jogue na loteria.
Yugyeom olhou pra ele e disse:
— Cala a boca.
Mingyu estalou a língua e se colocou no centro da cozinha grande.
— Tá legal, vem todo mundo pra cá pra gente começar de uma vez! Anda logo, vocês dois aí.
A voz estourada e autoritária de Mingyu ecoou pela casa inteira, como se ele estivesse em mais uma de suas aulas de crossfit em Seodaemun enquanto gritava com seus colegas um “bora, gente! Isso é tudo que vocês conseguem? Que vergonha, bora bora BORAAA”. Colocava você em movimento na hora, mesmo que o verdadeiro professor quisesse expulsá-lo depois. Mas, curiosamente, o vozerio não funcionou com todos de primeira dessa vez.
Eunwoo tinha os olhos tão grudados na janela que não saberia dizer o próprio nome caso perguntassem naquela hora. De vez em quando, até virava a cabeça e fingia estar interessado em alguma coisa que os amigos diziam, mas no geral, ele não estava no aqui e agora. Não desde que viu Nellie entrar no Toyota Camry branco e cantar pneus para longe da avenida.
Isso já estava começando a irritar Mingyu.
— Dongmin! — Ele gritou, fazendo o amigo quase pular do parapeito que estava tentando se manter sentado. Quando Mingyu dizia seu nome verdadeiro daquele jeito, significava que ele sofreria punições: 10 flexões, 10 polichinelos e 30 segundos de prancha. Soava como se quisesse dizer: culpado! Criminoso! — Cara, sai um pouco daí, você tem que tirar o seu papel.
Eunwoo já estava de volta à realidade, olhando para as mãos abertas do amigo como se tivesse desaparecido por mais de um mês em 60 segundos e não fizesse ideia do que ele estava falando. Só quando levantou o queixo para os outros e Yugyeom fez o favor de murmurar a palavra “sorteio” em leitura labial, foi que ele se viu inserido na proposta de novo.
— Já disse que podem me dar qualquer quarto.
— Você diz isso agora, mas se pegar o quartinho do lado da piscina, vai ficar reclamando até o dia de ir embora. — Jungkook murmurou, agora com os olhos grudados em alguma edição passada da Motor Trend Korea que ele achou dobrado embaixo do tapete de boas-vindas.
— Eu não vou… — Eunwoo tentou, mas logo suspirou e desistiu. — Tá bom, tanto faz. — Ele pulou do peitoril da janela logo depois, pegando um dos papéis da mão de Mingyu sem nenhuma expectativa. — Número 7.
O número não significou nada para ele ou para os outros, até Mingyu soltar um resmungo insatisfeito:
— Não acredito! — agarrou o papel de volta com certa pressa, sem deixar de aproveitar para vasculhá-lo antes de bater o martelo porque, como sempre, não dava pra confiar cegamente nos seus amigos. — Sortudo de merda, pegou uma das melhores suítes, meus parabéns!
— A de frente para a praia? — Jungkook levantou a cabeça rápido da revista. Mingyu assentiu, a contragosto. — Ô, sacanagem! Isso foi comprado!
— Bem, de acordo com a conta bancária dele, ele poderia mesmo comprar todas as suítes da casa. — disse Yugyeom.
— Dá um tempo, Viola Davis. Já não basta a família dele ter comprado aquela mega fazenda no mês passado? O dinheiro dessa gente não acaba nunca?
— Na verdade, quem comprou foi minha irmã. Ela acabou de se casar, caso você não lembre, idiota. — Eunwoo estreitou os olhos para o amigo. Jungkook levantou um dedo.
— A sua irmã já casou com um cara podre de rico. O que custava vocês deixarem a compra da casa com ele? É por que o carinha não ganha tanto quanto vocês? Os Lee estão buscando a origem do dinheiro de–
— Tá legal, chega, ninguém quer saber onde a irmã do Eunwoo mora ou deixa de morar. O sorteio de papel é justo e sem margem de erro. Só nos resta aceitar. — disse Mingyu, tentando controlar o próprio rosto contorcido de quem não aceitava. — Vejam pelo lado bom, ninguém vai precisar aguentar aquele violão dele tarde da noite. Estamos livres dos covers do Bob Dylan. Agora você, Jaehyun. Um papel.
— Ei, esse lance de tarde da noite vai existir nessa viagem? — Eunwoo resmungou com uma careta.
— Em relação às suas músicas melosas de menininha? Sim! Jaehyun? — Mingyu chamou de novo, sem deixar de olhar para Eunwoo, que agora fazia uma careta desgostosa como a que sempre fazia quando o amigo alfinetava suas músicas. Elas não eram tão ruins assim!
O silêncio da falta de resposta fez Mingyu finalmente virar a cabeça para a outra extremidade do cômodo, quase se abrindo na sala, na direção de uma poltrona verde escura de veludo, ocupada por um cara alto e com um rosto parecido com o que se via em comerciais de perfume caro, focado na tela de um laptop apoiado no colo em perfeito silêncio e concentração, fechado em seu próprio mundo. Uma atitude mais do que esperada vinda dele.
— Jaehyun! — o grito de Mingyu rasgou a sala inteira, trazendo reclamações dos outros. O rapaz quase pulou da poltrona com o susto. — Acelera! Tira esse negócio logo pra gente começar a arrumar as coisas. As meninas já vão chegar.
Jaehyun demorou 1 segundo a mais para se tocar do que deveria fazer e limpou a garganta, fechando a tela do laptop depressa.
— Foi mal, eu me distraí. — respondeu, já se levantando.
Jungkook soltou um pffff de desdém com a boca.
— Se distraiu trabalhando de novo. A gente não tinha combinado que você não ia trazer essa porcaria pra cá?
— Não me diga que você tá escrevendo aquela música? — Os olhos de Yugyeom brilharam de expectativa quando o amigo se aproximou, e Jungkook desferiu um tapa no seu ombro. — Ai! O quê? Eu só quero uma pista.
— Se liga, idiota, não faz ele querer trabalhar. Você não tava ouvindo o novo lançamento dele agora mesmo? — Jungkook estreitou os olhos.
— Não é meu lançamento. — Jaehyun olhou para os papeis com cuidado, como se pudesse adivinhar o conteúdo de cada um deles caso encarasse por muito tempo.
— Lançamento do NCT 127 também é um lançamento seu, acorda. — Eunwoo já tinha voltado para o parapeito da janela, agora fazendo o máximo para prestar um pouco de atenção também no que diziam os outros, só para o caso de ser interrompido e obrigado a sair de sua vigília cedo demais.
Jaehyun olhou para ele de soslaio e ignorou. Estendeu os dedos para o centro da mão de Mingyu e puxou um dos papéis, entregando-o para ele. A expressão que o amigo fez dessa vez parecia um pouco mais amena do que na vez de Eunwoo.
— Número 3, final do segundo corredor. É o suficiente também para ouvir aqueles seus discos chatos o quanto quiser. — sorriu, embaralhando o restante dos números em suas mãos e oferecendo à Yugyeom.
Jaehyun revirou os olhos, mas riu pelo nariz. Não era de hoje que seus amigos o chamavam de cerimonialista de enterro. Fora da aura de ídolo k-pop, suas músicas eram um gatilho perfeito para dormir ou para chorar, sem meio-termo, e isso não combinava nada com o sol radiante lá fora e os planos de festança que tinha se enfiado para aquele feriado.
Na janela, Eunwoo não perdeu tempo para verificar suas mensagens de novo, mesmo que já estivesse fazendo isso há um intervalo de tempo cada vez mais curto. Nem percebeu quando o rodízio de distribuição de quartos terminou e as orientações de Mingyu também. Sentiu um cutucão no ombro de Jungkook, que apontou para as malas jogadas desordenadamente no hall de entrada, dando um típico aviso para que ele desse um jeito de se mexer e começar a se acomodar.
Jaehyun, por outro lado, já começava a empilhar as suas malas e, de quebra, alguma outra de Yugyeom, que foi o feliz sorteado a pegar o quarto da piscina. Ele não reclamou ou invocou alguma lei da constituição sobre ser colocado contra a vontade em um cubículo quase sem janelas, como era de se esperar, mas pensando bem, seria muito melhor estar longe dele caso resolvesse fazer tudo que pretendia fazer naquela viagem.
Jaehyun observou Eunwoo juntar a mochila preguiçosamente, junto ao violão nos ombros, com olhares nada disfarçados, porém rápidos, para a janela.
— Quer ajuda? — Jaehyun perguntou, caminhando até o rapaz.
— Não precisa, eu consigo. — ele respondeu, puxando a única mala de mão que trazia e indo em direção à escada larga.
— Aposto que trouxe sua coleção inteira de jaquetas puffer para 3 dias do contrato. — Jaehyun soltou uma risada enquanto seguia o amigo escada acima.
Eunwoo semicerrou os olhos.
— E por que isso seria tão errado assim?
Jaehyun balançou a cabeça. Ao alcançarem o topo, arrastou suas malas até o final do longo corredor, passando por Eunwoo e sua rápida entrada no quarto de número 7. Pelo tamanho da casa, era de se esperar que todo aquele espaço fosse tomado de portas de cada lado, mas a residência parecia deixar claro o quanto essa estética de hotel lhe era desagradável. Eles descobriram o lugar através de um recorte de jornal amarelado dentro de uma caixa de metal enferrujada no escritório do pai de Yugyeom, porque preferiam correr o risco de alugar um lugar desconhecido a serem colocados sob a influência social — e financeira — de Lee Dongmin de novo. Naquele corredor em questão, as outras três portas restantes eram um banheiro compartilhado e dois quartos. Um deles já estava reservado, sem ser incluído no sorteio. Reservado para ela.
Mesmo a casa sendo provavelmente do ano em que seu pai havia nascido, Jaehyun não odiou o quarto. Ele era grande e todo revestido em madeira clara, uma condolência pelo fato de ser o lugar com maior déficit de luz natural do que todos os outros. Parecia tão isolado quanto o que aguardava Yugyeom na parte de fora. As janelas eram direcionadas para o quintal de trás, direto para a piscina e a Avenida deserta de Seogwipo, cheio de árvores grossas e estufadas que formavam uma barreira impenetrável contra o Sol, e ainda carregava cortinas enormes em blackout. Olhando em volta, era como estar dentro da cripta do Drácula.
— Nossa, que deprê! — Eunwoo falou da porta enquanto Jaehyun ainda despejava a bagagem em cima da cama. — Mingyu tava certo, pode estourar seu Cigarettes After Sex à vontade aqui que eu vou continuar dormindo como um bebê.
— Como se você fosse dormir tão cedo assim.
— É verdade. Insônia costuma deixar a pele feia, mas eu sou incapaz de ficar feio, então tudo bem. E é feriado. — ele riu, dando de ombros. — Mas você acabou tirando a sorte grande de qualquer jeito naquele sorteio do primário.
— Não tirei, não. — Jaehyun arranhou uma risada. — Acha que eu sou fã das trevas que nem o Jungkook? Vou precisar ligar as luzes durante o dia.
— Ah, você vai mesmo. Mas não é disso que eu tô falando. Eu vou ser vizinho de porta do Mingyu.
— E o quê… — Jaehyun estava pronto pra perguntar, mas se tocou rápido do que o amigo estava falando. — Ahhh… Aquilo.
— É. Aquilo. E ele ainda tem a audácia de reclamar do meu violão.
— E dos meus discos.
— Agora tenta falar dele e Nellie fazendo os “exercícios” de madrugada. Ele se esquiva igual lagartixa. Meu Deus, é nojento. — Eunwoo fez uma careta. Jaehyun riu enquanto abria o zíper da mala.
— Só é nojento porque você não está fazendo.
— Calma, o feriado ainda nem começou, meu caro padawan. Não sufoca o artista. — Eunwoo deu aquela piscadinha canônica de astro da TV que deve ter aprendido a fazer antes de saber falar. Jaehyun revirou os olhos e exibiu um singelo sorriso torto (que também poderia ser um estouro na TV, caso ele se importasse com esse tipo de coisa). — Enfim. Eu gosto da Nellie e acho incrível ela ser filha de astros do rock e ter todas aquelas tatuagens iradas, mas odeio os gritos dela. Não quando ela grita com a gente normalmente, mas aqueles gritos. Você entendeu.
— É, entendi. — foi a vez de Jaehyun fazer a careta. Existia uma história por trás do alcance vocal admirável de Nellie Yohn: seus pais beberam muito, estavam no auge da carreira, ela acabou sendo uma prole acidental e, pra conseguirem ficar perto dela de alguma forma, colocaram a garota numa aula de canto e a viciaram em Eagles e AC/DC, suas bandas favoritas, pra deixarem ela fazer o próprio show no quintal da frente quando os velhos voltassem.
A parte do canto foi um fiasco, mas ela tinha aprendido grandes coisas com Highway to Hell.
Eunwoo ficou parado por mais alguns minutos, girando a cabeça por todo o entorno do cômodo, até finalmente soltar um suspiro forte e dizer:
— Já sei, Jae. Vamos fazer o seguinte, vamos trocar.
— O quê?
— É sério, de que adianta ganhar uma suíte foda se vou ter que ser torturado auditivamente por um cara com a incapacidade de gozar em menos de 10 minutos como o resto de nós? Quer dizer, não nós. — ele se corrigiu na mesma hora em que Jaehyun arqueou as sobrancelhas, murmurando um “fale por você”. — Não foi isso que eu quis dizer, caramba. Mas voltando, eu garanto que lá é bem mais a sua cara, tem vista pro mar e tudo. E você bem que tá precisando pegar uma corzinha. Nem parece que mora em um lugar mais ensolarado do que esse.
— Mas…
— E aqui é praticamente uma toca de coelho, vamos concordar. Mingyu não vai ter motivos para reclamar do meu violão, talvez eu até possa cantar. E você tem aqueles headphones irados, vai escutar suas músicas e se proteger do Irmão Urso acasalando no quarto ao lado. — ele sorriu, dando de ombros. — Vamos, vai, tem certeza de que a ideia de claridade desnecessária e uma mega banheira não te atraem? Elas são muito instagramáveis, eu juro.
Jaehyun balançou a cabeça, cruzando os braços.
— E se ele descobrir? Sabe como o Mingyu é com essa coisa de organização. Vai ficar falando no nosso ouvido até o ano que vem.
— Gritando, você quer dizer.
— É, ele e a Nellie são uma disputa acirrada.
Eunwoo riu, estremecendo ao mesmo tempo.
— Isso não é uma preocupação, ele não vai entrar no quarto.
— Como você sabe? Ele sai entrando em tudo.
— Porque é o meu quarto. Ele nem vai chegar perto, ele sempre fala que eu sou desorganizado.
— Você é desorganizado.
— No caso, ele chama o meu apartamento de “um belo lixo ao estilo filhinho de papai”. Parece que ter empregadas virou crime agora.
— Ah. — Jaehyun se lembrou do apartamento do amigo e que ali eles não teriam nenhuma empregada. — É, ele não vai entrar no seu quarto.
— Não vai mesmo.
— E aqui?
Eunwoo fez “pffff” com os lábios.
— Quem você quer enganar? Se disser pra ele não entrar, ele não entra. Você consegue fazer ele obedecer com essa voz de irmão mais velho.
— Eu sou o mais velho.
— Que seja. Vai aceitar a proposta ou não?
Jaehyun mordeu o lábio inferior, examinando o quarto mais uma vez, pensando seriamente que não seria uma má ideia abandoná-lo. Não por causa da baboseira da luz, mas por outra coisa.
— Ok, me convenceu. Vamos trocar.
— Muito bem, Jae, tô indo buscar minhas malas! Não dá mais pra voltar atrás!
O rapaz voltou saltitando para o quarto mais à frente, enquanto Jaehyun revirava os olhos e ria mais uma vez da situação.
Antes de fechar a porta do agora ex-quarto, ele olhou mais uma vez para as horas. Em seguida, encarou a janela, mesmo que não tivesse qualquer visão da entrada da casa. Ainda assim, se viu tomado pela ansiedade de novo, como quem pressente um terremoto se aproximando.
Ela estava vindo. E chegaria a qualquer momento.






Sexta-feira
09 de setembro
Aeroporto Internacional de Jeju


Meu estômago embrulhou pela 20ª vez.
Eu não odiava voar. Muito pelo contrário. A primeira resposta que tinha escrito na turma do primário assim que aprendi a juntar uma palavra na outra foi “quero ser piloto”. Ninguém da minha família era piloto, ninguém de fora da família também — meus pais não me deixavam nem ter um patinete —, mas ainda assim, aquela resposta saiu. E ela foi repetida por muitas e muitas vezes, estando na ponta da língua até meu primeiro teste vocacional aos 12 anos de idade, quando entendi porque aquela palavra estava sempre na minha boca, mas nunca na minha mente.
Era uma coisa muito distante do que meus pais tinham planejado pra mim. E por isso eu queria tanto.
Não me tornei pilota de avião, mas o que eu fazia exigia que eu entrasse em um muitas vezes. Pensava que as pessoas que trabalhavam viajando se acostumavam tanto com os perrengues que estariam prontas para tudo. Achava que eu também seria assim. Mas daí fiz a besteira de aceitar um pedaço de lutefisk, uma gentileza que os clientes noruegueses acharam de bom tom presentear para a empresa que abriria portas para a sua filial na Coreia do Sul e os colocaria no radar do restante da Ásia.
Eu nunca tinha ouvido falar de lutefisk até algumas horas atrás, e agora gostaria muito de ter tirado 1 minutinho que fosse para abrir o Google antes de abrir a boca e colocar aquilo dentro de mim.
Já tínhamos passado pelo norte da Inglaterra e o sul da Escócia quando todo aquele bolo estava se transformando em uma coisa grotesca. Se colocassem uma câmera de endoscopia dentro da minha barriga, alguma coisa muito parecida com o Demogorgon iria estar dando tchau. Quase xinguei o senhor Baker por escolher aquele péssimo momento para mandar várias mensagens e emojis no meu celular, comemorando: 4,1 MILHÕES, GAROTA! CONSEGUIMOS! Quatro vírgula um! E é só a entrada!
Graças a Deus ele não estava sentado ao meu lado, ou eu seria capaz de morder suas orelhas de abano. Mesmo que, por um lado, ele estivesse certo: se tivéssemos saído da Noruega com qualquer coisa menos que quatro, não teria valido a pena. De que vale falar sobre dinheiro sem estar disposto a quebrar a banca?
O avião sacudiu de novo e quase rachei os dentes de tanto que os apertei. Perdi as contas de quanto tempo já estávamos naquele voo. Rezei para que pousássemos de qualquer maneira, mesmo se fosse em cima do oceano. Só precisava parar de flutuar no ar há mais de 100 metros do chão por 5 minutos, só 5 minutos para que eu respirasse o ar oxigênio de verdade e tivesse forças pra segurar as tripas pelas próximas 4 horas.
Voltei ao assento depois de sair do banheiro de novo. A aeromoça já olhava preocupada para a cor verde do meu rosto. Dei um sorrisinho de canto para ela, indicando que eu estava bem — ou o mais próximo disso.
Uma boa eternidade depois, onde fui obrigada a ceder a uma pílula para cinetose dentro da minha mala de mão e cair no sono, o avião estava finalmente pousando no aeroporto de Jeju, com um céu limpo e sem uma única nuvem, muito diferente da onde eu tinha saído.
Lutei para não atropelar as pessoas à minha frente para que saíssem mais rápido. Puxei todo o ar puro que meus pulmões aguentaram assim que pisei em terra firme, sentindo a brisa quente e confortável da cidade balançando meu cabelo já bagunçado para trás e as pedrinhas novas da minha pulseira recém-comprada em alguma rua de Praga.
— Não acredito que vou chegar em Nova York com tempestade. — o senhor Baker estava do meu lado em um pulo logo depois de pegar as bagagens, discando um número rápido pelo telefone enquanto admirava os sapatos lustrosos. Antigamente, eu nunca sabia se ele estava mesmo falando comigo ou apenas pensando alto. — Uma conexão de 3 horas, onde já se viu? Preciso autenticar esses relatórios antes que todo o país acorde. Quero que saibam em primeira mão que a Wren Investimentos vai ser a primeira a abrir capital para a Avanza.
Finalmente, ele olhou para mim e sorriu. Era um homem baixinho e gorducho, muito parecido com o Danny DeVito, o que significava que ele quase sempre precisava olhar para cima para falar com qualquer um. Balancei a cabeça, concordando com o que quer que ele tivesse dito, mesmo se fosse “Abaixo a Rainha”.
— É claro, fizemos um bom trabalho, senhor Baker. — abri o meu próprio sorriso, ignorando que ele pudesse parecer quebrado por causa do enjoo, mas não tinha problema porque Claude nunca percebia nada. Era uma lesma para qualquer coisa que fugisse de papeis e relatórios. Era uma parte boa dele: só se preocupava com o seu trabalho, nada mais.
— É claro que fizemos, ninguém mais nesse país faria coisa melhor. Talvez a NYSE, mas estamos falando da Ásia. Você catalogou os dados?
— Sim, estão no relatório.
— Deu entrada no contrato?
— Já está no e-mail do advogado.
— Reservou meu hotel em Nova York?
— Em Manhattan, bem ao lado de Wall Street.
— Perfeito. Preciso ir. — ele deu uma olhada rápida no relógio de pulso e se virou, mas não foi imediatamente. — Ah. Como era o nome daquela coisa vermelha que você derramou no colo do superintendente?
Quis ranger os dentes e enfiar minha cara no chão. Eu sabia que Claude não estava sendo maldoso ou provocativo, mas isso parecia piorar um pouco as coisas; ele estava sendo curioso, ingenuamente curioso.
— Geleia de frutas vermelhas, senhor. — respondi em tom baixo e envergonhado, e o homem arqueou as sobrancelhas e franziu a testa em reconhecimento.
— Hum. Interessante. Mande entregar 3 dessas no meu hotel antes de amanhã. Acho que a poodle vai gostar. — disse ele, finalmente erguendo o pescoço e encontrando meus olhos ali, afundados e parados bem acima dele. — Vejo você na semana que vem?
Concordei mais uma vez com a cabeça e de repente ele já estava indo, dando as costas enquanto arrastava sua mala de rodinhas e atendia alguém no exato instante em que o celular tocava.
Suspirei. Por que ele tinha que mencionar o episódio da geleia? Me dava vontade de morrer.
Cocei os olhos e tentei arrumar um pouco que fosse da confusão de cabelos e puxei o meu iPhone para ver as horas. Acabei encontrando o telefone vibrando em uma chamada recebida e outras mensagens não lidas. Considerando que eu nem tinha me mexido ainda da área de desembarque, atendi rápido só pra falar: Estou saindo, e desliguei de novo, puxando minha mala um pouco maior na direção da saída.
Não demorei muito pra avistar o que eu mais temia: a placa enorme — exageradamente enorme — em papel branco com os dizeres coloridos: PEQUENAS FÉRIAS E GRANDES “TEZÕES” DA ! O texto mal escrito cobria o rosto da pessoa que estava por trás, mas as pernas altas como uma banqueta e os braços tatuados expostos a entregavam.
— Ok, já chega, quer esconder isso? — afastei aquele constrangimento absurdo e olhei para Nellie. — Ah, meu Deus! Você cortou o cabelo!
— Você gostou? — ela jogou os cachos loiros de um lado a outro, que agora batiam um pouco acima das costelas. O sol da manhã a deixava com a pureza de anjos. — Não sei como não fiz isso antes, é maravilhoso!
— Ficou realmente maravilhoso em você. — sorri, controlando a pontinha de inveja passageira por ela ter ficado absurdamente linda fazendo algo que eu jamais teria coragem.
— Ótimo, então vamos antes que Mingyu comece a gastar toda a conta de telefone ligando pra mim. Temos 40 minutos de fofocas europeias pra colocar em dia.
— Achei que Seogwipo ficasse a 50 minutos.
— Detalhe, gata. — ela pegou uma de minhas malas e começamos a andar. — Como foi seu voo? Por falar nisso, você está pálida como uma privada, nem parece que estava no verão da Noruega. — ela torceu o nariz.
— Experimenta comer peixe cru banhado em soda cáustica e passar mais de 10 horas em um avião. Vou ter que dizer que sou alérgica a tudo de fora da Coreia daqui pra frente.
— A melhor parte de uma mentira é quando ela salva a sua vida, eu sempre te disse isso.
— Nunca é tarde pra aprender. — resmunguei.
— Também tem o fato do seu corpo ser fraco e o seu cérebro querer comer por dois. Acha que consegue se esforçar um pouquinho nesse feriado? — ela fez um biquinho de deboche e eu estreitei os olhos. Seu rosto já estava com algumas manchinhas de sol e ela usava um vestido com estampa de pétalas azuis.
— Muito engraçada. Estava justamente sonhando com a sua banoffee. Não dou a mínima pro que o meu intestino acha disso.
— É assim que se fala, garota! — ela levantou as mãos aos céus de forma teatral e caímos na risada.
No estacionamento, apertei minhas malas no porta-malas do Toyota Camry de Nellie (ou de Mingyu, não fazia muita diferença) e entrei no banco do carona. Mexi no aparelho de som do painel, colocando meu R&B favorito e comecei a tirar os sapatos.
Meu celular continuou vibrando em mensagens frenéticas, quase escapando do meu bolso de trás. Todas vindo da mesma pessoa.
Puxei o aparelho e fiquei encarando a tela por um bom tempo enquanto lia uma mensagem de cada vez. Eunwoo não sabia se comunicar no Kakao sem mandar fotos suas seguidas da mensagem, e isso me fazia rir sozinha em qualquer ocasião. As últimas tinham sido uma série de fotos em sequência dele fazendo uma cena enquanto escorregava do sofá e perguntava a cada meia hora: “Já está chegando?”, “O avião quebrou?”, “Por Deus, qual é o nome desse piloto? Ele é muito devagar!” e assim por diante.
— É o Eunwoo? — Nellie perguntou depois de um tempo, ao me ver sorrindo como uma idiota, obviamente. — Ele estava tão ansioso que acabou dormindo a manhã inteira, Mingyu precisou acordá-lo pra eles resolverem a divisão dos quartos. Pelo menos ele se distrai muito fácil quando está com os outros, se não, já teria atravessado a nado pra te buscar.
— Que exagero, Nellie. — balancei a cabeça, tentando disfarçar o formigamento no estômago ao ouvir aquilo. — Ele só deve estar animado para me mostrar a cidade, só isso.
— E você está animada para vê-lo, não é? Ou melhor, para colocar seu plano em ação... — ela disse, enquanto dava partida no carro.
— Plano? — quase gritei. Eu não imaginava que ela se lembrasse disso. — Eu não sei do que–
— Agora vai dizer que a ligação da semana passada não existiu? Quando você me contou que já estava na hora de se declarar pra ele? — ela arqueou as sobrancelhas, me deixando sem resposta. — Inclusive, espero que você tenha se planejado bem para essa empreitada, pois temos um passeio de barco em… — ela olhou para o relógio no painel de controle. — 1 hora! Cacete! — Os pneus cantaram em um sonoro altíssimo assim que Nellie acabou de falar, e tive que me segurar no banco para não bater com a cabeça na janela.
Bom, eu já imaginava que não receberia o itinerário daquela viagem, mas imaginei que, pelo menos, me deixariam tomar um banho. Ainda devia ter um pouco de suor seco na minha testa de todas as vezes que tremi e arrepiei com o mal-estar do vôo, fora o cabelo que pedia o socorro de alguém que tinha atravessado um oceano sem dá-lo total atenção.
Mas quem eu queria enganar? Aquilo tudo era demais. Eunwoo tinha sido tão fofo quando me convidou pra passar o feriado Chuseok com seus amigos que me vi incapaz de recusar. Não que eles não fossem, de certa forma, meus amigos também — ou quase todos eles —, mas alugar uma puta mansão isolada em um paraíso tropical durante um feriado tão tradicional como aquele era um legado que pertencia a eles, e agora eu estava incluída. Mesmo que Nellie, minha melhor amiga e, convenientemente, namorada de um dos amigos de Eunwoo, não estivesse aqui, ainda assim eu estaria perfeitamente confortável.
E era exatamente por isso, por todo esse nível de amizade e intimidade aumentando entre nós, que eu tinha decidido fazer o que pretendia fazer.
Não que eu não gostasse da minha amizade com Eunwoo, nada disso. Ficar presa com ele dentro de uma sala de reuniões da Wren Investimentos há 3 anos quando errei o código de acesso da porta e ter que esperar por 2 horas pelo resgate fez com que a minha adaptação na Coreia fosse mil vezes mais fácil. Ele conversou comigo e me acalmou quando eu estava prestes a cair no choro enquanto repetia uma verdade que ele e todo mundo daquela empresa acabariam descobrindo mais cedo ou mais tarde: sou a pessoa mais azarada do mundo. Algum dia, no futuro, eu provavelmente iria morrer tropeçando em um calço de borracha. Ou tomando Tylenol vencido. Era o meu destino.
Bom, ele riu bastante das minhas lágrimas, me ofereceu chá de ervas e viramos amigos. Quero dizer, posso ter ficado com tanta vergonha que saí correndo da sala, orando ao bom Deus pra nunca mais encontrá-lo na vida, mas eu já era amiga de Nellie Yohn, e um belo dia quando fui conhecer o “namorado misterioso”... ele levou um amigo. Aí sim, as coisas começaram.
Talvez não fosse tão recomendado assim estimular uma amizade com uma celebridade mundialmente famosa. As pessoas apaixonadas por privacidade — eu — desaprovariam isso no momento em que a ideia surgisse no cérebro. Mas Eunwoo não fazia com que parecesse desse jeito quando estávamos juntos. Ele não era Cha Eunwoo, grande astro de TV e ídolo k-pop, mas só Lee Dongmin, um cara divertido, engraçado, que odeia trancar portas e o herdeiro de um conglomerado que decidiu dar um destino mais digno ao próprio dinheiro que não fosse em um mega jatinho ou figurinhas do Pokémon. Foi aí que ele começou a investir na Wren, e quando todo o resto da minha trajetória naquela cidade nova foi traçada.
As coisas aconteceram bem rápido. Um dia eu ri de uma piada que ele fez sobre o aquário de peixes betta e guppy da sala de espera do senhor Baker (ele os chamou de feras arco-íris), depois aceitei o café que ele tinha comprado pra agradecer pelo “meu” trabalho (eu era apenas uma aspirante a analista de investimentos, vivendo à sombra do CEO), vi ele sorrir depois que esse mesmo café tombou na minha roupa e, pela ordem natural das coisas, deveria me encolher e chorar, mas comecei a rir junto e notei pela primeira vez o quanto ele era bonito.
Sei que isso era um fato tão óbvio quanto 2 + 2 são 4, ainda mais quando o rosto do cara estava estampado por toda a cidade em outdoors e banners digitais de pontos de ônibus, mas aquela foi a hora que meu córtex orbitofrontal decidiu registrar isso. Ele era lindo. Daquele jeito que paralisa seu coração e você é envolvida numa luz divina e vozes de anjos.
Eu provavelmente deveria ter juntado minhas coisas e entregado uma carta de demissão na mesa de Claude no fim daquele dia, mas o diabinho à minha esquerda só precisou dizer uma frase: “se fizer isso, nunca mais vai vê-lo de novo.”
Na teoria, eu veria. Pela TV, pelo Instagram, Tiktok, pela janela do táxi. Mas era o mesmo conceito do “tirar doce de criança”. No meu caso, o doce já estava na minha boca, indo pra garganta, prestes a ser deglutido e misturado a todo o meu organismo. Não dava mais tempo de impedir.
Sendo assim, deixei as coisas acontecerem. Aceitei os convites, os cafés, as pizzas de anchovas, os elogios à minha tatuagem, depois ao meu cabelo, os defeitos apontados que vinham logo em seguida — “As pessoas normais da realidade não misturam ouro com prata, ” —, os presentes de vez em quando, a companhia para assistir meus filmes favoritos, os chocolates caros que ele ganhava… deixei a bola de neve rolar e tomar forma, acreditando sinceramente que tudo ia passar, que eu só precisava de um amigo depois de uma mudança radical, que o meu bom senso gritaria “peraí peraí, gata, o que você acha que tá fazendo?” e eu voltaria pra dentro da minha concha de realidade, mas ele estava demorando muito pra fazer essa proeza. E o que começou com uma bolinha do tamanho de um limão, hoje já teria devastado toda a Escandinávia.
Estava sendo incômodo e desgastante acordar com uma vontade maluca de ser ele a primeira pessoa que eu queria ver. Ou sair para almoçar quando ele está na Coreia e conversar até tarde da noite na minha varanda bebendo um vinho barato. Essas e outras mínimas coisas culminaram para onde eu estava hoje: apaixonada. E planejando contar tudo para ele na primeira oportunidade que parecesse conveniente o bastante.
Eu só não contava que Nellie se lembraria desse “plano” depois que fiz aquela ligação bêbada do lado de dentro da cabine do banheiro unissex do escritório da Avanza, um complexo de madeira afastado da civilização na Ilha Svalbard, governado por nerds que acreditavam em ovnis e escutas telefônicas. Normalmente, ela mal se lembrava do que comeu há 3 horas (e por isso não fazia dieta).
Nellie fez uma curva perigosa em uma estrada que começava a se afunilar e ficar deserta, com as casas se espaçando cada vez mais entre uma e outra, grandes palmeiras balançando ao vento no quintal e o cheiro da maresia penetrando até mesmo com os vidros fechados. Ela enterrou o pé no acelerador, determinada a não me deixar nem tirar uma foto borrada do celular, e, quando correu mais do que achei ser possível na direção de uma fachada branca atrás de uma fileira de carros, soube que tínhamos chegado.
E… Uau.
A casa era cercada por um muro alto, que não dava conta de esconder a beleza do que poderia ser visto da propriedade. Grandes janelas de vidro espalhadas por todo lado davam um ar de modernidade e sofisticação dignas de mansões presidenciais estampadas na primeira página da Architectural Digest. O quintal da frente era ladeado de coqueiros e acácias, e tinham ainda mais delas na direção dos fundos. Eu repararia em mais do que isso, se Nellie não tivesse deslizado pelo asfalto como o Toretto para conseguir enfiar o carro entre outros dois, e reconheci a Mercedes de Eunwoo na mesma hora. Quando saí, queria ter parado um pouco e continuado a admirar a casa, mas ouvi o grito de Mingyu assim que passamos pela porta:
— Nossa, até que enfim! Achei que tinham voltado pra Seul.
Ele caminhou até Nellie, dando-lhe um selinho e virando-se para mim.
— Você veio pra ficar, certo? — ele olhou para trás dos meus ombros, claramente procurando as malas.
— Nellie disse que estamos atrasados. — dei de ombros. — E eu não faço ideia de onde está minha roupa de banho no meio de toda aquela bagunça, então eu vou-
— Por isso mesmo vou pedir dois minutos a mais para ela vestir o que eu vou emprestar. — Nellie começou a me conduzir para a escada. — Pode deixar que buscamos a mala dela mais tarde. Vai chamando todo mundo.
Mingyu não teve tempo de responder, e muito menos eu. Seguimos até o topo da escada, saindo em um corredor largo com paredes de mármore branco e portas espalhadas dos dois lados. Entramos em uma à esquerda, com uma cama queen e pelo menos 6 malas espalhadas pelo piso, como se tivessem sido literalmente jogadas ali. Fora isso, o quarto era impressionante, com vista para a frente da casa e a lateral da praia, paredes em tom neutro e um banheiro com piso esverdeado digno de um hotel decente. Vindo de trás de uma das cômodas de madeira perto da janela, vi a sombra de um pompom ligado a uma corrente, um dos meus maiores traumas visuais sobre Nellie e Mingyu.
Desviei o rosto. Minha amiga voou até uma das malas, começando a revirar tudo.
— Eu realmente posso ir do jeito que eu estou. — tentei falar de novo, mas ela rapidamente levantou o dedo para me calar.
— Vou estar morta em um caixão de prata no meu velório tocando hip-hop colombiano no dia em que eu deixar você usar calça e tênis em um barco. — ela revirou os olhos, puxando uma bolsa transparente cheia de mini bolsinhas transparentes juntas. — Estamos na praia, , e você não pagou todas aquelas aulas de pilates nos últimos 6 meses pra não exibir o resultado agora. Você precisa deixar claro para o Eunwoo o que ele vai estar perdendo sem nem sequer pensar nisso ainda. Quer dizer, não que ele vá te rejeitar ou algo parecido, mas tenho certeza de que você pensou nessa possibilidade.
— Na verdade, eu não pensei. — ela virou a cabeça com tudo para me olhar. — Quer dizer, eu literalmente não pensei muito em nada disso. Eu estava bêbada, lembra? Isso não é pra ser uma cobrança pra ele, não quero dizer o que eu sinto para que ele também diga, eu só… sei lá, quero dizer. — suspirei, enrolando o cabelo no dedo indicador, me sentindo violentamente perdida no meio daquilo. — Eu quero que continuemos amigos acima de qualquer coisa.
— Se você quer tanto isso, não pensaria em abrir o jogo. — Nellie me jogou um conjunto de biquíni azul turquesa ainda na etiqueta. — As pessoas não se confessam a outras esperando que absolutamente nada aconteça. Não dá pra conviver com essa dúvida. E se der certo, várias questões são envolvidas, porque infelizmente esses caras lá embaixo não são pessoas normais, tudo é em cima de regras e combinados, então antes de seduzir-
— Tudo bem, tudo bem. — interrompi antes que ela começasse um monólogo sobre a realidade de se namorar um idol. — Temos o fim de semana inteiro, prometo que vou fazer a lista dos prós e contras e considerar esse… cenário.
Nellie franziu o cenho, como se estivesse tentando se lembrar de quando me orientou a fazer uma lista de qualquer coisa, mas não a dei chance para falar e entrei no banheiro.

𓆝 𓆟 𓆞


Nellie não tinha noção alguma de inconveniência.
Tudo bem, estávamos na praia e devia estar fazendo pelo menos uns 28º. Era compreensível, quase obrigatório, que eu estivesse usando um biquíni. Mas o que ela tinha me dado ultrapassava o limite da palavra desinibido. Exigi na hora a troca pelo meu maiô que estava guardado na minha mala, mas é claro que ela não me deixou ir buscá-lo.
Tratei logo de descolar um vestido sem mangas de sua bagagem número 5 pra jogar por cima de toda aquela falta de pano. Não que eu fosse tímida ou algo parecido, mas eu não era, bem, tão descontraída assim.
— Onde eu vou dormir? — perguntei quando saímos de novo para o corredor, observando as fachadas de madeira nobre lado a lado.
— Bem ali. — Nellie apontou para uma porta um pouco à direita na outra parede, com um sorriso sugestivo. — Te coloquei bem na frente do quarto do Eunwoo. — e acenou com o queixo para a porta na frente da minha, que estava um pouco aberta e vazando um pouco de música baixinha para fora. Não era bem o tipo de música que Eunwoo escutava. — O Mingyu me mandou uma mensagem depois que ele e os garotos dividiram os quartos. Deixei esse pra você porque não é tão grande e tem um banheiro lindo, sem nenhuma vidraria cara ou chuveiro alto. Caso o Eunwoo fosse parar em outro andar, eu faria um apelo pra te mandar pra lá, mas eu nem precisei fazer isso. Quer um sinal melhor do que esse?
Meu rosto ardeu. Olhei de relance para a porta com um fiapo de abertura e puxei Nellie na direção das escadas, trincando os dentes para perguntar:
— Você contou sobre isso para o Mingyu?
— Contei? — ela piscou os olhos, fingindo inocência, mas cravei as unhas no seu pulso. — Ai, tá bom, tá bom, eu posso ter contado. Mas e daí, você acha mesmo que ele vai abrir o bico? Inclusive, ele é um dos maiores torcedores desse casal, não vê a hora do Eunwoo começar a namorar. Quem sabe assim ele para de viver de salgadinho de queijo e cigarro no café da manhã.
— Nunca consegui fazer ele largar aquele salgadinho.
— Talvez você tenha mais sucesso no cigarro. Os caras são capazes de tudo pela garota que amam. Olha o que eu fiz com o Mingyu.
— Achei que ele tinha parado de fumar depois que viu as fotos de câncer da embalagem.
— Na verdade, foi quando eu preguei uma montagem dos Teletubbies em estágio terminal na embalagem. Você sabe que ele tem medo.
— De câncer?
— Dos Teletubbies. Dã.
Arqueei as sobrancelhas.
— Ah, é. Os Teletubbies maconheiros realmente roubam o sono de um homem.
Nellie estalou a língua.
— Pois é, mas o que eu estava dizendo é que você e Eunwoo já são amigos, entendeu? Ele já te ama bem mais do que deve amar aquelas primas bruacas abusadoras de Chanel que moram na Indonésia. Ele tá sempre falando de você ou pensando em você em qualquer ocasião, vive saindo cedo dos rolês porque é noite de ver os filmes esquisitos que vocês gostam, ou dia de correr no parque, ou pra tirar uma barata do seu banheiro, e passou a gostar daquele leite fermentado da sua terra depois do primeiro brunch que foram juntos. Tá me entendendo? Esse cara tá na sua, amiga. Só precisa de um empurrãozinho.
Engoli em seco. Senti o fundo do intestino delgado queimar e se contrair como os tentáculos de um polvo. Eu não tinha nenhuma ambição de fazer Eunwoo mudar alguma coisa em si mesmo caso ouvisse o que eu tinha a dizer e decidisse que nós dois éramos um match perfeito, mas a ideia de ele já ter mudado, nem que seja uma coisinha, e por minha causa…
Bom, qualquer mulher de 24 anos se transformaria automaticamente em uma garotinha de 13, com suspiros profundos e olhinhos brilhantes.
Abri a boca pra dizer alguma coisa, mas um “nheec” sutil de uma porta se abrindo no fim do corredor me despertou para o fato de não estarmos totalmente sozinhas ali, naquela passagem cheia de portas numeradas.
— Ok, a gente pode só ter um passeio de barco normal por hoje? Sem tocar nesse assunto? Obrigada.
Nellie deu de ombros e terminamos de descer as escadas de mármore reluzente, curvando em uma sala aberta e repleta de vidro, luz solar e poltronas espalhadas. Ali, todos os garotos já estavam prontos e discutindo algo entre si. Eunwoo me viu na mesma hora enquanto eu me aproximava do grupo, sorrindo daquela forma tosca e divertida que me fazia retribuir no mesmo instante.
Não queria deixar que Nellie e suas expectativas românticas entrassem muito dentro da minha cabeça, mas podia jurar que ele estava sorrindo mais do que o normal.
Cumprimentei os demais: Yugyeom, que sempre me dava uma piscadinha nada discreta quando me via, deixando bem claro que, se eu não fosse tão amiga de Eunwoo (ou tão “esquisitinha”, como ele já tinha carinhosamente me chamado), eu poderia ser caracterizada como presa. Jungkook, que bagunçava meu cabelo como se eu fosse um lulu da pomerânia e gostava de exibir seus novos piercings e tatuagens, porque aparentemente ele enjoava rápido da própria aparência. Mingyu, que olhou para o vestido soltinho e as alças do biquíni escapando na minha clavícula primeiro, para depois sorrir largo para Nellie, sabendo que o trabalho tinha sido dela. E, quando estava prestes a ir para o lado de Eunwoo, quase esbarrei no braço da pessoa que passou como um cometa atrás de mim, murmurando um pedido de desculpas naquela voz baixa e rouca que provavelmente só ele conseguia fazer.
Ele olhou pra mim por um milésimo de segundo antes de se colocar entre os rapazes, ajeitando o cabelo embaixo de um boné com a aba para trás, deixando à mostra as argolinhas nas orelhas e o maxilar sempre travado.
Tentei abrir um sorrisinho de cumprimento, mas ele não me olhou. Como sempre.
Aquele era Jaehyun. O 5º membro do grupo (apesar de Eunwoo sempre dizer que era o 1º), vocalista do NCT (meu top 3 de grupos favoritos de k-pop, que Nellie nunca soubesse disso), era ator como Eunwoo, e tão lindo quanto todos eles — um pré-requisito básico da profissão, aparentemente. Em alguma época passada, Nellie já chegou a dizer que o cara era bastante rotulado como um dos homens mais bonitos da Coreia ou coisa assim. Bom, não dava pra duvidar dessa informação, sendo fake ou não.
Todo mundo tinha coisas maravilhosas para dizer de Jaehyun. Ele aparentemente gostava de discos de vinil, skate, violão, piano, câmeras analógicas e filmes musicais. Também era o rosto queridinho da Prada e desfilava por aí em roupas de marca e cabelo sempre hidratado. Era o único barítono de sua agência e o visual do grupo, ostentando aos quatro ventos uma beleza nada difícil de ser apreciada. Também falavam muito das covinhas dele quando sorria (o que só tive a oportunidade de ver por fotos), e da vibe silenciosa e indecifrável, cheia de “o que será que ele está pensando?” É, ele era um acontecimento juvenil da onda Hallyu e um escândalo nacional.
Mas era por causa dele que eu não poderia dizer que estava em uma viagem com todos os meus amigos. Em vez disso, precisava usar o quase. “Quase” todos os meus amigos. Porque tinha total certeza de que nós dois não nos encaixamos nessa definição.
Na verdade, acho que Jeong Jaehyun me odiava. Ou gostava bem pouco de mim.
Quero dizer, não me lembro de ter derrubado uma travessa de panna cotta em cima dele ou gorfado nos seus sapatos brilhantes da Gucci. Muito menos feito piada sobre musicais chatos como A Noviça Rebelde ou expressado minha opinião sincera sobre Sticker na frente dele — a música era ruim e a coreografia também, mas ele e os amigos estavam lindos de morrer. Não me lembro de ter feito nada que chegasse ao ponto desse cara quieto ficar ainda mais quieto toda vez que me via, fazendo todo o possível pra se manter afastado de mim como se eu fosse o epicentro da peste bubônica.
Seja como fosse, já tinha desistido de tentar entender. Ser secretamente odiada por alguém não era um atributo de grande orgulho, mas eu poderia sobreviver a isso se Jaehyun nunca falasse essa verdade na minha cara. Não tenho muita certeza de como eu reagiria. Talvez rolasse umas lágrimas? Não dá pra saber. Geralmente, eu era boa em administrar minhas emoções, mas ninguém nunca disse que me odiava em voz alta.
Ignorei tudo isso e voltei a prestar atenção na conversa. Eles estavam no meio da discussão sobre o armazenamento de bebidas e medidas de segurança do barco, que era um catamarã espaçoso que faria a rota de Hamo Beach até Chunjang Beach. Quando Mingyu acabou o discurso dizendo — ou exigindo — para ninguém levar o celular, finalmente começamos a seguir para fora. Senti braços passarem pelos meus ombros enquanto prendia o cabelo em um rabo de cavalo, certa de que, se não fizesse isso, o vento faria um estrago ainda maior.
— Você se atrasou muito. — disse Eunwoo, com a boca muito perto do meu ouvido. Minha nossa, tenha compaixão! — Mais do que o normal. Tem certeza de que o piloto não comeu algum peixe estragado igual naquele filme antigo Apertem Os Cintos, o Piloto Sumiu?
Ri na mesma hora. Era disso que eu estava com saudades, principalmente disso.
— Se foi isso, o boneco inflável que me trouxe soube pilotar muito bem, obrigada. E, Jesus, pode parar de usar referências de filmes não tão ruins? É como se eu não te ensinasse nada.
— A culpa é sua. Passou duas semanas na Noruega, então a gente perdeu duas Sextas da Framboesa. Aposto que viu Sharknado sem mim.
— Eu nunca melei a Sexta da Framboesa. Agora se você assistiu qualquer coisa com menos de 3 estrelas no Rotten Tomatoes sem mim, você é um corrupto.
— Assisti Esqueceram de Mim duas vezes em sua homenagem, não conta.
— Você odeia filmes com crianças.
— Não era o que eu tava procurando, mas eu não podia assistir um filme ruim sozinho. Tem ideia do sofrimento que eu passei tendo que assistir um filme bom?
— É a regra. Às sextas, a gente desenterra o lixo do cinema, eu mantive a tradição.
— Que foi…?
Palhaços Assassinos do Espaço Sideral.
Eunwoo colocou uma mão no peito e arfou.
— Traidora!
— Tecnicamente, eram 23h40 da quinta-feira, então-
— Vocês sabem que o aluguel do barco é por hora, não sabem? — Jungkook gritou com a cabeça do lado de fora do banco de trás do carro de Mingyu, o mesmo Camry que Nellie tinha me buscado. — Podem deixar essa fofoca para outro lugar que estamos pagando?
Dei um sorriso tímido para Eunwoo enquanto afastava seus braços de mim e caminhei para o mesmo banco de um Jungkook irritado e ansioso para beber num convés em alto- mar. Achei que Eunwoo seguiria na direção oposta, mas ele apenas franziu o cenho e disse:
— Ei, tá indo pra onde?
Parei e me virei, sem entender. Ele estalou a língua.
— Você vai comigo.
— O quê? — olhei para a Mercedes Benz E-Class azul estacionada logo ao lado do Camry de Mingyu, onde o banco do carona já estava devidamente ocupado por um Yugyeom absorto no Instagram.
Eunwoo acompanhou meu olhar e se aproximou da porta, desferindo um tapa no vidro da janela, fazendo Yug pular de susto e bater o joelho no painel. Tive que colocar a mão na boca pra não rir alto demais. Ele arqueou as sobrancelhas e os dois se comunicaram por um tipo de telepatia por pelo menos um minuto até Yugyeom sair e ir para o carro de Mingyu.
Fazendo uma reverência da mais ridícula, Eunwoo manteve a porta aberta para que eu entrasse e me acomodasse. Revirei os olhos para esconder o batimento maluco que tomou conta de mim por causa disso.
Pelo espelho retrovisor interno, vi Jaehyun entrar no banco de trás, ajeitando as pernas longas por baixo do banco de Eunwoo e mudando a aba do boné para a frente, concentrado em algum ponto fora da janela. Mas, por alguma ilusão de ótica maluca que às vezes a gente tem por virar a cabeça muito rápido, pareceu que ele estava olhando para frente um segundo antes. Mais especificamente na minha direção. Será que ele queria ir na frente?
Pensei em perguntar isso. Eu não teria problema nenhum em trocar de lugar, ainda mais se Eunwoo fosse colocar aqueles podcasts de autoajuda motivacionais com episódios chamados Perseverança, Generosidade, Lealdade ou a trilha sonora do Bob Esponja pra me irritar. Na verdade, naqueles breves milissegundos em que Eunwoo contornava o carro, o silêncio ali dentro me sufocou a tal ponto que eu estava pronta para abrir a boca e falar qualquer coisa que meu cérebro era capaz de pensar, só para que aquele cara se lembrasse que eu era uma pessoa e que também entenderia uma piadinha sobre águas-vivas caso ele quisesse fazer comigo.
Mas, com a graça de Deus, Eunwoo chegou ao seu lugar antes.
— Agora sim! Cintos. — ordenou ele, virando para se certificar de que estávamos obedecendo.
Uma confusão de barulhos do couro sendo puxado e o clic do cinto sendo prendido encheu o carro, mas nenhum deles veio do meu. Eunwoo olhou para frente, avaliando algo no painel e ligando o som enquanto algo havia prendido meu cinto em algum lugar daquele carro maluco e extremamente caro que me dava medo de tocar no lugar errado. O que estava acontecendo? Eu não sabia mais como colocar um cinto de segurança?
Levantei a mão para verificar o que tinha de errado no sulco por onde o couro se desenrolava e encostei em outra que chegou antes de mim, por trás de mim. A mão de Jaehyun desfez o que pareceu ser um nó do outro lado de forma rápida e a tira de nylon deslizou pela minha mão. Em um movimento rápido, ele puxou o cinto até a outra extremidade e finalmente ouvi o click ao lado do meu quadril.
Olhei para o lado. Eunwoo continuava na mesma posição, como se nem tivesse visto nada — tanto a minha dificuldade quanto as mãos alheias que me ajudaram. No retrovisor, vi Jaehyun olhando algo no celular de cabeça baixa, o boné para frente escondendo metade do rosto. Esperei que ele me olhasse para que eu pudesse agradecer, mas ele não fez.
Uma efervescência tomou conta do meu estômago, subindo até minhas bochechas. Que ótimo. Ele devia me achar tão patética que queria me poupar de mais um constrangimento.
O ronco do motor me fez balançar a cabeça e começar a olhar para frente, enquanto Eunwoo apertava o play em The Chain, do Fleetwood Mac. Música dos anos 70 passava bem longe da playlist dele, então aquilo só podia significar que ele iria batucar os dedos no volante e agir exageradamente como se estivesse em um MV, cantando alto e desafinado de propósito pra me provocar. Já não bastava o que eu passava semanalmente com Nellie e seu tributo diário à Bohemian Rhapsody, achei que com meu melhor amigo e nosso gosto compartilhado por porcarias pop eu teria um momento de paz.
Mas eu nunca tinha paz com Eunwoo. Ele me fazia rir o tempo inteiro, e normalmente de coisas que eu jamais riria com qualquer pessoa, tipo a barbicha estranha do meu chefe ou do hino nacional coreano. Também teve a vez que o citaram como ator revelação depois de ter feito My ID is Gangnam Beauty, quando ficou bem claro que ele foi péssimo. Ele gargalhou tanto que até chorou.
A Coreia realmente dava muito valor à beleza.
E era pra esse cara lindo e divertido, considerado (segundo um artigo qualquer da GQ) como o face card da nação, que eu estava planejando me confessar.
Só não fazia ideia de como faria isso.






Sexta-feira
09 de setembro
Hamo Beach, Seogwipo
Ilha de Jeju


— O que é isso? Um barco ou o remake do Titanic?
Tentei dizer isso apenas no ouvido de Nellie, mas com Eunwoo do lado, não existia chance daqueles ouvidos biônicos não ouvirem e de sua garganta não produzir a maior gargalhada já nascida na face da Terra.
O barco (ou seja lá o que fosse aquele filhote de iate) estava ancorado em um porto extremamente deserto da praia, o que fez eu me perguntar o que exatamente estava sendo pago ali. Claro, eu estava metida com caras nada normais que precisavam usar máscara, boné e óculos escuros para zanzar por aí, mas alugar um porto inteiro em um ponto turístico no pico do feriado mais popular do país? Não me admira a insistência de Jungkook para irmos mais rápido.
Tinha que admitir: eles tinham caprichado para valer na escolha da locomoção. Era gigantesco — pelo menos para mim, que nunca tinha entrado em uma coisa daquelas na vida —, com dois andares, sofás na popa, um enorme mastro com uma bandeira coreana hasteada no convés e um varal de luzes ao lado de um leme (decorativo, eu aposto), preso de uma forma quase frágil no piso de madeira, sugando a energia de algum lugar no interior das cabines que não estivesse em contato com a água.
Nem tive oportunidade de perguntar se aquilo era mesmo seguro. Yugyeom e Mingyu já estavam subindo primeiro, levando todos os coolers que conseguiam carregar, e os demais foram um a um até chegarmos ao convés, onde toda a estrutura tremeu sob os nossos pés quando foi ligada e, finalmente, começou a se mexer.
Assim como voar, eu também não odiava velejar, mas… a sensação era estranha. Era mais uma aberração maquinária de 100 toneladas confrontando as leis da Física: aviões flutuando no céu, barcos flutuando no mar. Resultado da inteligência ou da imprudência humana?
Tudo bem, eu estava só um pouco nervosa. Só um pouco. Mingyu disse que tinham vários coletes disponíveis (as normas de segurança que ele tanto ralhou na casa) e Jungkook deixou claro que preferia morrer afogado a vestir alguma coisa laranja, então é, os coletes acabaram sendo oficialmente ignorados. E estava cedo demais pra eu parecer uma idiota.
A tarde foi se desenrolando bem. Em pouco tempo, o som já estava ligado nas alturas, a churrasqueira elétrica distribuindo carne aos montes (um alívio insano pra quem não comia há mais de 16 horas), e a primeira caixa de cerveja ficou vazia em um piscar de olhos, assim como o fardo de garrafas de soju. Eunwoo tinha tentando me ensinar a beber nesse estilo coreano e os resultados foram desastrosos — do tipo que me fez levantar do meu sofá e o jogar contra a janela da sala porque ele estava usando um moletom com capuz e eu pensei que fosse um ladrão atrás do meu aspirador robô —, por isso eu estava mais do que satisfeita em ficar só na cerveja normal.
Também teve aquele momento. Aquele em que Nellie, já brilhando com seu biquíni de caveirinhas e o cabelo loiro jogado ao vento como uma garota propaganda de spa all inclusive, se sentou ao meu lado no sofá da balaustrada, ofereceu um drink de frutas e murmurou baixinho um “está na hora” e eu não tinha entendido nada até Mingyu tirar a camisa. Daí pra frente, foi um efeito dominó.
Todos eles imitaram o amigo, e Yugyeom gritou a maior banalidade de todas: “O último que chegar vai ter que ir ao mercado com o Mingyu”. Eunwoo nem esperou que ele terminasse a frase; disparou para a frente, seguido de Jaehyun e Jungkook, e Mingyu até poderia ter levado a melhor se não tivesse perdido tempo ficando para trás para reclamar do seu nome sendo usado tão levianamente. Eles atravessaram o convés até a proa, saltando dali mesmo e mergulhando; alguns de cabeça, outros abraçando os próprios braços e alguns desengonçados que se arrependeram da ideia um segundo depois de saltar. Esse foi o Mingyu, mas Nellie estava do meu lado, então fui barrada de tirar sarro dele antes mesmo de começar.
Ela tentou fazer eu me arriscar em um mergulho também, mas isso era tão possível quanto a chance de eu magicamente virar uma sereia assim que colocasse os pés na água.
No fim, o céu já estava ficando laranja quando eles pareceram se acalmar um pouco e se concentraram em comer e beber o que ainda conseguiam (e era uma tolerância extremamente absurda). Sentei de novo no sofá depois da partida de pôker mais humilhante da minha vida contra Nellie e Yugyeom, e fiquei hipnotizada pela beleza do sol indo ao encontro da linha do horizonte, cada vez mais pertinho, sem pressa, me passando uma sensação de tranquilidade junto com o vento agora mais equilibrado e fresco da maresia. Tinha desistido de manter o rabo de cavalo há um tempo, deixando que a natureza fizesse sua vontade no meu cabelo, e tenho certeza de que o nariz já devia estar com aquele vermelhão onde eu sempre esquecia de passar o protetor, mas nada estava pior do que as costas e os ombros de Yug. Ou Jaehyun. Os dois eram o próprio cosplay da família Cullen — muito brancos, mas também muito bonitos.
Desviei os olhos da minha paisagem por um instante para olhar os meus amigos. Ninguém parecia estar sentindo a cabeça zoneada, os olhos fechando, a língua embolando, nada disso. Jungkook estava na churrasqueira, empilhando uns 4 pedaços de carne de uma vez pra colocá-las dentro de um pão. Yugyeom gritava com Nellie porque ela estava trapaceando, o que a fez automaticamente erguer o dedo do meio com raiva. Mingyu abaixou a mão dela e a mandou trapacear direito. Eunwoo tinha ido ao banheiro, ou ainda estava no mar, eu não lembrava. E Jaehyun bebia em um canto, andando de um lado para o outro com os olhos no chão enquanto puxava um pano seco qualquer com os próprios pés nos arredores do convés. O som era curiosamente abafado, e ele passava do meu lado várias vezes, sem esticar os olhos por um segundo na minha direção. O quê, ele estava secando o chão? Agora? E eu estava no seu caminho? Talvez estivesse?
Dei de ombros sozinha e levantei as pernas, sentando em borboleta, tentando equilibrar minha cerveja pra que ela não caísse no piso. O bom rapaz secador de chão poderia fazer seu serviço em paz.
Voltei a olhar o sol se pondo, ajeitando a alça do biquíni preguiçosamente, agora aparecendo livremente depois do vestido de Nellie ter se transformado em uma saia.
Um par de braços molhados me agarrou repentinamente, quase me fazendo berrar e derrubar a cerveja de vez. Eunwoo gargalhou com a minha cara de choque enquanto se sentava na beirada do sofá, balançando o cabelo encharcado e me molhando ainda mais.
— Valeu, Dongmin. Cerveja com água, que delícia. — ironizei, agarrando o copo agora com o líquido mais claro.
— Ninguém mandou você levar susto com tudo e andar despreparada pra isso. Já falei que cerveja pra você só no copo com tampa e canudinho.
— O Starbucks vende cafés assim, e nem por isso o pior deixou de acontecer.
— É verdade, teve aquele cara que vomitou no seu frapuccino às 7 da manhã no metrô.
— Você vai tocar mesmo nesse assunto? — arqueei as sobrancelhas. Ele abriu um sorriso imenso e cafajeste.
— É que ele se parecia muito com a cor da sua cerveja agora.
Dessa vez, eu que quis levantar o dedo do meio pra ele.
Esbocei um sorrisinho fino e fiz o que qualquer ser humano faria depois dessa lembrança: joguei a cerveja fora pela gradinha. Só o líquido, não o copo. Não queria a morte de uma pobre tartaruga marinha na minha consciência — ainda mais se fosse o Crush, de Procurando Nemo, que é, sim, um personagem real. E sim, estava vivo até hoje.
Coloquei o copo vazio no chão ao lado dos meus pés. Eunwoo riu, é claro. E como sempre, senti um fio quente queimando minha coluna mais do que aquele sol foi capaz de fazer a tarde inteira.
— E aí, tá admirando a vista? Achei que já tivesse tido o bastante disso na Noruega com seus colegas de trabalho americanos. Ou portugueses. — ele fez uma expressão pensativa quando não respondi. — Franceses…?
— Lá não é o McDonald’s, Dongmin.
— Mas o Baker adora diversidade. E falar de filiais, multinacionais, pregão, dinheiro, vírgulas e mais dinheiro. Por isso ele quer contratar gente de todo o continente que também ama essas coisas chatas. Aposto que ele faz uma festinha secreta no lobby do hotel de cada país que leva você, e te apresenta pra toda aquela gente esquisita que vive com o cérebro cheio de matemática e fórmula de regressão sei lá das quantas pra você gravar os nomes no lugar dele.
Sufoquei uma risada.
— Primeiro que se chama Modelos de Séries Temporais e eles me ajudam a não perder o emprego. Segundo, eles eram irlandeses, mas tinham um sotaque norueguês tão perfeito que mal percebi. Terceiro, fui para as montanhas, o máximo que eu vi foi a sala escura e deprimente de um edifício mais escuro e mais deprimente ainda que o Baker alugou. E quarto: você está com ciúmes de novo? — brinquei, num tom convencido. Eunwoo riu mais uma vez, agora um pouco engasgado.
— Como é, de novo? Da onde você tirou isso?
— De todos os seus discursinhos das minhas viagens a trabalho. Eu minto quando digo que você não suporta que eu tenha outros amigos?
— Você não tem outros amigos, por isso são chamados colegas de trabalho.
— Igual o Sanha é seu colega de trabalho?
— Não é a mesma coisa, a gente se conhece desde os 15 anos, . O trabalho fica pra trás depois de tanto tempo.
— Isso ainda pode acontecer comigo, só tem três anos que eu trabalho lá.
— Três anos e você continua preferindo ir beber comigo do que com seus colegas no jantar de equipe. Vai chamar isso de progresso? — Droga, ele me pegou. — Mas não vou te julgar, eles parecem mesmo insuportáveis. Principalmente o cara da verruga que te chamou pra sair.
Mordi o lábio inferior, querendo chutá-lo na sua canela molhada, mas nem teria força suficiente pra isso. Principalmente porque ele estava com os olhos quase fechados por causa do resquício de sol e o cabelo molhado esvoaçando um pouco com a brisa, e continuava sorrindo na minha panorâmica como se eu fosse o melhor programa de entretenimento do mundo — um milhão de vezes superior a Roda da Fortuna.
E ele ainda não entendia por que eu preferia me agarrar a ele como um coala numa árvore a sair com outras pessoas?
— O cara da verruga tem um problema genético, você não deveria zoar com isso. E aliás, cala a boca?
Ele balançou a cabeça, os olhos puxados se fechando mais ainda pelo sorriso.
— Você foi à Noruega a trabalho, então repito: você não tem outros amigos. Não importa que tenha lotado seu Instagram com fotos de cerveja artesanal e montanhas bonitinhas, já tava maluca pra voltar pra mim.
Quase engasguei na hora de rir.
— É, eu pensei muito em você quando tava jogando tiro ao alvo num barzinho de Bergen. Sua foto deve estar lá até agora.
— Sendo exaltada e emoldurada, você quer dizer.
— Alvejada. Desenharam até um bigode.
— E chifrinhos? Se não tiverem colocado um chifre, não vai ter graça. Um bem aqui. — ele esticou a mão para tocar no topo da minha cabeça. — E uma barba enorme do Gandalf bem aqui… — agora levou a mão ao meu queixo. — Mas com caneta preta ia ficar mais para o Hagrid do que para o Gandalf. Ai, que merda, acho que tô citando filmes bons de novo, foi mal…
Ele riu um pouco mais alto, e aquela mão não saiu dali. Tentei retribuir, mas de repente fiquei nervosa demais. Por causa do vento e da música, ele foi obrigado a chegar mais perto para falar e, quando me tocou ali, chegou mais perto ainda, a ponto do seu cabelo voando bater na minha testa e bochecha. Não sei se era por causa da bebida, mas de repente meu corpo parecia a pontinha fina de uma alça de níquel tocando na chama de uma lamparina e se acendendo todo em fogo puro. Senti o coração batendo no ouvido.
— Muito engraçado, Dongmin, mas que tal agora você calar a sua-
Estiquei a perna para ficar de pé, querendo me afastar o máximo possível dele, só até o meu coração voltar ao normal. Mas é claro — é claro! — que toda a atmosfera terrestre era contra situações onde eu pudesse me safar ilesa.
Uma onda sorrateira escolheu aquele exato momento pra fazer um movimento mínimo no barco, tão mínimo que não faria diferença pra ninguém com todos os membros parados no lugar, mas que fez pra mim, que, ao desfazer as borboletas das minhas pernas e colocar os pés no chão, esqueci do copo de plástico que tinha apoiado ali e pisei com tudo em cima dele. O susto foi o catalisador para que eu me desequilibrasse de vez e fosse levada pelo balanço temporário do barco, tombando para trás.
Em minha defesa, até tentei travar meu outro pé no chão, mas como todo mundo já tinha mergulhado e voltado tantas vezes, sacudindo braços e cabelos como um cachorro depois do banho, o piso ainda estava meio encharcado. Me restava aceitar e me preparar para a queda iminente e vergonhosa que provavelmente me traria o primeiro roxo da viagem.
Mas o tombo feio não veio. Digo, o tombo aconteceu. Mas não cheguei a ir ao chão como era de se esperar. Em vez disso, bati a cabeça em algo forte, porém macio, e… forte…?
Abri os olhos e me deparei com um peito nu. Nu e muito bem definido — com certeza pedia pra gente olhar só mais um pouquinho —, mas percebi, com choque, que eu estava bem em cima daquele tórax, envolvida em um aperto firme na cintura que não me deixou bater com a lateral do corpo no piso molhado e duro. Ergui a cabeça e dei de cara com um Jaehyun tentando disfarçar uma careta de dor. Ele encontrou os meus olhos ao mesmo tempo e, naquele silêncio que antecedeu as risadas explodindo, a coisa mais alta era a respiração irrompendo dele, um jato quente e ofegante que abraçou todo o meu rosto até as orelhas.
Estávamos ridiculamente perto.
Me desvencilhei na mesma hora, tomada por um tipo de pânico misturado com constrangimento misturado com um desejo desesperado de sumir, mas deveria ter me lembrado da minha péssima coordenação motora, pois meus pés vacilaram praticamente na mesma hora que tentei. Escorreguei e caí pro lado, fazendo Nellie soltar uma gargalhada altíssima. Jaehyun pareceu apertar ainda mais o laço em minha cintura enquanto tentava se levantar também, me protegendo de mim mesma.
— Desculpa, desculpa… — murmurei de forma desconexa, tentando me apoiar em algo que não fosse aquele peito estupidamente excepcional para me colocar de pé. Meu Deus, desde quando ele era assim?
Uma mão se fechou um pouco acima do meu cotovelo, me puxando em um único solavanco para cima. Eunwoo estava rindo, mas de forma um pouco estranha — leve demais, quase forçando o ar a sair. Eu jurava que teria de buscar ele escada a baixo da embarcação, porque ele rolaria para lá de tanto rir.
— Tinha que ser você, . — ele falou, mas foi tão baixo e abafado pelas risadas dos outros que mal escutei. Ele ajeitava algo no meu vestido que eu não estava vendo.
Mas então eu vi. Com horror, percebi que, na queda, o vestido (que agora era só uma saia) tinha subido até o umbigo, pelo menos, deixando à mostra o terrível biquíni no melhor estilo brasileiro que Nellie tinha me emprestado. E eu havia caído bem de costas para ele. Meu Deus, bem de costas! Ele viu tudo!
Eu lutaria contra todos os tubarões em reabilitação do Nemo pra conseguir me esconder na casinha deles nesse exato momento.
Puxei o vestido para baixo com toda força, sabendo que meu rosto estava inteiro pintado de vermelho. Não conseguia encarar Eunwoo, não naquela hora.
Então olhei para outra pessoa.
— Você tá bem? Se machucou em algum lugar? — Jaehyun perguntou, já de pé. Ele também parecia um pouco vermelho, mas eu preferia acreditar que era trabalho do sol e do tempo que ele havia passado no mar junto com os outros.
— Sim, tô bem, e sinto muito, muitíssimo por isso tudo, eu juro, eu só queria-
— Não foi nada demais. — Jaehyun deu um passo para trás quando eu, inconscientemente, me aproximei dele. O cara agarrou o próprio pulso e desviou os olhos para o lado, parecendo um pouco nervoso, travando o maxilar daquela forma já conhecida até estacar a atenção em Eunwoo ao meu lado, talvez usando uma comunicação telepática pra dizer ao meu amigo pra ficar de olho em mim ou me colocar urgentemente em uma aula de balé, e que se dane se já estava tarde pra isso — ele parecia mesmo um pouco bravo.
Honestamente, não estava nem aí para o que Jaehyun pensava. Naquela hora, estava ocupada demais sentindo as bochechas queimarem por ter caído de um jeito tão patético na frente do cara que eu gostava (e ter mostrado mais do que deveria).
— Jaehyun, nosso herói! — Jungkook gritou de repente, tirando um pedaço grande de carne do fogo, colocando-o em um prato ao lado. — O jeito como você correu para salvar a garota, aish! Fico preocupado desse pedaço não ser prêmio suficiente! Vem pra cá, meu rapaz, pode vir, é toda sua!
Outro coletivo de risadas explodiu, até a minha, que saiu atrasada pelo motivo de eu não estar entendendo nada. Jaehyun não riu. Na verdade, ele olhou para Jungkook como se fosse matá-lo se ele não calasse a boca.
É lógico. Ele detestava ser o centro das atenções e eu tinha acabado de fornecer exatamente isso pra ele. Devia estar mais arrependido do que nunca.
Com uma última encarada e o osso do maxilar quase saltando pra fora, Jaehyun sumiu da minha frente em um piscar de olhos, descendo rapidamente as escadas para a cabine, ignorando o seu presente oferecido por Jungkook, que, por sua vez, deu de ombros e começou a fatiar o pedaço grande. Olhei para Nellie, que tinha uma expressão entretida no rosto, como se eu fosse o Stuart Little dentro da casinha de hamster. Tenho certeza de que perguntei o porquê ela estava sorrindo daquele jeito através de nossa linguagem peculiar por olhares, mas ela também deu de ombros e se voltou novamente para Mingyu.
— Lindo biquíni, . — ouvi a voz de Yugyeom repentinamente por trás da minha orelha, seguido de risadinhas divertidas enquanto ele ia desfrutar da carne de Jungkook.
Ah, céus, que humilhação.
Tomei coragem e virei para Eunwoo, agora concentrado em algum ponto entre as escadas por onde Jaehyun havia sumido e as costas de Yugyeom enquanto comia. Tinha algo muito estranho naquela expressão dele, e as sobrancelhas franzidas eram só a primeira da lista. Ele estava sério demais em uma situação que deveria estar convulsionando de tanto rir, pelo amor de Deus!
Quando percebeu que eu estava encarando, ele endireitou a posição e fez nascer o sorriso que eu estava esperando, mesmo que não estivesse nada espontâneo como sempre era.
— Você tá legal? — ele perguntou, cruzando os braços. — Você caiu bem feio ali.
— Estou bem. Tropecei em cima de um 97 line, posso publicar isso no Twitter e ficar famosa, já pensou? — ri, meio desengonçada e arfante, mas ri. Ele não riu. Foi estranho. — Eu tô brincando. Não é hoje que eu vou torcer um tornozelo, mas se Jaehyun não tivesse secado essa reta, talvez você estivesse me carregando para o hospital agora mesmo.
Esperei o deboche. Esperei a negação na cara dura. Esperei qualquer coisa, menos aquele sorrisinho distraído de quem está tendo muita dificuldade de voltar da Lua.
— Nos seus sonhos, . Viro um boxeador de sucesso antes de virar o seu cavalheiro particular. — e, finalmente, ele ergueu a mão para bagunçar meu cabelo meio úmido. — Vou aproveitar para dar um último mergulho antes da gente voltar. Tenta não se mexer muito até esse negócio chegar no porto, beleza?
Ele nem esperou eu dizer alguma coisa; simplesmente deu as costas e pulou para o mar.
Comecei a sentir um extremo desconforto e não entendia por quê. Parece que perdi alguma coisa no ar, mas, mesmo olhando em volta, ninguém parecia sequer estar lembrando do fato de eu ter caído em cima de Jaehyun de um jeito tão… bizarro e grudento. E eu estava quase crente que Eunwoo fez a careta estranha porque eu o envergonhei de algum jeito — que não sabia dizer qual era, porque minha cota de momentos constrangedores na presença dele já tinha chegado no limite, tornando o episódio de hoje um mero acontecimento normal, com a única variável sendo a minha seminudez.
Quando voltei a me sentar, Nellie atravessou saltitante para se juntar a mim, agora com um drink de frutas cítricas e o cabelo em uma trança grossa, pousando do meu lado como uma fada. Nenhum músculo dela se desequilibrou.
Ainda com aquele mesmo sorriso, ela se inclinou no meu ouvido, suspirou e disse:
— Eu estava certa, o pilates está mesmo fazendo efeito em você.

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Dez e meia.
Eu sou capaz de abrir um buraco no chão a qualquer momento.
Nellie me fez usar esse vestido ridiculamente chamativo, porque “o vermelho é a cor que representa as paixões, do amor ao ódio, o desejo carnal dos renegados, não me faça reler esse texto inteiro, estou dizendo, é o vestido certo!” e agiu daquela forma que não, você não tem escolha nenhuma.
E atribuo a culpa totalmente a ele quando saímos para o quintal dos fundos naquela noite e fui bombardeada por alguns olhares curiosos e confusos, como se a Taylor Swift tivesse decidido aparecer de surpresa na festa particular. Não que eu fosse parecida com a Taylor, ou que aquilo ali fosse uma festa — era só a continuação da bebedeira de mais cedo —, mas ser encarada daquele jeito me fez ter uma rasa ideia de como devia ser uma estrela pop.
Tirei os sapatos para pisar no gramado, o que rendeu um olhar efusivo de Nellie — ela sempre dizia que eu não podia dar bobeira porque meus pés eram meu ponto fraco, ou devia estar me censurando internamente por causa do meu esmalte descascado. Caminhamos até a mesa retangular ao lado da piscina, que estava recheada do mais variado da cozinha coreana existente, ou seja: muita carne, muito macarrão e muita pimenta. Nada vantajoso para o meu estômago ainda não 100% recuperado do lutefisk.
A verdade era que eu estava exausta e todo aquele álcool da tarde tinha terminado de anestesiar todo o meu raciocínio. Tentei muito tirar um cochilo quando voltamos do barco, e o restinho de sono me abandonou por apenas 3 minutos, só pro meu cérebro registrar meu lindo e agradável quartinho no segundo andar, mas eu sabia no que estava metida antes mesmo de chegar ali. Nellie e sua energia perpétua de metaleira-barra-golden retriever jamais me deixaria perder um segundo que fosse de qualquer lugar onde poderíamos beber margaritas à vontade.
Então, depois de toda aquela cerveja, decidi encher uma caneca de café em cápsulas na cozinha — grande, linda e, até o momento, muito limpa —, e a mistura dessas duas coisas no meu estômago poderia acabar tão mal que o nome estaria pra sempre riscado de convites futuros do feriado. Mas eu precisava ficar acordada, e precisava estar um pouco ciente dos meus próprios movimentos para fazer aquilo hoje. Hoje. Se eu não fizesse hoje, nunca mais iria conseguir.
Então, o plano do momento era: pescar os petiscos mais apimentados do bufê improvisado daquela mesa, jogar pôquer com Yugyeom e não apenas assistir ao jogo (manter o cérebro ocupado, mesmo que eu fosse perder de qualquer maneira, não importa o quanto eu me esforçasse), dar uma volta discreta na piscina pra movimentar as pernas e rir das piadinhas de Jungkook, mesmo que fosse forçado. Ele não tinha um repertório bom que fosse além de “toc toc”.
Em resumo: precisava me manter equilibrada e não consumir absolutamente nada que me deixasse chapada de nenhum dos lados: nem café, nem álcool.
Os meninos pareciam felizes demais, com a sua tolerância quase genética para o álcool. Normalmente, essa felicidade toda levava ao karaokê — que já estava montado no jardim antes mesmo do passeio de barco. Jungkook e Mingyu tentavam reproduzir alguma coreografia maluca de algum grupo da segunda geração em frente ao telão borrado do projetor, mas eles estavam mandando bem mal (pra ser simpática). Mas estavam rindo muito e tinham até reunido uma pequena plateia, que estava dividida entre pedir por mais ou jogar rolinhos primavera nas costas queimadas de sol das nossas estrelas.
Eu meio que tinha dito que não era uma festa, mas, à medida que atravessei o gramado, mudei de opinião. Tinham mais pessoas, gente que eu nunca vi na vida, mas que parecia ser próxima o suficiente de alguém dos 5 para chamar mais algumas e ir costurando uma rede até ela se transformar em uma massa humana que cobria quase todo o gramado. Vi Eunwoo sentado em uma cadeira de madeira dobrável bem ao lado de uma mesa de sinuca, que estava sendo usada pra apoiar mais bebidas e as pernas perfeitas de dançarinas famosas que estavam inclinadas sobre ele, rindo de absolutamente tudo que ele falava.
Que ótimo. Nada surpreendente.
Não havia cadeiras vazias perto dele. Nada do que eu, ridiculamente, estava esperando — um lugar ao seu lado, um que ele guardaria pra mim, lógico, porque éramos melhores amigos, e era minha primeira vez ali, e eu tinha combinado certas coisas comigo mesma nos últimos dois anos, que eram: nunca, jamais, beber o bastante ao ponto de aceitar o microfone do karaokê de Mingyu. Nunca. Nem se todos nós fôssemos sequestrados pelo Predador e a única forma de não termos os cérebros arrancados fosse eu cantar Wish You Were Here do Pink Floyd.
— E agora essa vai… — a voz embriagada de Mingyu se espalhou por todos os lados quando ele virou para o seu pequeno público e arrastou a boca no microfone. Ele não demorou a ver Nellie comigo. — Pra minha namorada, a melhor do falsete descolado! Vem pra cá, delícia!
Ele apontou o dedo com uma euforia louca para Nellie, e a cena seguinte seria bizarra se não fosse tão normal. Com um grito animado, ela se colocou a correr e costurar todo mundo até chegar em Mingyu e literalmente pular no seu colo, passando as pernas ao redor de sua cintura com uma flexibilidade que me fez pensar se ela estava frequentando as aulas de yoga depois do meu pilates. Suas diferenças de altura eram de, no mínimo, uns 15 centímetros, e ela estava super produzida — produzida ao estilo Nellie de ser, o que significava que todos os seus pontos fortes estavam muito além da roupa — e ele um pouco suado e cheio de areia, mas isso não pareceu importar pra que trocassem um super beijo na frente de todo mundo. Em um segundo, Jungkook cedeu o microfone pra ela e abandonou o palco de bom grado, mudando a música no aparelho e jorrando as primeiras batidas de T.N.T. do AC/DC. Então, ele fez algo que quase todo o mini público sabia que deveria: sair dali. Porque Nellie Yohn estava prestes a cantar.
E ela não cantava nada bem.
Mas ela sabia gritar, o que já era tipo 40% da música inteira (que Bon Scott me perdoe).
Apesar de tudo, aqueles dois formavam uma dupla e tanto no palco, promovendo os próximos memes e figurinhas do grupo. A energia em abundância ali do meio foi o que tinha levado minha amiga a desistir da ideia de voltar para os Estados Unidos com seu curso de Belas Artes inacabado. Nellie tinha vindo parar aqui porque a sujeira e a competitividade do meio artístico de Nova York entraram na sua consciência, justo no momento em que estava se apaixonando por Lee Ufan, um grande pintor coreano com trabalhos expostos no MET. A partir dali, foi só pagar umas aulas e solicitar uma transferência para a Universidade de Seul, depois de dar só um telefonema para os seus pais, que estavam fazendo shows em pubs apertados na Nova Zelândia e concordaram com a ideia no meio de uma sessão de massagem tântrica.
Foi isso. Nem chegaram a perguntar quais planos ela tinha, ou “você acha mesmo prudente mudar de carreira depois dos 21?”, ou “Coreia do Sul? Enlouqueceu? E o seu diploma em Direito?”, ou ainda: “Seu tio não te ensinou nada sobre plano de carreira?”
Eu ainda tinha muita dificuldade em responder que a única coisa que meu tio tinha me ensinado era como pronunciar trebuchet, mas esse não é o lance. Minha melhor amiga teria minha admiração pareada com inveja eterna apenas porque conseguia ir de lá pra cá sem ser bombardeada com inquéritos, frustrações e expectativas que nunca pediu.
Puxei um palito e peguei um pedaço de tteokbokki em uma vasilha com molho vermelho, observando os dois rindo e cantando desengonçados, chegando à conclusão que eles zombavam um pouco da própria Matemática, porque como assim dois positivos se repelem? Quem disse isso nunca conheceu aqueles dois.
Por um momento, quis estar lá, sendo os dois, por mais esquisito que isso possa soar. Queria ser o sentimento pairando ali no meio, queria estar cantando I’m dirty, mean and mighty unclean, I’m a WANTED MAN apontando para alguém, sem ter vergonha ou medo de cair, sabendo que a atitude significava basicamente: eu amo você, da camada mais sexy à mais idiota. Também significava que ela o chamaria para o quarto um minuto depois, porque o estímulo rock ‘n roll a inspirava de algum jeito nessa parte. E Mingyu ia, é claro, porque ele não lutava contra Nellie ou contra essa coisa enorme que envolvia os dois, como eu fazia na minha própria bolha.
Olhei de novo para Eunwoo, que estava sendo muito habilidoso em uma conversa bastante longa com uma garota que puxou um puff vermelho para se sentar ao lado dele, uma que ele não pediu licença ou avisou que aquele lugar já tinha dona — soa meio ridículo, mas foi o que ele fez em um dos restaurantes que fomos com Nellie e Mingyu e outros amigos dela para comemorar sua nova exposição no Daelim Museum. E tudo bem que ele confessou mais tarde que, na verdade, só fez isso porque queria se livrar de uma das garotas que Mingyu estava querendo “colocar na conta dele” — o que fez Mingyu passar mais de 3 semanas na minha lista negra, não que alguém soubesse disso —, mas ela era muito insistente e ele quis fugir. Mesmo assim, contava, não contava? Ele queria afastá-la e pensou em mim imediatamente. Eu era sua luzinha de esperança, alguém que sempre seria minimamente agradável pra ele, mesmo que não conseguisse andar de um lado para o outro três vezes sem esbarrar em alguma coisa ou passar um constrangimento.
Eu era importante para Dongmin, e não estava afim de começar a duvidar disso hoje, logo hoje, e por causa de meia dúzia de mulheres lindas que combinavam com ele mais do que uma taxa nominal combina com quem não entende a inflação.
Ele finalmente virou um pouco a cabeça e olhou pra mim, lançando aquele sorrisinho icônico que geralmente disparava uma corrente de ar quente desde o meu ombro até bem abaixo das coxas. Gostava de pensar que era um sorriso só meu, mas não sabia até onde a névoa de apaixonada me enganava aí. Qualquer pessoa poderia dizer que ele estava mostrando a mesma fileira de dentes até para os cães de rua.
Mas eu ganhei um sorriso, o que era bom. Considerando que mal tinha trocado 10 palavras comigo no caminho de volta para a casa e fugido do meu olhar mais vezes do que isso depois da minha queda vergonhosa no convés, demonstrava que ele já tinha superado a visão da minha bunda exposta em um biquíni pequeno demais para os padrões e já já voltaria ao normal.
Até lá, voltei a olhar a mesa de comida, espetando três pedaços de tteokbokki no mesmo palitinho e colocando tudo na boca quando vejo um braço longo se esticando ao lado dos meus ombros, indo direto para a bacia de garrafas de água.
Me virei casualmente e dei de cara com Jaehyun, olhando pra mim lá de cima, com seus um-e-oitenta-e-tantos e a feição neutra de sempre.
Não sinto nenhum orgulho do tempo que levei pra perceber que eu estava com as duas bochechas cheias igual um esquilo e finalmente desviei os olhos envergonhada, puxando um guardanapo.
— Ah… oi. — dei uma pausa na mastigação desesperada, sentindo uma gotinha de molho vazar pela lateral da minha boca e descer rápido até o queixo. Limpei na mesma hora, forçando tudo pra dentro. Mesmo assim, não deu pra esconder a bagunça na minha cara. E Jaehyun continuava me olhando, dessa vez até um pouquinho entretido, se certificando que eu terminasse o show.
Devia ser ótimo mesmo observar alguém em um momento tão humilhante.
— Oi. — ele disse finalmente, assim que engoli a última porção da comida. — Você deixou isso cair mais cedo.
Ele enfiou uma mão no bolso da frente da calça cargo e puxou de lá minha pulseira de Praga, estendendo pra mim.
Raspei o pulso no vestido, percebendo só agora que ele estava nu, sem aquela coisinha brilhante e cara que me fez usar o cartão de crédito com peso na consciência, mas antes que eu pudesse pegá-la de volta e agradecer, notei outra coisa: a tala preta e apertada presa em volta da outra mão dele, a que não estava sendo usada para me devolver nada.
Entrei em um quase pânico.
— Meu Deus, o que aconteceu? — quando vi, já estava fazendo: tocando seu antebraço e puxando a mão machucada para a luz. — Isso foi de hoje? Foi quando eu caí? Eu machuquei você?
Arfei. Vi o maxilar dele trincar como antes, e seus olhos cravarem no ponto exato onde meus dedos o tocavam de um jeito intenso que me fez perceber a besteira que eu fiz. Larguei ele imediatamente.
— Desculpa. — murmurei, engolindo em seco. — Olha, eu sinto mui-
— Isso não foi você. — ele respondeu na sua voz grave, abaixando o braço com a tala bem devagar. — É um pensamento um pouco desproporcional, inclusive. Você não é um barril de pólvora, não deslocaria meu pulso nem se quisesse.
Jaehyun voltou a estender a pulseira e guardou a mão com tala no outro bolso da frente, remexendo um timbre metálico que deviam vir de suas chaves do carro, o grande Kia Stinger GT prateado que estava estacionado na entrada como os outros.
Limpei a garganta e peguei a pulseira, tentando não pensar em quanto pesava um barril de pólvora.
— Tudo bem, se você diz…
— Fica com isso também. — ele passou a garrafa de água que tinha pegado para a minha frente na mesa. — Parece que você precisa.
Olhei da garrafa para ele. Parece que preciso? Como é a cara de alguém que parece estar precisando de hidratação?
Ignorei as bochechas queimando e peguei a garrafa.
— Obrigada. — eu acho? — Não só por isso, mas por hoje no barco. E o cinto de segurança também.
Ele olhou pra mim por um tempo, talvez o maior tempo que já tenha me olhado sem desviar os olhos, e só então balançou a cabeça devagar.
— Não foi nada, só quis ajudar.
— E ajudou. Talvez você estivesse escrevendo seu nome no meu gesso agora mesmo se não fosse aquele ato heroico.
— Eu estava por perto, foi automático.
— Não estava, não. — uma pequena risadinha escapou da minha boca e vi seu rosto ficar indistinguível. Ele não apenas não sorriu de volta como apoiou a mão boa na mesa e começou a mexer com as farpinhas de madeira escapando do tampo distraidamente, fazendo aquela coisa de novo de não olhar pra mim.
Fiquei com a sensação de ter dito algo que não devia. Quer dizer, eu sabia que ele não estava por perto, porque estava muito ocupado secando o restante do convés, mas Jungkook gritou que ele tinha corrido, e, honestamente, essa ideia era tão esquisita que eu preferia me agarrar ao que realmente tinha visto: ele e sua pequena terapia de limpeza no fim da tarde tediosa.
Mas meus neurônios exaustos não eram tão confiáveis.
— Ou talvez estivesse. Assim como estava no cinto e tudo mais. — complementei apressada, encarando aquele rosto sempre sério que nunca me deixava saber o que estava pensando. Não que eu fosse boa em adivinhar esse tipo de coisa nas outras pessoas, mas Jaehyun parecia propositalmente puxar a cortina toda vez que eu tentava olhar pela frestinha, deixando sua postura bem clara: Aqui não, . Por aqui você não vai entrar.
Minto, talvez ele não coloque meu nome no meio dessa frase. Às vezes, eu genuinamente pensava que ele não sabia meu nome, porque nunca o usava. A única vez que me lembro foi quando o conheci naquela festa de Jungkook há 3 anos e Eunwoo nos apresentou. “Essa é a , meu duende do Gringotes.”
“Minha nossa, cala a boca. Oi, você pode me chamar de .”
Estendi a mão. Ele olhou pra ela por um tempo maior do que o normal até apertá-la e dizer:.” Pronto. Só isso. Sem um “é um prazer te conhecer” ou “um duende? Então você já tem a fantasia perfeita pro Halloween.” Não. Ele repetiu meu nome, quase como se estivesse experimentando cada letra dele, e pronto. Depois, quando ele queria falar comigo, era sempre daquele jeito: chegar e falar. Às vezes era pra me mandar um recado, dizer que alguém estava me chamando ou simplesmente um Oi obrigatório que ele tinha que me dar porque eu era o mais novo mascote de seu grupo de amigos e ele tinha que suportar isso. No fim, tenho certeza que Jaehyun esqueceu ou simplesmente não dava a mínima para o que estivesse escrito na minha certidão de nascimento.
De qualquer forma, era desse jeito que ele estava me olhando naquele momento: sério, arredio, quase como se preferisse que eu me esquecesse de sua ajuda.
— O cinto. É. — ele esticou a mão boa para uma cerveja em lata, e a sombra de um sorrisinho apareceu no canto da boca. — Você tava comprando uma boa briga com ele. Se eu não fizesse nada, ele poderia até te golpear.
Arqueei a sobrancelha na mesma hora em que tentei rir. Jaehyun estava me zoando? Brincando comigo?
— E essa não seria a primeira vez. — respondi com uma careta. — No meu primeiro emprego, sentia alguém chutando minhas pernas por baixo da mesa por um tempão. Achei que eu não podia reclamar ou coisa do tipo, então fui deixando, até perder a paciência um dia e descobrir que os cabos da internet estavam todos misturados ao gerador do ar-condicionado, e tudo estava ali no meu pé. Minha colega riu tanto que nem se preocupou em ficar aliviada por eu estar viva.
Dei de ombros. Ele apoiou a lata e puxou seu lacre com uma mão, atento aos detalhes dessa ação sem virar os olhos pra mim, mas vi o sorrisinho aumentando. Aumentou tanto a ponto de deixar a primeira curvatura das covinhas aparecerem.
Meu Deus, nunca tinha visto esse evento tão comentado na internet acontecendo ao vivo.
Quando ele levantou o queixo pra me olhar de novo, ainda estava sorrindo.
— Isso foi… memorável de se ouvir. Mas também foi preocupante. Essa empresa ainda funciona?
— Fecharam depois que o chefe foi pego atirando pranchetas nas pessoas quando não gostava das planilhas delas. As pessoas em Mapo-gu são meio malucas.
— Meus pais são de Mapo-gu.
Merda.
— Hã… então espero que eles não danifiquem a vértebra de ninguém quando reclamam do som alto da TV? — falei cada palavra como se estivesse sendo sufocada. A expressão de Jaehyun não mudou por uns bons 5 segundos, 5 tortuosos segundos até algo inacreditável acontecer.
Ele riu. Riu de verdade, sem o “quase” ou a impressão de rir; até os dentes apareceram. As covinhas na íntegra deram um soco na minha cara, e agarrei a garrafa de água que tinha ganhado com até um pouco mais de força.
O sorriso dele era bem bonito e contagiante. Eu sabia que estava retribuindo aquilo mesmo sem perceber; era tipo olhar aqueles vídeos de mini coelhinhos correndo pelo campo em câmera lenta: uma beleza e fofura tão intensa que nenhum ser humano é capaz de resistir.
— Eu tô brincando. Meus pais moram em Jongno-gu. E lá as pessoas não têm o costume de atirar coisas nas outras por aí.
— Sério? Nem uma caneta? Um papel toalha? — abri a garrafa. Jaehyun negou com a cabeça, aquele sorriso cintilante indo para trás da latinha cinzenta quando ele a colocou na boca. Foi tipo como se alguém tirasse um holofote da tomada. — Caramba. Fiz uma entrevista de emprego lá uma vez. Foi bom não ter passado, não tava afim de perturbar a paz de uma área residencial sem paredes pichadas.
Ri um pouco da minha própria piada, mas ficou bem claro que ele não entendeu muito bem. Suas sobrancelhas se juntaram no meio da testa, aquela mesma expressão solene voltando. Pelo menos ele não estava trincando o maxilar.
Suspirei, meio dramática.
— Você já ouviu falar na lei de Murphy? — perguntei. Ele inclinou a cabeça levemente para o lado, assentindo. — Não é um conceito científico nem nada, mas quando esse nerd desgraçado dos anos 40 decidiu julgar o universo por conta própria, o Cosmos respondeu. A partir de então, algumas pessoas nascem sabendo pintar como o Van Gogh, colocar a perna atrás da cabeça ou atingir sopranos incríveis como a Adele, enquanto outras prendem o dedo na impressora da escola e levam 5 pontos. Ou vão abrir um vinho e atingem o olho de uma senhora de 94 anos. Ou quase provocam um incêndio no apartamento no primeiro dia em que tentou fazer um lámen. Consegue entender? — Jaehyun apenas arqueou uma sobrancelha. Eu bufei. — Qual é. Eu. Síndrome de Murphy. Azarada. Nuvem negra. A 5º cavaleira do apocalipse.
Ele fez uma cara de quem estava tentando não rir, bebendo mais um pouco da cerveja.
— É isso que você acha? Que é um radar de desgraças ambulantes?
— Meio que o meu histórico deprimente me faz ter certeza. Você acredita nisso tudo?
— Na Lei de Murphy? Claro, o Kenny morto por um bebê alienígena não deixa dúvida. — e então, vi uma avalanche de risadas chegando, mas ele só deixou as extremidades da boca se mexerem, balançando a cabeça em seguida. — Desculpa, eu não sei se você…
— Acabou de fazer uma piada sobre South Park? — interrompi, porque ainda estava num estado muito ingênuo de surpresa.
Jaehyun semicerrou os olhos por um segundo.
— É, parece que eu fiz.
— Irado! — arfei, e esperava muito, pela graça do Senhor, que meus olhos não estivessem com aquele brilho de empolgação que sempre ficavam quando alguém falava sobre coisas que eu gostava sem fazer careta. Digo, existia muita gente que comprava pôsteres e capacetes de South Park, mas geralmente eram homens de meia idade reclusos ou pré-adolescentes que acham graça em toda produção 2D que falasse sobre sexo e punheta. — Não achei que você curtia esse tipo de coisa. Quero dizer, não achei nada sobre você, minhas opiniões são aleatórias, mas South Park é cheio de ofensas e autodepreciação, e coisas meio nojentas, tipo gore entre idosos, orgia alienígena, zoofilia e… — puxei o ar. — Acho que tô bêbada.
Ele passou uma língua distraída nos lábios finos e desenhados, franzindo um pouco o cenho.
— É, eu também.
Não pude responder a isso. Pra mim, Jaehyun não parecia nem um pouco bêbado, porque bêbados não articulam frases tão bem e geralmente estão ocupados correndo, pulando ou enterrando uma latinha vazia no meio do chão, dizendo que iriam brotar e fazer mais um monte de latinhas cheias (Yugyeom, 1 ano atrás, festa de aniversário da Nellie. Longa história). Mas, pensando bem, eu não tinha conhecimento de Jeong Jaehyun bêbado, e talvez pudesse acreditar naquela história se considerasse que ele estava ali, rindo e falando comigo. Duas coisas que ele só faria sob efeito de um psicotrópico.
Nossa, isso era bem deprimente.
Sendo assim, já comecei a avaliar minhas opções de sair dali quando um breve silêncio se instalou, mas Jaehyun falou na frente:
— Essa lei de Murphy… pode até não ser uma ciência exata, mas ainda é uma lei, né? Ela é quase a estrela principal de Interstellar junto com o Matthew McConaughey. Na verdade, ele diria até que você está discriminando os processos do universo. Mesmo que o universo dele tenha praticamente acabado… — Jaehyun franziu a testa, olhando rápido pra mim antes de beber mais um gole da cerveja. — É um paradoxo. Você atingiu alguém com uma rolha de champagne, e o osso zigomático dela voltou pro lugar. Aquela senhora pode ter ganhado mais uns 3 anos de vida, sabe?
Um súbito pico de felicidade comprimiu meu peito em uma contração involuntária e surpreendente. Em resumo: meu sangue correu a uma velocidade parecida com a de um Phelps quando ouvi Jaehyun falar Interstellar.
E eu nem gostava desse filme.
Quero dizer, eu nem queria gostar.
— Ah… Nossa. — pisquei algumas vezes, passando a cerveja de uma mão para outra. — Obrigada por tirar esse peso da minha consciência. E esse discurso foi ótimo, um pouco apelão por usar um filme do Christopher Nolan, já que eu sou do time do cinema pobretão que usa ketchup pra fazer sangue. Na verdade, eu e o… — travei, automaticamente olhando para a mesa de sinuca.
Eunwoo ainda tagarelava com a mesma garota, que tinha chamado outra e mais outra para se reunirem em volta dele como uma cirandinha de tiro ao alvo — elas claramente fazendo suas jogadas, e esperando os resultados com base nas reações dele: se ria por mais de 3 segundos = 1 ponto; se ele apenas inclinava a cabeça e sorria pouco = não muito promissor.
Eu geralmente não tinha muitas opiniões sobre Eunwoo e sua vida amorosa — que de amor não tinha nada, já que ele era um grande fã de relacionamentos que duravam 60 horas no máximo, e que se passavam dentro das 4 paredes de um apartamento —, mas gostaria muito que hoje ele pensasse que aquelas garotas não eram uma boa ideia. Não porque não fossem lindas e delicadas, mas porque era o meu dia de falar.
E seria meio patético se declarar pra alguém depois de ele ter dormido com outra pessoa.
Ele levou só alguns segundos pra virar a cabeça pra mim, mostrando que, de alguma forma, estava prestando atenção em onde eu estava. O pastor tentando não perder a sua ovelha.
Desviei o rosto de novo, pegando Jaehyun olhando pra mim. Minhas bochechas arderam por um momento.
— Desculpa, você disse alguma coisa?
Fui encarada por mais um tempo, a expressão no rosto dele inescrutável, e dessa vez me perguntei se ele tinha percebido alguma coisa, percebido que eu estava com uma vontade explosiva de afastar aquelas garotas de Eunwoo como se eu fosse a bola de boliche e elas fossem os pinos.
Se foi isso que ele viu, não demonstrou. Mas a ruguinha de sua testa estava de volta e, sem falar nada, ele puxou o prato de tteokbokki para a minha frente junto com outro cheio de queijos fincados com palitinhos.
— Estou parecendo faminta, né? — soltei uma risada constrangida, aceitando a gentileza estranha, evitando mais pimenta do tteokbokki e puxando um queijo quadrado.
Ele não me respondeu imediatamente, mas também não saiu dali, o que estava começando a me deixar confusa. A mão machucada se movia pouco, e ele deve ter acabado com aquela latinha de cerveja só naqueles minutinhos de conversa que trocou comigo, o que poderia significar que estava mesmo um pouco bêbado. Será que ele estava esperando que eu saísse primeiro?
Considerando que eu ainda não queria ficar de plateia para Eunwoo e nem furar a bolha romântica e barulhenta de Nellie, continuei ali.
— Você tomou algum remédio pra isso? Soube que analgésicos com álcool podem fazer um estrago na cabeça. — falei de repente, indicando sua mão com o queixo, me lembrando da notícia de um cara que levantou uma cômoda com um braço só depois de ter misturado Fentanil e whiskey. Eunwoo tinha lido em um site de notícias venezuelano, então concordamos que aquele exemplo não era nada que sairia em um artigo científico.
Jaehyun tombou a cabeça levemente para o lado.
— Não se preocupe com isso. Onde você estava mesmo? Noruega? — deu de ombros, depositando alguns pedaços de carne e folhas variadas em outro prato, também passando pra mim. — Fez algo de interessante por lá?
Eu não precisava perguntar como ele sabia onde eu estava (Eunwoo contaria até para o cara do pedágio caso ele perguntasse), mas não esperava seu interesse pelo assunto. Por um momento, quis perguntar a ele se não tinha nada, absolutamente nada com que preferisse passar o seu tempo naquela festa ao invés de perder tempo comigo, mas ele se vestiria de sua educação impecável e neutra e continuaria no mesmo lugar. Talvez pra provar aos outros que ele era, sim, capaz de ser bonzinho com a novata.
Que se dane.
— Eu… fui a trabalho. — respondi, e antes que eu percebesse, estava falando pelos cotovelos. Até mesmo quando troquei os documentos finais do acordo entre as duas empresas e me destrambelhei ao entrar no carro do meu chefe na volta pro hotel. Quando você coloca álcool demais dentro de um corpo exausto de 12 horas de voo, que revezou a alimentação entre biscoito cream cracker murcho e café, as coisas começavam a acontecer meio fora do seu consentimento, como se eu fosse aquela sombra difusa que resta do Flash depois que ele dá a largada. Não prestei muita atenção no rosto de Jaehyun enquanto eu falava, mas ele não parecia entediado ou arrependido por ter aberto uma brechinha para que eu falasse.
Na verdade, se eu não estivesse tão desatenta, diria que ele estava sorrindo. E caramba, nunca vi esse cara sorrir tanto, mesmo que seus lábios mal abrissem direito.
Só podia significar uma coisa: ele me achava lamentável. Patética, sim, já tinha chegado nessa conclusão, mas depois de eu apontar minhas dificuldades com fontes textuais em tamanho menor que 14, ele já estava atualizando suas opiniões.
Não sei como me sentia em relação a isso. Os pontos de vista de Jeong Jaehyun nunca me importaram — devo tê-lo visto um total de 6 vezes nos últimos 3 anos, e sabia separar muito bem minha admiração pelo seu trabalho com a quase indiferença à sua pessoa. Conviver com celebridades tornava essa troca cada vez mais fácil e automática. Mas, quando estávamos juntos em uma dessas situações, eu gostava de pensar que conseguiria driblar aquela parede que ele erguia para mim e que finalmente trocaríamos algumas palavras decentes, nem se fosse fingimento pelo bem do grupo. Mas, bom, nem preciso dizer como era difícil chegar nessa parte. Principalmente depois que ele me dava aquele longo primeiro e único olhar da noite (um olhar completo, que não me dizia nada, mas que parecia tirar coisas de mim) e eu automaticamente esquecia da ideia e passava a fingir que ele não estava ali.
Em resumo: dar oportunidade pra conversar por muito tempo com esse cara parecia com abrir a porta do seu restaurante para um crítico gastronômico: por mais que você saiba que faz um ótimo salmão, ele sempre vai colocar um defeito.
Mesmo assim, me permiti ficar ali, me doando naquele protótipo de conversa porque de uma coisa ela estava servindo: me distrair um pouco do harém de Eunwoo e também da cantoria devastadora dos nossos amigos no karaokê, que já tinham trocado para Blue Öyster Cult e passado para a fase onde Mingyu juntava os dedos na frente da barriga e fingia tocar guitarra.
— Dizem que dá pra ver a aurora boreal em Svalbard. — Jaehyun falou distraído a seja lá qual dos milhares de assuntos eu tinha emendado um no outro. — Você chegou a tentar?
Surpreendentemente, eu tinha.
— Ainda era agosto, então não ia adiantar. — respondi, dedilhando outra lata de cerveja, mas sem exatamente pegá-la. — Os funcionários do hotel disseram que se eu visse uma nessa época, seria muito sortuda. Daí eu entendi o recado.
Mas isso não tinha me impedido de me enrolar numa mantinha e sentar na sacada do meu quarto minúsculo no 6º andar, olhando para o céu em busca desse sinal que eu tinha decidido ser o responsável pelos meus próximos passos: contar para Eunwoo ou não? Correr o risco ou não?
É claro que o céu continuou da mesma cor e a minha porcentagem de sorte nos mesmos níveis subterrâneos da estratosfera, mas decidi do mesmo jeito. Depois de me dar conta do caminho que tinha percorrido desde Lisboa até Seul, passado por dezenas de entrevistas de emprego humilhantes, trabalhado mais do que um estagiário em empresas duvidosas onde os chefes eram agressivos e guardavam potenciais canivetes nas gavetas e ouvir da sua própria mãe que você não era inteligente o bastante para a área de finanças, considerei que estava calejada de tribulações e merecia me arriscar em mais alguma coisa que não tinha garantia nenhuma, porém com 0,1% de chance de sucesso: me declarar para o meu melhor amigo. Ignorando o fato de que isso poderia estragar tudo.
Jaehyun me encarou mais um pouquinho até mexer em outra garrafa de água, olhando pra ela como se fosse o elemento mais interessante da festa. Alguns aneis brilharam nos seus dedos longos, e me lembro de já ter dito para Nellie o quanto achava as mãos dele bonitas. Talvez o único elogio que já tenha feito sobre ele em voz alta.
— É uma pena. Eu lembro do Monte Ulriken. No inverno, as pessoas sobem até lá achando que vão conseguir ver alguma coisa, mas tudo é só névoa e neve. Conheceu outros lugares?
— Alguns. Geralmente o que se dá pra ver da janela de um prédio. Umas montanhas altas, um rio bem longe, alguns balões. Ah, espera, você disse que se lembra? — apontei para o entorno do lugar, meio distraída, como se tentasse pegar a fala dele antes que ela desaparecesse. Jaehyun assentiu ligeiramente.
— Fui pra lá uma vez. Achei que conseguiria ver a aurora boreal pegando o teleférico do Monte Ulriken às 11 da noite, mas não deu muito certo. Você já pegou o teleférico?
— Ah, isso… — abri a boca, pensando em como explicaria que nunca, jamais, entraria numa coisa que, além de se elevar há vários metros do chão, ainda tinha a chance de parar de repente e simplesmente soltar a trava de segurança.
Mas não concluí o que diria, porque uma voz saiu na frente:
— Ela tem medo de altura.
Eu e Jaehyun olhamos para o lado no mesmo momento. Eunwoo terminava de secar um copo enquanto nos encarava fixamente, agora de pé e sem rastro de feromônios atrás das costas. Contive a vontade de revirar os olhos.
— Eu não tenho medo de altura. — retruquei. — Tenho medo de ligas de alumínio e aço inoxidável sem manutenção. A surpresa de descobrir um problema desses pode ser literalmente a sua última.
Dei de ombros, convicta no meu argumento, e olhei pra Jaehyun de relance. Ele havia tirado a atenção de Eunwoo e voltado para mim, agora com todos os traços que eu já estava acostumada: maxilar travado, postura rígida e cada metro quadrado do rosto sério como um membro do governo. Nada novo sob o sol.
Mas acho que, dessa vez, fiquei um pouco… decepcionada.
— Blá blá blá. Quem liga? Você tem medo até se a Coca-Cola chia demais. — Eunwoo se aproximou até passar o braço pelo meu ombro, como sempre. — Quais histórias mirabolantes ela tava te contando, Jae? Se deixar, ela meio que não para de falar. Já falei pra ela abrir um podcast chamado : X dias sem desgraças. Talvez desse um pouco de trabalho pra editar.
Trinquei os dentes quando acertei as costelas dele com meu cotovelo, com uma força inútil de quem estava sentindo o corpo formigar tanto que mal conseguia se manter de pé direito.
— Idiota. — murmurei, voltando a olhar Jaehyun, que agora tinha se afastado um pouco para trás e estava com a lata de antes na mão. Não tinha um único traço de sorriso no seu rosto, mesmo que Eunwoo estivesse com o seu à mostra e eu e minha letargia bêbada não podiam fazer nada a não ser imitá-lo. Infelizmente, eu tinha vontade de rir toda vez que ele ria, mesmo quando tinha acabado de me envergonhar.
— É… acho que vou dormir, o dia foi cheio. — Jaehyun anunciou, começando a se afastar da mesa.
— Dormir? Que história é essa? Acabamos de começar. O barril de Pilsen ainda nem chegou. — Eunwoo protestou, balançando a cabeça.
Jaehyun deixou um sorrisinho aparecer, um que ele costumava mostrar para os amigos.
— Se for tão bom assim, vou ouvir os gritos e descer de novo.
— Vou fazer você beber de cabeça pra baixo igual em 2017 no porão dos meus pais.
— Se prometer não colocar limão, eu bebo qualquer coisa.
Os dois trocaram uma risadinha cúmplice até a expressão de Jaehyun voltar à mesma estaca zero e ele me lançar um olhar demorado e dizer apenas:
— Boa noite pra vocês.
E saiu com sua última latinha, andando para dentro da casa naquela imponência de delicadeza de movimentos que eram tão bem articulados que parecia até que ele estava atravessando uma passarela 24 horas por dia, ou ensaiando pra estar em uma.
Não percebi que fiquei olhando até ver Eunwoo entrar no meu campo de visão, olhando pra mim sob aqueles cílios bonitos e especialmente longos naquela noite, combinando bem com sua camiseta azul escura e os jeans pesados, quase escondendo seus pés descalços em cima do gramado.
— O que tá rolando com você? — ele disse quase em um murmúrio pra si mesmo, puxando de volta todos os pratos de comida da minha frente devagar e indo direto no queijo.
— O quê? Nada. — ri pelo nariz, franzindo o cenho. — Eu tô normal, eu não tava olhando, nem… eu não estava. Será que eu machuquei ele? — a pergunta saiu automática da minha boca. Foi a vez de Eunwoo não entender. — A mão dele com a tala. Eu não sabia que tinha caído com tanta força, me senti m-
Eunwoo demorou pra ligar as engrenagens até se tocar do que eu estava falando e simplesmente riu alto.
— Aquilo não foi você. É só a lesão dele, volta a doer de tempos em tempos. Deve estar bom amanhã.
Ele respondeu com tranquilidade, enquanto eu esbocei o que era claramente uma expressão curiosa. Não choque, só uma… curiosidade.
Mas não perguntei nada pra Eunwoo. Porque ele tinha voltado a ficar parado e me olhando eternamente.
Tinha algo de estranho nele. Ou na forma que estava me olhando. Tentei dar uma girada de cabeça e procurar as garotas de antes, mas elas tinham desaparecido, e ele parecia concentrado em encher sua caneca de vidro com mais cerveja enquanto continuava com uma pupila dilatada pra cima de mim (isso talvez tenha sido por causa do baseado que andava pulando de mão em mão por aí). Já estava começando a me irritar.
— O que foi? — grunhi, de repente sentindo a necessidade de ajeitar o cabelo. — Tem alguma coisa na minha cara? Estou com o nariz vermelho?
— Não, mas por que o seu vestido está? — ele retrucou de imediato, apoiando o quadril na borda da mesa. E então, fez uma coisa que desmantelou o que restava da minha inteligência: ele desceu os olhos pelo meu corpo inteiro, captando e incinerando cada centímetro de pele que podia ver, me tocando sem exatamente me tocar, e isso ativou um curto-circuito nas minhas terminações nervosas. Eu quase tinha esquecido que estava usando esse vestido, e várias emoções diferentes estavam lutando pra ver quem tomava conta do meu rosto primeiro: a vergonha, surpresa, confusão, todas elas.
Tentei rir. Era o único jeito de contornar mais uma piadinha que ele faria sobre as minhas roupas, é claro.
Mas ele não riu. De novo. Foi mais estranho do que sua reação no barco.
— Empréstimo da Nellie. Acho que ela odeia minhas roupas mais do que você.
— Nunca disse que odeio suas roupas. — Eunwoo respondeu, e não se mexeu um centímetro sequer.
— Tudo bem, senhor “jardineiras são pra garotinhas”, ou “tiaras são atestados de virgindade”. O seu sonho é me mandar pro Queer Eye.
Esperei sua rebatida, mas Eunwoo permaneceu ali, sem demonstrar qualquer interesse em discutir, torcendo a boca como quem não concorda com o que ouviu.
— Com esse vestido você está bem longe de parecer uma garotinha. — declarou, o tom de sua voz baixando várias oitavas, se transformando quase em um sussurro.
Tirei o sorriso na hora. Ficou bem claro que suas palavras não eram um ataque à minha vestimenta, e isso era meio estranho.
— Você não se vestiu assim em nenhuma Sexta da Framboesa.
— É, acho que esse estilo não combina muito com ficar embaixo de um edredom no sofá comendo salgadinho de queijo.
— É, não combina mesmo. — suspirou, olhando os próprios pés por um instante. — Não tô acostumado com isso, eu acho.
— Com me ver bonita?
— Em não te ver debaixo de um edredom na sexta-feira. Qual é o próximo filme da lista mesmo?
Ignorei a bagunça e o redemoinho de coisas que aconteceram dentro do meu estômago quando ele disse aquilo e naquela voz, me fingi de idiota, e esperava que aquele arrepio que desceu pelos meus braços não fossem tão visíveis assim.
— Ahm… Domínio Alien, eu acho. — limpei a garganta, esfregando o antebraço distraidamente. — Não me diga que quer assistir agora.
— Você não quer? — sua voz saiu abafada, espremida por um impulso que mal reconheci. Tornou aquela tarefa de fingir normalidade praticamente impossível.
Tentei engolir em seco, mas eu não tinha saliva pra isso. Pensei em começar a rir pra dispersar, mas o olhar dele estava sério demais. Eu e Eunwoo assistindo um filme juntos hoje, talvez no meu quarto, e ele me olhando como olhava agora…
— Ah, qual é. — forcei a risada a escapar do meu nariz, quebrando a bolha de tensão com um soco. — Assistir um bando de caras com maquiagens horríveis em cenas de muita luz estroboscópica depois de 12 cervejas e um beck? Vou estar te protegendo dizendo não.
Ri mais um pouco, bebendo quase toda a água daquela garrafa de uma vez só, desejando por um segundinho que eu morresse afogada com ela. Que merda eu estava fazendo?
Ele voltou um pouco a si, abrindo aquele mesmo sorrisinho frouxo de sempre.
— É, você tá certa. Que ideia idiota. — Eunwoo pousou a garrafa de cerveja no tempo da mesa, umedecendo os lábios. — Então, eu vou… sei lá, acho que vou subir. Não tinha me tocado que foram 12 cervejas.
— Já vai subir? — arfei, surpresa.
— É, pois é. Eu dançaria com aquela professora de yoga bem ali, mas é possível que uma tragédia aconteça, e dessa vez nem vai ser com você, . — ele deu de ombros e encarou a mesa ao lado. Depois, estava esticando o corpo sobre ela e puxando um prato grande e redondo com pedaços de bolo já cortados. — Aqui. Você gosta de um doce depois do jantar, mesmo que tteokbokki esteja longe disso, mas valoriza a intenção. Eu que pedi pra fazerem esse. Não sei se é bom, mas pelo menos não tem chocolate. — recebi um peteleco amigável nas costas da mão, uma coisa que ele fazia de vez em quando ao pensar que fez alguma coisa que merecesse um parabéns, tipo um cachorrinho pedindo petisco. Na eventualidade dessas coisas, eu tinha sempre um sorriso e uma piadinha pronta, mas ali era diferente. Meu cérebro estava tão lento que não estava formando as frases que eu precisava. — Curte um pouco a festa, tá bom? A gente se vê amanhã. Boa noite, .
E ele simplesmente foi embora.
Acompanhei suas costas por mais tempo do que o normal, olhando para o leite se derramando entre os meus dedos sem entender em que horas a jarra quebrou. Minha cabeça não estava entendendo nada. Não foi o bolo-sem-ser-chocolate, ou pelo “boa noite”, ou pelo lembrete da Sexta da Framboesa, não. Eu e Dongmin vivíamos desse jeito, dois números inteiros e divisíveis apenas por eles mesmos estampando cálculos puros. A rotina que definia nossa amizade não era perfeita, mas era constante, sem muitas mudanças bruscas. Mas tinha, sim, alguma coisa estranha hoje. Porque ele estava me olhando diferente, e por mais que eu quisesse excluir o episódio do barco dos registros da Terra, não conseguia parar de pensar que tinha algo a ver.
Minha nossa, Eunwoo estava tão traumatizado assim com a visão da minha bunda? Estava tentando decidir se era uma boa bunda ou enojado por ser minha?
Independentemente do que fosse, encarei o bolo por muito tempo antes de comê-lo. O comportamento diferente dele havia causado coisas em mim, coisas que eu já sabia, já tinha aceitado, mas em algum momento daquela noite decidi adiar.
E de repente mais uma cerveja não pareceu uma má ideia.

𓆝 𓆟 𓆞


Era agora, eu sabia que era.
Minha cabeça girava, mas eu sabia onde estava pisando. O texto dançou na minha cabeça o dia inteiro, um monte de palavras empilhadas e acumuladas pelo tempo, que agora teriam que ser colocadas pra fora de qualquer maneira.
Eu sabia o que diria. E seria rápido, sem rodeios, assim como era tudo na nossa relação — tirando as vezes que ele me perguntava sobre o que eu achava do tapete novo da sua sala, e até hoje não tinha conseguido responder que era muito parecido com o vômito de alguém que comeu 20 cachorros-quentes.
Eu só precisava chegar na droga do quarto.
Subi degrau a degrau, caminhando na direção do número 6, fazendo tudo isso com uma lentidão maior que o normal. Um quase tropeço no meio do corredor me fez parar e me perguntar se eu tinha mesmo que fazer aquilo hoje — não que estar com o dedinho do pé esquerdo inchado fosse motivo pra não fazer alguma coisa —, mas não ia deixar a exaustão roubar o restinho da minha lucidez. Porque é dela que eu precisava pra completar aquilo. Talvez se estivesse 100% lúcida, não conseguiria encarar (verdade seja dita).
Parei em frente à porta do meu quarto e olhei para a frente, encarando a maçaneta da suíte vizinha. Comecei a imaginar o cenário: ele deitado sem camisa, ainda mexendo no celular, usando aquela calça de moletom azul que devia ter desde os 16 anos, a respiração tranquila esperando o sono chegar, a brisa quase gelada que vinha das suas janelas com vista para o mar, a ideia súbita de ir tomar um vinho na banheira, e “olha só, , que surpresa te ver aqui. Quer me acompanhar?”, ou “Ah, é sério que esqueceram de colocar uma cama no seu quarto? Que lástima! Vem, dorme aqui na minha, ela é bem grande. Talvez, se tirar as roupas, vai ganhar até um espaço extra…”
Dei um tapa na minha cara. Foco, garota! Tá apressando as coisas.
Talvez eu devesse voltar lá pra baixo, mesmo que Jungkook já estivesse na fase de tentar ficar de pé em cima de uma boia em formato de rosquinha.
Não! Eu já sabia do resultado de ser uma covarde, mas não sabia como era o de ser corajosa.
Toquei a maçaneta e girei de leve. Destrancada, é claro. Eu poderia ter batido. E, mesmo sendo eu, ele poderia negar a presença. Podia me tacar uma almofada e me expulsar como um cão sarnento. Mas eu já estava entrando, com o coração batendo tão forte que vibrava no corpo inteiro.
O quarto era um breu impenetrável. Até mesmo as cortinas enormes que pendiam do teto estavam fechadas, frustrando minha curiosidade de admirar a paisagem que ele tinha das janelas. Todo o cômodo era tão grande que precisei apertar os olhos e ficar parada por alguns instantes pra não correr o risco de esbarrar em alguma coisa sem querer.
Comecei a procurar. Minha cabeça dava piruetas, meu corpo inteiro estava pesado, e minhas bochechas estavam quentes. Nenhuma luz foi emitida com a minha chegada, apenas um som. Ele se moveu em cima de uma cama bem no centro do quarto, as coxas acariciando o linho. Eu conseguia ver apenas a sua silhueta, movendo-se lentamente na escuridão, entrando e saindo de foco. Um movimento mais rápido e ele estava de pé, talvez finalmente percebendo a invasão no seu quarto com um susto.
— Ah… merda. Você estava dormindo? — falei, e percebi como minha voz estava arrastada, devagar. — Achei que tava brincando sobre ir dormir. Você não vê um reality show no celular quando deita como os seres humanos normais? — um riso meio involuntário borbulhou pra fora de mim, e coloquei a mão na boca. — Foi mal, eu dei um gole naquela coisa azul na mão do Yugyeom, e talvez tenha sido a pior escolha da minha vida. Quer dizer, ainda não sei se foi a pior porque eu ainda preciso… Eu meio que tenho… Ér, preciso te contar uma coisa.
— Ju-
— Não. Shhhhh. Não, não. Você fica quieto, eu falo. Eu tenho… — tentei levantar os ombros e parecer com a postura um pouco mais firme, mas provavelmente devia estar com o peito estufado igual uma idiota. Graças a Deus pela falta de luz. Por causa dela também, eu não via o rosto dele, mas sabia que ele continuava parado, praticamente imóvel, se não fosse uma mão agarrando o topo do cabelo e os músculos delineados em total exposição.
Sem camisa. Acertei.
Puxei ar para os pulmões. A covardia quase reapareceu, colocou um pano na minha cabeça e me levou de volta correndo pra longe dali, mas ignorei. Eu precisava fazer isso agora.
— Bom… pareceu bem mais fácil quando pratiquei no espelho na semana passada. — outro riso embolado, agora combinado com um giro louco de 90 graus na minha cabeça. — Você sabe que pratico bastante no espelho antes de encontros importantes, né? Sempre fiz isso pra não correr o risco de amarelar ou dizer besteira na hora. Ou de não conseguir mais um trabalho em um dos escritórios que eu sei que vão ser um pesadelo. E geralmente dá certo. Eu consigo falar sobre todas as bolsas de valores do mundo como se cada uma fosse uma princesa da Disney. Mas isso aqui… é bem mais difícil do que convencer qualquer corretor. — suspirei, olhando para o lado, mesmo que não importasse, pois cada metro quadrado era um negrume profundo e sem fim. — Talvez porque mostrar para outras pessoas que meus números estão corretos seja mais simples do que lidar com a parte não racional do meu cérebro. No caso, meus sentimentos. O que eu sinto por você, na verdade.
Limpei a garganta. Talvez assim aquela bola obstruindo minha glote voltasse a descer.
— Eu… nossa, isso é muito complicado. Vamos começar pelo básico: eu tive crushes. Sabe? Desde que eu cheguei aqui e conheci Nellie, tive aqueles crushes padrões, como o Lee Minho ou o Park Bogum, e tive aqueles meio inusitados, como o carinha de moicano que trabalha na cafeteria e pinta as unhas de preto. E eu acho que tive uma quedinha pelo repositor da mercearia antes de saber que ele tinha 56 anos. Mas o lance é que… com você não é assim. — franzi o cenho, pensando sobre o assunto na hora. — Quer dizer, é claro que você é lindo, e todo mundo com os neurônios no lugar tem um crush em você, mas quando eu pensava no que eu faria com o cara do moicano caso ele me chamasse pra sair, ou até se o Bogum aparecesse de repente e me buscasse numa limusine, eu ainda iria preferir comer pizza com você. Ou ler um livro de poesia só pra gente rir quando chove e as estradas fecham. Eu nem sei se você gosta de poesia, ou de ler. Ainda tem um monte de coisas que eu quero saber de você, mas o que eu sei… me faz querer dispensar o resto. E eu sempre soube o que era isso, mas também sempre esperei que passasse logo porque essas coisas podem destruir o que a gente tem, e eu sei bem o que é destruir coisas, mas eu não posso mais. Não consigo mais guardar essa maldita coisa dentro de mim, e às vezes dói, e me sinto sufocada, e minto pra todo mundo igual os nossos políticos, então decidi que não dá mais pra engolir esse sapo. Ou pedra. Ou… enfim, não posso! Parece que vou explodir se eu passar mais um dia sem dizer que… que eu te amo.
Eu sabia que estava falando, que minha boca estava se mexendo, mas as palavras pareciam estar vindo de quilômetros de distância, proferidas por outra pessoa, outra garota maluca que invadiu outro quarto de outro melhor amigo pra abrir o coração.
Mas eu tinha dito. E, passado o primeiro segundo de choque, comecei a rir, uma risada estranha e baixa, totalmente desesperada.
— Desculpa. Desculpa, eu sei que você não estava esperando por isso, e sei que é loucura, e amanhã a gente vai ter que dar um jeito de olhar um na cara do outro sem pesar o clima, mas… eu amo você. — a palavra saiu de novo, engatilhada como um tiro. Dei um monte de passos à frente, sem saber o que estava fazendo. — Todos os momentos que passamos juntos, por mais que fossem muito rápidos, eram a melhor coisa do meu dia. E quando você sorri, um dia feio e cinza de repente vira primavera, e tenho certeza que você já ouviu elogios o bastante sobre os seus olhos, mas já reparou como eles são bonitos? Como eles quase fecham quando você começa a rir, e isso me faz hiperventilar de um jeito degradante, e nessas horas eu preciso sair de perto de você porque vou acabar entregando tudo, mas não deu mais pra fugir. É isso, é tudo isso. E sei que agora as coisas não vão ficar normais, porque não dá mais pra ficar normal, nada aqui dentro fica normal quando você chega perto de mim, é tão… meu Deus…
As coisas começaram a se embolar de verdade nos fios do meu cérebro, então parei. As palavras podiam estar saindo sem veemência, mas tinha certeza que Eunwoo estava escutando. No momento seguinte, ouvi o som arrastado de passos, os passos dele chegando mais perto e triturando a distância enorme entre nós dois.
Fiquei rígida, sem comemorar nada. Ele poderia estar revirando os olhos e se preparando pra dizer “ok, , já chega, vou te levar pro quarto e matar o Yugyeom por deixar você beber as porcarias que ele bebe, beleza? Mansinha, mansinha”, ou ele só me atiraria no corredor e me daria uma bronca amanhã. “Apaixonada por mim? Que isso, tá comendo merda, ? Você sabe que eu não namoro, quanto mais uma amiga. Se liga!” Ou talvez…
— Eu sei que eu devia ir. — falei apressada, então o que provavelmente saiu da minha boca foi um “eu seeeeeei que debia irrr”. — Porque eu só planejei falar, sabe? Só falar. Só queria que você soubesse, mas… seria ótimo ouvir alguma coisa sua. Uma risada? Aquele barulho que você faz quando fica bravo? Pode me dar um fora, é sério, eu vim aqui preparada pra tudo, e não tem coração partido que aquela coisa azul do Yugyeom não possa salv-
Parei de falar quando ele me tocou. Quando aquele hálito quente de menta se espalhou por todo o meu rosto e me deixou em estágio vegetativo. Quando os dedos dele me apertaram no cotovelo como se quisesse ver se eu era real. E quando sua respiração descompassada deixou seu peito subindo e descendo como se, na verdade, ele tivesse corrido até mim.
Ainda estava escuro pra cacete, e eu não conseguia ver nem a parte branca dos seus olhos, mas o toque dele foi como um lança-chamas na minha corrente sanguínea lerda. Talvez até tenha me deixado sóbria por dois segundos. E foram nesses dois segundos que eu fiz.
Ergui o corpo pra cima e puxei seu rosto, deixando o instinto me guiar até a sua boca. E achei.
Dei um beijo nele.
Eu beijei meu melhor amigo.






Sábado
10 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju


Não sei o que me acordou primeiro.
A luz e a brisa quente eram perceptíveis até de olhos fechados. Eu podia ouvir o barulho do tecido da cortina se chocando entre si por causa do vento, e o cheiro da maresia salgada se infiltrando pelo papel de parede, me fazendo abrir os olhos de uma vez.
As imagens demoraram um pouco a focar, mas de imediato, foi aquilo que chegou ao meu cérebro: azul. Uma porção de azul-bebê, turquesa, royal, pastel, tudo espalhado por cada centímetro quadrado das paredes, no tapete redondo em cima do piso de carvalho branco, nas toalhas empilhadas na cômoda e nas cortinas balançando com leveza. Pisquei os olhos e me sentei devagar, sendo atacada pela dor de cabeça tenebrosa atravessando meu cérebro de uma ponta a outra. A cama — também com os lençóis azuis — estava semi bagunçada, como se eu tivesse apenas me jogado nela e embarcado no sono direto.
Estar usando o mesmo vestido do dia anterior também provou isso.
Respirei fundo, a cabeça funcionando devagar. Ainda estava processando meu quarto sensacional, com seus um milhão de tons de anil e branco, a luz do sol potente e aquela luminária em formato de chapéu na mesinha de cabeceira. Amei. Iria tentar encontrar uma dessas para mim assim que voltasse para Seul. E quando encontrasse, deveria pedir que Dongmin me desse de presente…
Dongmin.
Meu Deus. Dongmin!
Tentei ficar de pé rápido, mesmo que isso tenha me trazido quase uma queda ao chão. O quarto girou três vezes até que eu me firmasse e virasse a cabeça enquanto procurava… alguma coisa. Meu celular. Onde estava meu celular?
Achei que ele me daria algumas respostas, mas depois de dois minutos, nem precisei. As lembranças estavam voltando. Ou melhor: saíram de debaixo da cama e vieram dar um soco no meu nariz.
Beijei Eunwoo. Eu fiz mesmo isso. Depois de dizer que o amava. Não do jeito como eu sempre dizia. Eu disse daquele jeito!
E ele me beijou de volta.

Jeju. Sei lá que horas da madrugada. Muito calor, mil por cento de umidade, uma das suítes mais fodas de uma das mansões mais fodas disponíveis para aluguel na região. A minha língua na boca de Dongmin.
Estava acontecendo. Sabe-se lá como, estava acontecendo.
Pensei em parar depois de um tempo. Isso seria tão difícil de explicar no dia seguinte que me tirava a vontade de continuar. Já estava estranho o suficiente se declarar, já era coisa demais para se colocar na cabeça de um homem, então eu deveria deixá-lo em paz. Mas foi aí que as mãos dele, antes paradas e meio trêmulas ao meu lado, relaxaram e desceram pelo meu tronco. Eu não sabia direito o que ele estava tentando encontrar, mas, aparentemente, depois da língua dele se mexer de uma forma deliciosa enquanto se entrelaçava com a minha como se fosse um peixe agarrando em um anzol, descobri que seu objetivo era a minha cintura, bem na altura da pelve, onde Dongmin pressionou os dedos de um jeito tão intenso que deve ter marcado minha pele por baixo do vestido.
Senti uma espécie de derretimento na barriga, onde alguma coisa estava se descolando e descendo direto para o meu ventre. Não compreendi direito o que era. Na verdade, não compreendi mais nada da vida quando ele puxou a respiração tão forte no meu nariz e gemeu baixinho dentro da minha boca, elevando meu estado de espírito para outra dimensão. Agradeci por ele estar me segurando, porque eu com certeza poderia desabar. Agarrei nos seus ombros, ingeri seu cheiro, que talvez estivesse diferente do que sempre era, e senti seu cabelo molhado por entre os meus dedos, saboreando o fato delicioso de ele ter tomado banho há pouco tempo. Só a imagem disso serviu para que eu envolvesse ainda mais o seu pescoço e praticamente devorado a sua boca como uma maluca.
Ok, talvez com isso ele me pararia. Voltaria a si, veria que era uma loucura. E eu bem notei seus músculos ficando rijos e uma de suas mãos se afastando de mim, mas era só para que ela descesse mais. Direto para minha bunda.
Ora, ora, Dongmin. Quem diria que você me queria tanto.
Era exatamente o que eu estava pensando. Que ele me queria. E do jeito que estava me agarrando, não decidiu isso há cinco minutos, quando ataquei sua boca como uma desvairada. Ele parecia um rio seco que finalmente recebia a tempestade. Um prisioneiro nas sombras que cavou e cavou até, por fim, romper a barreira para o sol. Um escravo recebendo sua carta de alforria.
A impressão era que ele estava esperando uma chance, apenas uma chance, e agora se viu liberado a me engolir, provando e degustando cada detalhe, querendo o pacote completo, com saliva, suor e um pouco de glitter que Nellie espalhou pelo jardim.
Precisava respirar, mas meu pulmão tinha sido treinado para isso. Se por acaso, no meio de uma quinta-feira qualquer comendo comida mexicana, Lee Dongmin decidisse que eu era atraente e uma boa parceira de beijos, precisava mostrá-lo que sim, eu era. Se ele me desse brecha, teria que me deixar provar que eu estava à altura.
Mas ele mesmo se afastou um pouco, ofegando por cima da minha boca enquanto eu fazia a mesma coisa com a dele, duas respirações se encontrando e condensando. O jeito como ele firmava as mãos no meu quadril só me provava que eu devia sim estar prestes a cair, e meu sorriso idiota cheio de dentes não seria capaz de amortecer minha queda.
— Nossa… — arfei.

Tempo do oxigênio encerrado. Já tinha recuperado tudo, e me vi mordendo a boca dele antes de reiniciar mais um beijo, e dessa vez nenhum dos dois estava para brincadeira. Eu já estava sentindo aquela coisa dura entre nós, e por mais que não tivesse pensado nessa parte, não me via erguendo uma placa de Pare e impedindo aquilo de jeito nenhum.
Mas eu estava tão bêbada e tão cansada. Os beijos dele estavam me incendiando ao mesmo tempo que apaziguando, por mais contraditório que fosse, e aí os borrões começaram…
Antes em pé, depois sentados. Eu podia captar o lençol debaixo das minhas coxas, bem macios e ainda meio quentes do corpo dele ali. As coisas estavam acontecendo mais devagar, mas eu ainda estava tentando… subir no colo dele. E Dongmin balbuciava alguma coisa que eu não estava entendendo. Se eu conseguisse enxergar seu rosto, talvez fizesse uma leitura labial. A mão dele raspou na minha perna por baixo do vestido, mãos ásperas e grossas, mãos que nem pareciam mãos de verdade. Não que eu pegasse muito na mão dele para saber. Só me lembrava do fato de que ele odiava lavar louça em dias que ia ao spa de mãos.
O cara sempre soube se cuidar.
Quando enfim consegui montar nele, apoiando uma perna de cada lado do seu quadril, soltei uma risadinha por entre o beijo por causa do choque de ter conseguido fazer aquilo sem tombar para trás como uma idiota. Eu estava no meio de uma neblina, mas Dongmin tinha me puxado com tanta firmeza, ao mesmo tempo em que eu deslizava para a frente e em cima da parte em que ele estava desesperado, que nós dois soltamos um gemido involuntário. Meu sangue inteiro virou lava, e ela estava subindo e subindo, indo de encontro à erupção. Tive certeza de que nenhuma tosse ou rinite alérgica me deixariam acordada à noite mais do que a lembrança de que já fui beijada daquele jeito.
Eu queria ser mais do que beijada.
Mas ele estava se afastando e falando de novo. Me perguntou alguma coisa. Eu ri de novo, porque quando se está bêbada, parece ter um monte de mosquitinho falando no seu ouvido. Isso matava um pouco do romantismo, mas eu não estava afim disso a partir do momento em que ele me agarrou de volta e se esbaldou como o Pooh em um pote de mel.
Inclinei a cabeça para raspar a língua no seu pescoço e percebi seus dedos afundando na base do meu cabelo. Ele estava ficando animado, muito animado, mas então, em um movimento rápido (que o meu cérebro mal processou), minhas costas estavam estendidas no colchão, e esperei para ter o corpo dele por cima do meu, mas as coisas ficaram ainda mais nebulosas, e uma onda de sono me tomou inteira ao mesmo tempo em que eu dizia mais alguma coisa, e daí…

Acabou. Eu acordei no meu quarto e acabou.
Meu Deus.
Não sabia o jeito certo de interpretar aquilo. Quando lembrei disso tudo, senti o mesmo formigamento no estômago, a mesma sensação de ter alcançado o Nirvana. Ele não quis transar comigo porque eu estava uma ridícula bêbada, tudo bem, mas ele tinha me beijado de volta. Dongmin tinha me dado uma resposta. Aquilo só podia ser uma resposta.
Sorri sozinha. Cometi um momento de loucura insana e as coisas tinham acabado bem? Caramba, viva o Chuseok!
Depois de uns gritinhos abafados de alegria e uns pulinhos animados (que quase me fizeram derrubar o abajur de chapéu), respirei fundo e corri para o banheiro, sem fazer ideia de que horas eram. Ver mais azul e branco nas paredes me trouxe uma esperança transcendental de que nada, absolutamente nada estragaria meu dia hoje.

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O cheiro do café estava forte quando finalmente desci.
Aparentemente, não dormi por tanto tempo assim. O aroma de comida ainda sendo preparada vinha da cozinha, onde uma mistura de palavrões, piadinhas de baixo calão e tapas fortes deixou claro que ali era território masculino, e que era melhor eu ficar longe. Fui para o outro lado, direto para a varanda ampla depois da sala principal, onde Nellie estava deslizando os dedos sobre um iPad em cima da mesa de madeira comprida.
— Vamos ter mesmo que comer o que eles estão fazendo? — puxei a cadeira na sua frente e me sentei. Nellie ergueu a cabeça rápido.
— Caramba, ! Até que enfim levantou! — ela largou o aparelho de lado, falando daquele jeito… gritando. — Bati na sua porta umas três vezes pra ver se você acordava. Achei que você nunca passava das 7 da manhã.
— Como você estava acordada às 7 da manhã? — arqueei uma sobrancelha.
— Corrida matinal. Foi uma… promessa. — Nellie experimentou aquelas palavras saindo da própria boca e terminou tudo com uma careta. Agora eu notava um biquíni diferente embaixo da sua regata branca, e uma pontinha vermelha no nariz, já exposto ao sol.
— Mingyu ainda não sabe que você é ruim com promessas?
— Eu não sou ruim com promessas, eu só não tenho um bom humor constante e inabalável que vá me garantir estar 100% disposta no dia de cumprir alguma coisa. — argumentou, com um levantar de ombros. — E eu fui, não fui? E pelo visto, você também foi.
Eu não queria entender imediatamente o seu tom malicioso, mas foi exatamente o que aconteceu. E daí, na mesma hora, fiquei com o rosto da cor de um tomate e olhei diretamente para a cozinha, verificando se algum deles tinha ouvido alguma coisa. Supostamente nada. Todo o bando de cromossomos Y estavam muito bem embalados na mesma sinergia compartilhada de “quem esqueceu o arroz na panela, porra?”
Já recuperada, quis chutar Nellie por debaixo da mesa, mas ela não conseguiria disfarçar a cara feia (e muito menos seu grito), e não duvido nada de que quem acabaria se machucando de verdade seria eu.
— Não sei do que você tá falando. — tentei. — Eu estava dormindo. Subi ontem pra dormir.
— Eu não duvido que você dormiu. — uma piscadinha sugestiva por baixo daqueles cílios lindos e grossos da minha amiga. — Dormir é ótimo, é saudável, todo mundo veio nessa viagem pra dormir nem que seja um pouco.
Semicerrei os olhos.
— Isso se aplica a você? Porque sem ofensa, mas se estamos usando essa analogia pra sexo, você e Mingyu são os próprios ursos-pardos no inverno.
— Bom, você já viu minha pele? — ela jogou duas mechas do cabelo cacheado para trás da orelha, exibindo seus poros sempre fechadinhos e lisos. — Só tem um tônico aqui. Tenho certeza que os ursos-pardos nem precisam disso, o sono faz tudo.
Porque eles são animais!, falei pela nossa comunicação por olhares. E fica quieta? Eu sei o que você está pensando que aconteceu, e mesmo que não tenha acontecido exatamente isso, ainda aconteceu, dá pra entender?
O sorriso malicioso que atravessou seus lábios enquanto Nellie mordia um morango de uma forma extremamente vulgar foi o suficiente para que eu soubesse que ela tinha captado. Menos mal. Deixaria ela me encurralar para perguntas sobre minha noite inacreditável assim que conseguisse colocar alguma coisa no estômago.
— E aí, . — a voz de Jungkook veio pelas minhas costas quando ele se aproximou com uma pilha de pratos para colocar na mesa. — Demorou a acordar. Me disseram que você não passava das 7.
Olhei para Nellie, que deu de ombros.
— Hum… é a magia do feriado, aparentemente.
— Queria ter bebido menos pra sentir essa magia. Até agora só foi apagão, boca seca e Tylenol. Mas não acordei com nenhuma tatuagem nova, é um ótimo sinal. — ele deu um sorriso largo de vitória. E talvez fosse mesmo uma. Geralmente, em Seul, Jungkook ouvia música e bebia com seus outros amigos em pubs subterrâneos desconhecidos, o que normalmente virava uma má ideia porque ele acabava indo para a rua procurar confusão com carros de madrugada, mas aqui ele estava seguro.
— Acho que acordei com tudo isso junto. — resmunguei, entornando muita água garganta adentro, finalmente.
— Ih. Achei que você aguentava melhor. Que era dessas de beber vinho quando não consegue dormir, sabe?
— Essa é a Nellie. — apontei com o queixo para ela.
— Ah, confundi. Mas mesmo assim, achei que você soubesse beber.
— O Yugyeom me ofereceu uma coisa azul. Você saberia beber aquilo?
— Do Yugyeom eu não aceito nem um pirulito.
— Justo. Você deveria saber disso. — Nellie apontou para mim, com as sobrancelhas levantadas. Eu tinha uma resposta à altura, mas não poderia soltar ali na frente de Jungkook, porque era bem direta, do tipo: eu precisava de coragem, Nellie! Da porra da coragem! Você lembra? Aquela coisa azul me prometia isso!
— Tá legal, de qualquer forma, a cerveja de vocês é um pouco diferente do meu país. Lá a gente gosta da ideia de ir trabalhar sem dor de cabeça no dia seguinte.
— Aqui também. Caso você trabalhe no Subway e tal. — a cabeça dele tombou, pensando no assunto. Revirei os olhos.
— Então, o que vocês estão preparando ali? — gesticulei para a cozinha.
— Um pouco de tudo, eu acho. Mal me deixaram mexer em alguma coisa depois que eu quis colocar pimenta na omelete, mas vai ser um café da manhã reforçado pra durar o dia todo. Vamos sair cedo.
— Cedo? — olhei para o relógio no celular.
— O nosso cedo, . Depois das 9 da manhã.
— Pra onde vamos hoje? — perguntei, na mesma hora em que os demais estavam começando a se aproximar da mesa. Tive meu primeiro vislumbre de Dongmin, juntando alguns pratos de acompanhamento enquanto os trazia com concentração absoluta, sem me encarar. Meus músculos paralisaram um pouco.
— Você leu o nosso roteiro? — Jungkook vincou a testa para mim e se virou para Nellie. — Ela leu o nosso roteiro?
— Que roteiro? — Nellie se mostrou igualmente confusa. Jungkook contorceu o rosto, como se ela tivesse cuspido nos seus pés e vomitado logo em seguida.
— Como assim…
— A gente jogou o seu roteiro fora. Foi mal, cara. — Yugyeom chegou, dando um tapinha no ombro de Jungkook enquanto puxava a cadeira do meu lado e se acomodava, indo direto na garrafa de café. — Mas respondendo à pergunta, o rolê hoje é no melhor clichê do mundo: parque de diversões. Alguma coisa tem que balançar o nosso estômago que não seja soju com cerveja.
Nellie expirou, animada, e Mingyu se sentou ao lado dela logo depois. Finalmente, Dongmin olhou para mim enquanto organizava os acompanhamentos em cima da mesa. Aquela coisa gelada dentro do meu estômago ainda estava ali, formando placas, e não segurei o sorriso, que provavelmente era para ter saído mais contido, mas não sei se tive sucesso. Vai saber qual seria a forma certa de me dirigir a ele depois de ontem.
Antes de descer, eu deveria ter dado uma estudada no meu diário mental abarrotado onde eu compilava todas as coisas relativas à Dongmin, como: qual sua forma de agir depois de beijar uma garota? Opção A: quando ele gostou do beijo. Opção B: quando ele não gostou.
Pelo sorriso que recebi de volta, marquei a opção A.
Feliz e desconcertada, virei a cabeça, pronta para chamá-lo para se sentar comigo, mas ouvi os dentes de Yugyeom cravando em uma torrada descontraidamente do meu lado, sentado na cadeira que deveria estar desocupada.
Abri a boca, quase deixando que um “vaza daqui!” saísse de mim, mas logo a fechei e me calei. Não ia fazer muito sentido. Todo mundo sabia, sim, que eu e Dongmin éramos a Thelma & Louise do bando, mas tirar alguém já perfeitamente confortável de seu lugar só para acomodar meu chaveirinho? Esse tipo de inconveniência eu dispenso.
Dongmin acabou desviando os olhos e se arranjando em uma cadeira próxima, focado no seu café da manhã.
Suspirei e peguei o hashi, tentando disfarçar a pontinha de frustração. Procurei não olhar muito para ele naquela hora, então fiz uma vistoria rápida pela mesa, vendo Nellie e Mingyu discutindo pela quantidade de cebolinha na omelete, Jungkook de ombros baixos e olhos mais ainda, cansado demais até para ler as mensagens do celular, Yugyeom balançando uma caixa de cereal, e… estava faltando alguém.
— Yuno, vem rápido! — Mingyu gritou, com a boca cheia de arroz.
Demorei um segundo a mais para virar e ver Jaehyun entrando pela porta lateral da cozinha, jogando o cabelo suado para cima enquanto ofegava como se tivesse acabado de voltar de uma corrida matinal na praia.
A julgar pela calça de moletom, a regata preta e os fones de ouvido sem fio, foi exatamente aquilo que estava fazendo mesmo. E notei (com um certo alívio) que ele não estava mais usando a tala no pulso.
Pelo visto, o cara tinha planejado dobrar a cozinha e subir direto para o seu quarto, já que só resmungou alguma coisa relacionada a banho que não entendi direito e atravessou o cômodo. Mas daí, em reflexo, ele virou a cabeça para a mesa e olhou para o caos de todos nós. Olhou até mesmo para mim.
E nessa hora, ele não aparentou tanto cansaço e desânimo como eu sempre espero que alguém que tenha concluído um percurso no calçadão depois de beber o equivalente a uma lata inteira de tinta aparente. Na verdade, suas bochechas coraram por um segundo e os olhos ficaram congelados, até um pouco apreensivos.
Automaticamente, passei uma mão pela boca, procurando sinais de molho ou grãozinhos de arroz presos no meu buço.
Ele desistiu da ideia do banho e caminhou até nós, guardando os fones e arrastando uma cadeira ao lado de Mingyu, enchendo a mesa com o aroma de água salgada e o brilho do seu cabelo úmido e bagunçado. Ainda estava olhando para mim.
Que estranho. Eu não estava com molho na boca e nem bigode de leite. Nem tinha leite na mesa.
— A gente tem que definir o nosso itinerário. — continuou Mingyu, gritando acima de qualquer paranoia minha. — Eu pensei em uma coisa.
— Eu também tinha pensado em uma coisa. — Jungkook resmungou, irritado e magoado. Mingyu revirou os olhos.
— Eu já falei que a gente pode ir andar de kart no final.
— E as maquetes? — um murmúrio geral de negação se espalhou pela mesa. — O quê? Isso é interessante!
— Montar um prédio de papel pra acrescentar numa maquete de um metro e meio da prefeitura que ninguém se importa parece mesmo interessante, Jeon, mas a gente tá sem tempo. — Dongmin ironizou, batendo no ombro do amigo. Jungkook revirou os olhos.
— Eu sei que é chato, mas eu prometi ao Nam…
— Mentira. — Mingyu cortou. — Não vem meter Namjoon nisso. Você que quer ir lá.
— E não quer ir sozinho porque precisa usar a gente pra esconder de todo mundo o quanto você gosta de baboseira patriótica. — Dongmin mastigou uma porção de kimchi. Seu cabelo estava caindo no rosto, liso e fino, e decidi me concentrar nisso enquanto eles continuavam discutindo.
Mas não durou por muito tempo.
— Nossa, que merda. — Yugyeom tossiu várias vezes contra o cotovelo, olhando alarmado para a própria comida. — Isso era pra ser a sopa de alga? Onde você se meteu, Yuno? Você tinha que estar aqui pra não deixar essa gente fazer merda na comida. Olha só, parece que tô bebendo água de piscina…
— Que exagero! — trovejou Mingyu.
— Você fala demais, Yug, como sempre. — Dongmin revirou os olhos, tomando um pouco da sopa. A mesma careta veio logo em seguida. — E talvez esteja um pouco certo…
Nellie largou a colher antes de tirar a prova. Mingyu arregalou os olhos para ela e se virou para todos com indignação.
— Vocês estão brincando comigo? Isso é um complô? — bufou, apontando para Jungkook. — Vejam só, o cara mais rico da roda não tá reclamando de nada.
Jungkook ergueu as sobrancelhas, mas não podia dizer nada pelas bochechas já cheias de comida. Dongmin soltou uma risada nasalada.
— E desde quando o Jungkook é parâmetro? Ele literalmente come qualquer coisa que se pareça com comida.
— Ei, que isso… — Jungkook tentou dizer.
— Foi aquela terra alucinógena de Busan que ele comeu quando era criança… — disse Yugyeom, me dando um leve cutucão com os cotovelos, o que me fez rir.
— A areia de Busan não tem nada a ver com a minha sopa. Babacas! — Mingyu estalou a língua. — Você, , o que achou dela então?
Vi todo mundo olhar para mim de novo e quis me esconder por baixo da mesa. Yugyeom e Dongmin diminuíram a explosão de risadas, Nellie conseguiu disfarçar a barra de chocolate que puxou do bolso, Jungkook parou de se esquivar dos tapas de Dongmin e Jaehyun já me encarava fixamente, como se não tivesse ideia do que estava acontecendo ao redor e muito menos se importasse.
— Ah… — comecei a dizer. — O arroz pelo menos tá ótimo.
Yugyeom deu um tapa na mesa quando gargalhou, e Mingyu cerrou os olhos para mim.
— Em minha defesa, a culpa é toda desse idiota aqui. — ele apontou para Jaehyun. — Ele simplesmente sumiu quando deveria decidir o tempero.
— Ótimo ponto. Que ideia é essa de levantar com as galinhas pra sair pra correr? Isso aqui virou um caos sem você. — Yugyeom reclamou.
— Achei que você não corria mais. Tipo há anos. — Dongmin comentou com curiosidade.
Jaehyun, finalmente se tocando do espaço e das pessoas ao redor, se virou para ele, encolhendo os ombros.
— Não dormi muito bem. E isso aqui… — apontou para a sopa com uma colher. — Precisa de mais pasta de pimenta. Deixei ela bem em cima da bancada.
Mingyu resmungou alguns palavrões no mesmo instante, enquanto Yugyeom voltava a comer, sentindo a sopa na língua, absorvendo seu sabor de verdade.
— É mesmo. A pasta de pimenta teria dado jeito nisso.
— Não tinha nome na embalagem. — Mingyu tentou se defender. — Como eu ia saber que era ela? Tem um milhão de potinhos com coisas vermelhas dentro espalhadas por essa cozinha.
— E eu também disse pra não deixarem você como responsável por essa parte. — Jaehyun olhou para Mingyu de canto de olho e, simplesmente assim, deu o assunto por encerrado, porque os outros iriam apenas espernear sem argumentos.
E foi assim o nosso primeiro café da manhã do feriado: ressaca, sono e provavelmente fome, já que a sopa não foi o único prato com defeito na mesa.
Olhei para Dongmin de soslaio. Não havia um único traço na sua aparência que denunciava que ele tenha rolado na cama a noite toda, ou andado por aí com ansiedade depois do nosso amasso fervoroso de ontem. Na verdade, seu rosto e sua pele continuavam perfeitos, sem olheiras, igualmente como um boneco reborn da era atual que conseguia conciliar um bom sono com muita bebedeira como se ele fizesse isso todos os dias.
Não sei o que senti com a possibilidade de ele estar tão… bem. De ter conseguido dormir. Eu, honestamente, me sentiria melhor em saber que não fui a única que ficou acordada por um tempo, e que ficaria por todas as próximas noites.
Ao contrário de Jaehyun, em quem reparei quando esbarrei o olhar nele de relance. Não importava o quanto tivesse corrido lá fora sob o sol, ele ainda parecia pálido, cabisbaixo, com olheiras em dia e lábios cerrados.
Coitado. Sua lesão deve ter doído a noite toda.

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Eu ainda não tinha ideia de como me comportar.
Descobri que esse negócio de pós-declaração era um saco. Eu devia ter lido algo na internet ou sondado melhor Nellie antes de tomar uma decisão daquelas. Ela com certeza seria uma ajuda bem melhor do que as colunas da Vogue — ou, no meu caso, uma revista adolescente online que comprei e pedi reembolso depois de 17 horas. Os minutos se passavam e a dúvida não saía de mim: qual era o próximo passo?
Meu cérebro não conseguia formular nenhuma resposta coerente, totalmente sem experiência no assunto.
Enquanto eu me aprontava com a cabeça no mundo das prováveis atitudes que eu deveria tomar, minha amiga entrou no meu quarto se preparando para me lotar de perguntas sobre a noite de ontem. Eu bem que queria — ou precisava — responder a todas elas, mas Mingyu e sua pressa foram mais rápidos e logo deram um jeito de tirar Nellie dali. Tentei fazer o olhar de cachorrinho abandonado e pedir para que ela chutasse a canela daquele atleta idiota e não saísse, mas, infelizmente, nenhuma de nós duas éramos páreas para os braços do crossfiteiro.
Não havia nenhuma mensagem dele no meu celular. Quando desci de novo e fui para a entrada, onde todo mundo parecia empolgado com a conversa sobre nossa programação, vi que Dongmin me encarou de novo, mas sem nenhuma expressão importante. Nenhum sinal de: então, eu lembro do que fizemos ontem, só não quero dar muito na telha, entendeu? Ainda temos uma viagem em grupo pra tocar.
Eu não vi nada disso. Na verdade, ele parecia um tanto confuso toda vez que eu encarava, e eu esperava que não fosse porque eu estava encarando demais.
Meu Deus, precisava me acalmar.
Antes que eu metesse os pés pelas mãos, me aproximei de Nellie novamente, que tinha os braços de Mingyu pelos seus ombros, enquanto ele conversava com Yugyeom e Jaehyun. Esse último automaticamente me olhou de novo, daquele mesmo jeito do café da manhã, como se eu estivesse com algo no rosto, mas decidi ignorar. Principalmente porque aquilo não devia passar de arrependimento tardio: foi com ela que gastei meus últimos minutos no jardim ontem? Jesus, devia estar bêbado mesmo.
— Então — Mingyu começou a falar —, Yug e Eunwoo vão no carro com a gente, então vocês três podem ir juntos. — ele apontou para eu e Jaehyun. Franzi o cenho para Nellie.
— Como? Mas o Dongmin…
— Aquele pateta tá de ressaca. Tô fazendo um favor pra vocês levando ele no meu carro e correndo o risco de encher meu banco com matéria orgânica. — respondeu Mingyu, puxando um molho de chaves do bolso da bermuda e voltando-se para Jaehyun. — Sei que você curte fazer a vovozinha no trânsito, mas não demora muito pra seguir a gente com a sua lata velha, beleza? A gente quer fugir do horário de pico. Vamos sair em cinco minutos.
Ele piscou para nós dois e se retirou, gritando algo para Dongmin e Jungkook logo mais à frente, que conversavam em voz baixa. Captei a mão de Yugyeom afagando meu ombro, e logo seu sorriso quadrado cheio de sarcasmo.
— Parabéns, . Com o Yuno, suas chances de sofrer um acidente diminuem bruscamente. — ele riu e começou a andar em direção ao carro de Mingyu.
Fiquei parada por alguns segundos, tentando desesperadamente não deixar que minha paranoia me tomasse e eu começasse a pensar que: Dongmin não queria ir comigo de propósito. Ele inventou uma ressaca para não ter que passar 40 minutos comigo em um carro, e o que isso afinal queria dizer? Depois de ontem, o que era para acontecer hoje? Mas que mer…
— Oi. — Jaehyun soprou ao meu lado, naquele tom baixo e aveludado que só sua garganta era capaz de produzir. Virei e o encontrei mais próximo de mim do que eu me lembrava. — Temos que ir. — ele inclinou com a cabeça para o Kia prateado estacionado ao lado do carro de Mingyu.
— Ah, claro. — foi só o que consegui responder, antes de caminhar para o carro em silêncio, temendo que toda aquela sorte que pensei ter tido ontem não passava de uma coisa frágil de vidro ou tão falsa quanto uma taça de plástico. Sério, o que seria desse dia?
Estendi o braço para abrir a porta de trás, desejando de repente ficar sozinha por alguns minutos e colocar o pensamento — e a ansiedade — em ordem. Como era de se esperar, ela estava trancada, mas não precisei tentar por mais tempo. Jaehyun chegou perto, apertando a trava da porta do passageiro e abrindo-a para que eu entrasse.
Por um motivo estranho, me senti constrangida.
— Não precisa, posso ir atrás. — falei rápido.
— Que tipo de cavalheiro eu seria te deixando ir no banco de trás? — Jungkook veio por trás de minhas costas, em um tom quase de sono. — Muito bem, Yuno. Sempre disse que sua criação foi a melhor de todos nós. Vai logo pra frente que eu quero deitar, .
Ele deu um soquinho no ombro do amigo e abriu a porta de trás, enfiando-se para dentro.
Jaehyun soltou uma risada nasalada, inclinando a cabeça novamente para que eu entrasse. Desviei os olhos e entrei. Não era como se eu pudesse negar alguma gentileza.
Jamais pensei que algum dia entraria no carro de Jeong Jaehyun. Muito pelo fato de que eu não chegava nem perto de ser amiga do cara ou próxima o bastante para precisar fazer isso, então já imaginei que não poderia sentar de pernas cruzadas ou esticá-las no painel, como fazia no carro de Dongmin. Ainda assim, não consegui segurar meus olhos curiosos nos primeiros segundos em que estava ali e olhei em volta.
O couro marrom por dentro devia ser mais limpo do que um hospital, e o pequeno televisor digital acoplado no painel era enorme, com comandos que eu nunca tinha visto ou não reconhecia, mas eu não era parâmetro de nada — ainda era a pessoa que só usava o banco de trás do Uber e torcia para chegar viva no meu destino, nada mais.
Mas o luxo não era exatamente algo ao qual eu era alheia. Trabalhava com dinheiro e, concomitantemente, com pessoas que tinham bastante dinheiro, as quais meu chefe me obrigava a tratar como se estivéssemos na era do Egito: dando uvinhas nas suas bocas e balançando um pedaço de papelão recém cortado no lugar do ar-condicionado.
Seja como for, eu sabia reconhecer uma pessoa cheia da grana. E Jeong Jaehyun com certeza estava nessa lista.
Bom, ser idol em um grupo com mais de 20 pessoas não devia te tornar um Jeff Bezos, mas juntando isso com as campanhas implacáveis da Prada, as capas de revistas que esgotavam em questão de horas, trabalhos de atuação e a pilha de publicidades esburrando na caixa de entrada do agente dele… é o bastante para dormir em um colchão de penas de ganso à noite.
A mão dele voou sobre a tela, me acordando da minha averiguação nada discreta. Percebi que só eu não tinha colocado o cinto ainda, e fiz isso o mais rápido possível, rezando para não precisar de nenhuma ajuda dessa vez.
Vi ele me olhando de canto de olho em cada segundo que eu fazia isso, pronto para me puxar para fora caso aquela coisa emperrasse ou simplesmente me asfixiasse sozinha. Que vergonha.
— Pode colocar Justin Bieber? — Jungkook projetou o corpo para o meio dos nossos bancos, vendo os dedos de Jaehyun deslizarem pelo ecrã enquanto mexia no celular com a outra mão.
— Nunca. — Jaehyun respondeu, finalizando a conexão com seu telefone. Quis rir com o choramingo de Jungkook; ele realmente precisava ouvir outra coisa que não fosse Justin Bieber. — O que você quer ouvir?
Levei alguns segundos para perceber que ele estava falando comigo.
— Que não seja nada de antes de 2009. — pediu Jungkook.
— Ah… — repuxei os lábios, fazendo uma anotação mental do que eu gostava e que fosse decente o bastante para se escutar em grupo, sem ser melancólico ou triste demais. — Vocês gostam de R&B?
Jaehyun abriu um belo sorriso. Deu para ver que foi mais forte do que ele.
— Frank Ocean? — disse ele.
— Isso! — respondi. Logo ele explorou os botões e Pink + White começou a soar na melhor vibe soul que deixaria os longos minutos no carro muito mais agradáveis.
Jungkook desabou no banco novamente, pegando o celular como antes.
— É, vocês têm bom gosto.
Virei o rosto para Jaehyun, contendo um sorriso. Ele me olhou ao mesmo tempo. Depois, o Camry de Mingyu diminuiu a velocidade quando passou por nós, a buzina soando alta de dentro da janela para chamar a atenção. Revirei os olhos. Jaehyun ligou o carro e logo o colocou em movimento.
Em poucos quilômetros, constatei que ele parecia mesmo uma vovozinha no trânsito. Mas, estranhamente, não achei isso irritante. Ao contrário; Jaehyun me passava a impressão de que manter o limite de velocidade em uma avenida era apenas uma forma de cuidar de si mesmo e dos outros. Principalmente dos outros.
E não foi nada, nada broxante.


Continua...

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N/A FIXA 📌: Olá! ESTAMOS EM MINI-FÉRIAS!
Mas vamo ter um momentinho informativo pra você não ficar muito perdida? O feriado Chuseok é como se fosse o "dia de ação de graças" na Coreia. É um momento de celebrar a colheita, agradecer aos ancestrais e fortalecer os laços familiares e (por que não?) aproveitar com os amigos também. Ele dura 3 dias e, por isso, nossa fic talvez tenha ficado bem pequenucha, mas muito, muito divertida!
Agradeço de coração a quem acompanhou essa história comigo, desde que eu me deixei levar pelo plot da minha amiga Bianca e segui em frente. Agradeço minha melhor amiga Beatriz por ser a fã número 1 de Murphy e sempre me lembrar que eu, dramática que sou, teria a capacidade de fazer uma história engraçadinha e levinha SIM.
Agradeço as meninas que apareceram depois lá no insta, ou pelos comentários, ou pelo simples fato de que finalmente encontraram uma fanfic multifandom nesse multiverso do k-pop. Obrigada a todas vocês, de verdade! Que o feriado da 97 line tenha te trazido conforto e divertimento em dias difíceis e um pouco de distração da correria da vida.
E pra não perder o costume: deixa um comentário pra eu saber se você gostou também e me segue lá no insta pra ver mais histórias minhas: @sialversion.
beijos,
Sial ఌ︎



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