A sacada do apartamento que eu dividia com Anna, minha melhor amiga, dava a visão privilegiada para a rua botânica. Uma grande avenida que atravessava quase toda a cidade. Apoiei o cotovelo no parapeito de ferro para observar o tráfego e depois olhei para cima, avistando algumas nuvens cinzas no céu. Certamente, era chuva a caminho. Só espero que não caia aquela tempestade. Porque Cuernavaca costumava ser bem chuvosa nessa época do ano, com temperaturas que chegavam a mais de 30° graus no verão, e os invernos extremamente secos e frios ao ponto de fazer nossos narizes sangrarem.
O fluxo dos carros continuava a aumentar gradativamente e a fumaça tóxica que os canos de descargas jogavam para fora contribuiu para poluir mais o céu. O que era péssimo para a minha bronquite, porque todas as vezes que eu respirava esse ar, tinha que fazer duas inalações por dia. Observei um fluxo de pessoas atravessando a faixa de pedestre em direção ao nosso prédio azul de 10 andares. Algumas com olhar totalmente focado à frente, sem prestar atenção nas coisas que estavam acontecendo ao redor. Outras, andando a passos apressados, e um grupo de senhoras conversando despreocupadas, a julgar pelas marchadas lentas que as três estavam dando, também na mesma direção. Três estudantes, que vinham logo atrás, que me fizeram pensar em como seria as coisas daqui por diante. Iria voltar às raízes, justamente para o mesmo colégio do qual terminei a preparatória. Por muito tempo, San Diego foi o meu lar; lá eu descobri o valor de uma amizade verdadeira que, graças a Deus, perdurou até os dias atuais. Poncho sempre foi um grande amigo. Uma amizade que nasceu de um esporte e que permaneceu ao meu lado, mesmo depois de termos ido para a mesma universidade. A Universidade da Califórnia, onde me formei em Ciências Biológicas e tive grandes experiências ao lado dele e de outras pessoas incríveis que conheci por lá.
E por sempre querer lecionar, acabei fazendo 4 anos de licenciatura. Então agora eu daria aulas no San Diego, graças ao Poncho, que foi o meu mediador. Porque, se não fosse pela sua indicação, não teria conseguido o emprego.
— Não está atrasado para o trabalho?
Anna tirou toda a atenção que eu estava dando a rua. Ela era uma das pessoas incríveis que eu havia conhecido na Califórnia. E mesmo não sendo o meu tipo de mulher, nós acabamos tendo um envolvimento amoroso no passado.
— Já estou de saída, só vim pegar um pouco de ar antes de ir. — Respirei fundo, inalando parte da poluição para os pulmões. Minha bronquite que aguente.
— Poluição, você quer dizer. — sorri com os lábios fechados e virei o corpo na sua direção. Olhei em seus olhos expressivos e curiosos e vi um sorriso se formar no canto dos seus lábios.
— Exatamente, eu deveria te escutar mais a cada bronca que dá quando venho para a sacada. — Ela beijou minha bochecha de forma carinhosa e, em seguida, tirou um fiapo de linha da minha camisa polo que era verde.
— Espero que dê tudo certo por lá. Tenha um ótimo primeiro dia de trabalho e qualquer coisa me liga.
— Obrigada, Aninha! Me deseja mesmo, porque vou precisar. Estou muito nervoso e com bastante receio dos alunos não gostarem de mim.
— Tenho certeza que eles vão te adorar, Chris. Você é incrível, o cara mais inteligente que conheço.
— Para de me bajular, garota.
— Não é bajulação, benzinho, só estou dizendo a verdade. — Segurou a ponta do meu queixo com o polegar e, por pouco, não aproximou o rosto do meu para me beijar. Era sempre assim, quando surgia uma oportunidade, ela tentava se aproximar, mas como um bom mestre, eu percebia tudo e logo me afastava.
Ela gostava de misturar as coisas, enquanto eu fazia questão de deixar claro que o passado jamais retornaria.
— Podemos jogar mais tarde? — Arqueou as sobrancelhas.
— Só se for damas — sugeri, já sabendo da sua confirmação.
— Você me conhece tão bem. — Suspirou. — Saiba que eu amo isso. — Uma risada baixa escapou dos seus lábios.
— Anna! — lhe repreendi com o olhar.
— Desculpa, eu não quero quebrar o nosso acordo, porque adoro ter você aqui. Só assim, não me sinto sozinha. — Encolheu os ombros.
— Então coopere para que eu não procure outro lugar pra ficar.
— Prometo que não vou dar mais em cima de você. Mas entenda que não vai ser uma tarefa fácil resistir a um homem nerd e gostoso como você. — Espalmou a mão no meu tórax.
— Pelo menos tenta. — Afastei sua mão, dando dois passos para trás. — Quero que me enxergue como um amigo e não além disso.
— Tentarei.
— Jura de dedinhos? — Fiz um gesto para mostrá-la e ela fez o que lhe pedi. — Ótimo! Vou logo porque está quase na hora, não gosto de atrasos.
— O senhor britânico dando as caras novamente.
— Muito engraçado. — Ri, sem humor, pegando a bolsa que estava em cima do sofá e me despedi dela com um beijo na testa, para depois caminhar até a porta.
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Acabando de estacionar o carro no amplo estacionamento do colégio, olhei para o ipê, que ainda estava no mesmo local. A mesma árvore que me trazia recordações incríveis dos momentos que me reuni com meus amigos no passado para jogar conversa fora enquanto tocava violão junto com Alex. Alex foi quem me ensinou a tocar o instrumento do qual acabei ficando fascinado naquela época. Certo dia, Alfonso e eu tínhamos acabado de sair do treino, estávamos suados e sem camisa, atravessando o grande corredor que dava acesso ao jardim. Lá, vimos Alex tocando violão, sendo rodeados por belas garotas que não paravam de babar nele. Entretanto, devido a nossa popularidade e ao time de futebol, ele começou a nos bajular também e até ofereceu aulas para mim gratuitamente. Foi a partir das aulas que peguei gosto pelo instrumento e não larguei mais, até então. O violão era como uma terapia, porque todas as vezes que eu tinha algum problema, eu começava a tocar alguma música do meu gosto.
Nessa mesma árvore, havia um casal aos chamegos, quase se esfregando um no outro. Quanta promiscuidade! Peguei a bolsa e logo após fechar a porta do veículo, caminhei a passos moderados até o campo de golf. Ele ainda estava do mesmo jeito, com a grama aparada e bem verde e os mesmos arbustos em volta. Onde tinham um grupo de alunos estudando, um casal ao lado aos beijos e outros fazendo uma baita algazarra. Dois deles estavam fumando e as duas morenas balançando os quadris de um lado para o outro, parecendo fazer um tipo de dança do acasalamento para chamar a atenção deles. As duas eram bonitas e com certeza queriam impressionar os namorados de alguma forma, no entanto, acabaram chamando a atenção dos outros. Continuei o meu trajeto até chegar ao mesmo corredor que me levaria à sala do diretor. Sabia que o Sr. Pallares havia falecido há dois anos, mas não fazia ideia de quem eles colocaram para substituí-lo. Só espero que seja alguém de boa conduta e não aquele tipo de diretor que costuma bajular alguns alunos por interesse econômico. Cheguei à recepção e a secretária me olhou por cima dos óculos. Ela estava concentrada no computador, enquanto anotava algo num pedaço de papel.
— Pois não! — Me olhou minuciosamente, de baixo para cima. Certamente estava avaliando a minha roupa. Eu sabia que deveria colocar outra calça, porque as pessoas desse lugar sempre foram esnobes e metidas. Se achavam só por causa da conta bancária.
O local ainda continuava com a mesma decoração, as paredes pintadas de vermelho e a mesma atmosfera densa de quando eu estudava aqui. Minha família nunca foi rica, mas meus pais sempre se esforçaram para que eu tivesse a melhor educação, por isso, me matricularam no San Diego, um dos colégios mais caros do estado.
— Desculpa, nem vi você entrar. Estava tão atarefada. — Riu. — É pai de algum aluno?
— Não, sou o novo professor de Biologia. — Apertei a alça da bolsa.
— Claro! — Espalmou a mão sobre a testa. — Ele está conversando com o pai de uma aluna, é só aguardar um pouco, que ele logo vai atendê-lo. — Manteve uma postura séria e deu meio sorriso antes de voltar a se concentrar no computador novamente.
— Obrigado!
Acomodei meu traseiro no estofado marfim e encostei no encosto, deixando minhas costas afundarem. Se tivesse em outro momento, provavelmente eu não pensaria duas vezes em tirar um cochilo. Tamborilei os dedos sobre a bolsa e olhei de relance para o lado, vendo que tinha algumas revistas na mesinha. As que estavam na frente não me interessaram muito, porque eram revistas de moda. Porém, abaixo havia uma da National Geographic que eu peguei para folhear até o momento dele me atender.
Ainda que estivesse com a minha atenção totalmente voltada para a revista, acabei escutando vozes vindas da sala do diretor, que provavelmente deveria ter saído com o pai dessa tal aluna que a secretária falou. Olhei por cima dela, dois homens trajados em um terno, que certamente custa todo meu salário. Os dois tinham cabelos grisalhos e uma barba bem espessa. Juntos, passavam uma certa autoridade, principalmente o senhor do Rolex no braço. Seu olhar era tão frio e assustador, que dava um certo medo. Parecia que estava pronto para matar alguém somente com olhar. Sem se despedir, esse mesmo homem foi embora e eu suspirei só por ele levar toda aquela energia carregada que trazia consigo.
— Bom dia, Sr. Uckermann! Desculpa a demora, estava resolvendo uns assuntos com Sr Saviñón. — Sorriu amplamente. — Vamos.
Fui seguindo ele até sua sala depois que levantei e percebi que a secretária estava tão concentrada no computador que nem notou a nossa saída repentina.
Entrei na sala arrastando os meus pés pelo assoalho e a porta rangeu um pouco assim que ele fechou. A mesma parede branca, com a prateleira cheia de troféus da época que remetia aos tempos do time, enfeitava a sala. Ela foi uma das primeiras coisas que chamou minha atenção. Na ponta, a taça que ganhamos no intercolegial contra o Colégio Saint Germain brilhava e o prateado reluzia ainda mais devido a iluminação. Definitivamente, era uma taça muito linda. Saudades do tempo de artilheiro do extinto time do Colégio, da época que tudo era estudo e festa. Por que as responsabilidades da vida adulta tinha que ser tão estressantes?
— Relembrando os velhos tempos, Sr. Uckermann. — Sua voz grossa e firme me tirou dos meus devaneios.
— Sim... É uma pena que o time tenha sido extinto. Tenho ótimas recordações daquela época.
— Sente-se, rapaz, vamos conversar um pouco. — Apontou para a cadeira com estofado marrom.
Me acomodei, sentindo as minhas nádegas afundarem nela, e olhei em seus olhos. Ele pegou uma caixa que estava ao meu lado e tirou de lá dois charutos.
— Vamos, pegue. É para relaxar antes das aulas começarem. Os alunos não são fáceis, principalmente... Melhor estar preparado.
— Obrigado, mas eu não fumo. Tenho bronquite.
— Perdão. — Devolveu o outro charuto a caixa.
— Sem problemas. — Mostrei um sorriso amigável.
Colocou o charuto entre os lábios e pegou o isqueiro ao lado para acender.
— Espero que não lhe faça mal. Meu pai também tinha bronquite e eu evitava de fumar perto dele porque passava mal.
— Tudo bem, eu faço inalação quando chegar em casa.
Ele tragou e, logo a seguir, jogou a fumaça para o lado. Mesmo tomando cuidado para não vir na minha direção, acabei sentindo o cheiro e tossindo.
— Vou fumar ali na janela. Pode continuar aí, rapaz.
— Certo — concordei, vendo ele levantar e andar em direção à ela.
— Amanda, do Rh, disse que você veio da Califórnia. Então não é Mexicano?
— Não, eu fui para lá fazer faculdade, mas sou daqui, de Cuernavaca mesmo.
— Entendi. — Tragou fortemente o charuto, tanto que suas bochechas afundaram. — Srta. Sodi nos deixou na mão, então precisávamos de alguém rapidamente para substituí-la. Os alunos não podiam ficar sem professor de Biologia. Sei que nunca deu aulas, mas não se preocupe, que aprenderá rapidamente.
— Estagiei ainda na faculdade, mas faz algum tempo que não piso numa sala de aula. — Estalei alguns dedos por baixo da mesa.
— Isso não será problema, porque eu mesmo te levarei até a sala deles. E te ensinarei a impor respeito. — Exibiu um sorriso ladino.
Era para eu ter relaxado, no entanto, o seu sorriso me atemorizou.
— Eu sei me impor, Senhor…
— Hernandez... Será? — duvidou. — Sua postura não está me dizendo isso.
— É que estou nervoso — justifiquei.
— Não precisa ficar assim, rapaz, os jovens não mordem. Só uma. — Riu.
— O senhor está me dizendo que tem uma aluna problema? — Arqueei as sobrancelhas.
— Exatamente! — Soprou a fumaça e jogou o que restou do charuto pela janela. Depois veio caminhando na direção da sua mesa.
Se acomodou em sua cadeira, que ficava do outro lado e, logo a seguir, apoiou os braços no encosto dela.
— Não sou recém formado, Sr. Hernandez, e saberei me impor com essa aluna — me impus.
— Vamos ver – contestou. — A Srta Saviñón não é uma simples aluna. Sabe quem é o pai dela?
— Não faço ideia. — Passei a língua na parte superior dos lábios.
— Já imaginava. — Começou a tamborilar os dedos na mesa. — Sr. Saviñón é dono da RS Enterprises. A maior marca de bolsas e sapatos do México.
— Ouvi falar por alto, mas nunca pude comprar um sapato dessa marca, porque é o olho da cara.
– Essa aluna é um... — Suspirou profundamente. — Me faltam adjetivos para mencionar o seu comportamento. Digamos que ela foi contaminada pelo vírus da rebeldia. Não respeita as normas do instituto, vive se metendo em confusão, confronta os professores. Resumindo: não tem respeito por ninguém.
— Mas o que tenho a ver com isso?! — Franzi as sobrancelhas. — Estou aqui para dar aulas e acho que isso não cabe a um simples professor, mas aos pais e ao colégio.
— É aos professores também — confrontou. — Você passará boa parte do seu dia com os alunos, só estou te preparando. Seja firme com essa aluna, não deixe ela te manipular. Já era pra ter sido expulsa, mas em consideração ao Sr. Saviñón, eu não fiz isso ainda.
— Está dizendo que eu tenho que abraçar um problema que não é meu? — iquiri, com incredulidade.
Era só o que me faltava, já não bastava os meus problemas, agora teria que ensinar boas maneiras ao filho dos outros. Ainda mais uma adolescente mimizenta, que não recebeu a lição que deveria ter recebido durante a infância.
— Se quiser fazer parte do corpo docente dessa instituição, a minha resposta é sim.
— Vou ter que virar babá de uma adolescente mimada?
— Eu não disse isso, rapaz, você não entendeu direito.
— Entendi, sim — rebati. — Na entrevista, não me disseram que eu teria que bancar babá de aluno.
— E você não irá bancar, só que vai me ajudar a controlar os impulsos dela, como a sua rebeldia, teimosia e audácia.
— Ok, mas quando…
— Se fizer tudo corretamente, eu vou te dar uma recompensa. Só precisamos pôr essa aluna nos eixos. Esse é o último ano dela aqui no internato e, por isso, o pai dela quer que coloquemos a sua filha nos trilhos até o ano letivo terminar.
— Não vou aceitar... Isso é problema do colégio. Sinto muito, mas não vou ajudá-lo. — falei, com convicção.
— Certo, não precisa me acompanhar até a sala então, pode dar meia volta e ir embora, porque se não está disposto a acatar as minhas ordens, também não estará pronto para trabalhar nessa instituição.
Pelo visto, esse diretor era daquele tipo que eu mais estava temendo. Um tremendo corrupto chantagista. Com certeza, ele passava a mão na cabeça dessa aluna em troca de algumas propinas.
— Ok, eu vou aceitar, porque estou precisando muito do emprego.
Outra coisa da vida adulta, era ter que engolir sapo, isso era um saco. Infelizmente não nasci herdeiro, por isso, tinha que trabalhar.
— É isso, aí rapaz. Seja inteligente e obediente que só terá a ganhar. Os alunos já devem estar na sala, vamos? – Olhou para o relógio em seu pulso. Mesmo sem ter a intenção de parecer intrometido, eu estiquei um pouco do pescoço para olhar o objeto. Que, ao julgar pelo aspecto, não era um relógio qualquer. Com certeza era presentinho daquele senhor mal encarado.
— No seu currículo diz que é fluente em três idiomas, estou certo?
— Sim, além do espanhol, também sei falar Italiano, inglês e sueco. — Ri. – Por causa da minha mãe, ela é sueca e veio ainda na juventude para o México trabalhar como modelo.
— Isso é excelente, assim poderemos tê-lo também nas atividades extracurriculares. Os alunos estão precisando de um professor que fala italiano. — Entrelaçou as mãos com uma certa empolgação.
— Se vocês pagarem mais, eu não hesitarei em aceitar.
— Fica tranquilo, que terá algo a mais, além do seu salário. É só andar na linha e fazer tudo que eu te ordenar. — Ele exibiu o mesmo sorriso presunçoso.
E levantou da cadeira a seguir. Fiz a mesma coisa logo em seguida e, juntos, caminhamos por um longo corredor. O mesmo que me remetia ao passado de quando estudava aqui. Chegamos ao final dele e paramos quase próximo a uma porta de madeira pintada de cinza. O barulho de vozes se misturando indicou que a sala estava cheia. Ainda nervoso, traguei a saliva, apertando a bolsa contra o peito e inalei todo o ar para dentro dos pulmões no mesmo instante que as mesmas garotas do campo de golf passaram próximo de nós. As duas tinham cabelos escuros, porém, o da mais baixa era maior até o quadril.
— A da esquerda é ela. — Sr. Hernandez apontou o dedo disfarçadamente para a garota, sorte que elas estavam de costas.
— A mais baixinha?
— Exatamente! Ela não é fácil, mas se fizer o trabalho corretamente, terá sua recompensa. — Ele gesticulou os dedos e logo entendi do que se tratava. — Vou entrar com você para dar uma palavrinha com eles antes da sua aula.
— É até melhor. — Suspirei.
— Está com medo rapaz?
— Não, só um pouco nervoso, mas não há nada que um copo d'água resolva.
— Deixa a água para depois, primeiro você vai entrar comigo, ok?
Ele foi na minha frente e eu o segui, arrastando os pés pela cerâmica branca. A sala era ampla, com duas grandes janelas na lateral e um quadro branco na frente. Cada aluno tinha o seu computador e pareciam inofensivos. Inclusive, a Srta Saviñón. Não queria fazer isso, mas acabei observando ela mais do que deveria. Era bonita, até demais para ser tão atentada. Rosto angelical, olhos grandes e expressivos, lábios pequenos e carnudos. Um rosto que engana facilmente, porque ela não tem cara de quem apronta.
— Bom dia, jovens!
Seu tom de voz foi firme e forte. Tanto, que os alunos travaram na cadeira enquanto olhava para ele. Tirando ela, que mexeu no cabelo e continuou nos encarando com uma certa audácia. Prestei atenção em seu rosto pela segunda vez e acabei imaginando a linda mulher que se tornaria um dia. Porque, se adolescente é assim, imagina quando tiver seus vinte e poucos anos.
— Quero apresentar o novo professor de Biologia a vocês. Ele substituirá a Srta Sodi.
— Interessante, então teremos mais um que não vai aguentar ficar um dia aqui. Porque pela cara de lerdo que ele tem, com certeza não vai aguentar o rojão. — Ela passou a língua entre os lábios. — Seja bem-vindo ao hospício, professor, espero que sobreviva ao primeiro dia de aula. Sr. diretor, eu vi meu pai saindo daqui hoje. Aposto que chamou ele para mais uma de suas reclamações. Sabe que sou uma santa e jamais faço as coisas sem pensar. Espero que ele não tenha contratado outro energúmeno para vigiar meus passos, porque senão, eu irei enxotá-lo. Ou posso fazer melhor, como comer ele todinho, porque na calada da noite, eu viro uma fera bem perigosa que devora a sua presa.
Um burburinho começou e alguns alunos riram baixo, inclusive, a outra morena, que estava sentada ao seu lado.
— Silêncio, por favor! — Sr. Hernandez se exaltou. — De pé agora, Srta Saviñón. — ordenou, com o cenho franzido.
— E se eu não quiser, o que o senhor vai fazer? Me agredir ou expulsar desse colégio? Já era pra ter feito isso há muito tempo. Por que será que não fez? Deixa eu pensar um pouco. Já sabemos a resposta, não é, querido diretor? — A ironia em sua voz foi notável.
— Chega, senhorita! Não estou com paciência para as suas gracinhas. Levante-se agora e peça desculpas ao Sr. Uckermann.
— Não irei pedir desculpas a ninguém, porque não fiz nada. Só disse a verdade, que esse lugar é um verdadeiro hospício de corruptos. Acha que eu amo ficar presa aqui? Por mim, já teria caído fora dessa prisão há muito tempo.
Definitivamente, ela não tinha papas na língua. Era do tipo que falava tudo o que pensava.
— Deixa pra lá, Sr. Hernandez. — Tentei contornar a situação, mas ele não gostou muito, porque mudou sua feição.
— É assim que vai impor seu respeito, rapaz? Espero que, da próxima vez, tenha mais pulso. Essa aluna faltou com respeito a nós dois. Duas autoridades que estão acima dela. — Passou a mão sobre o paletó cinza, que fazia parte do seu terno.
— Respondendo a sua pergunta, Srta. Saviñón, eu irei aguentar sim, porque não estou aqui para crucificar e nem ferrar com vocês. — Ignorei totalmente os chiliques dele, olhando diretamente para ela. — Entrei nesta instituição para ensinar a cada um a se preparar para a universidade. Esse é o meu papel como educador. Formar novos profissionais.
— E quem disse que eu quero ir para a universidade? Já é um saco estudar nesse colégio. — Revirou os olhos. — Olha, professor, eu não quero que banque o amiguinho comigo porque, como os outros, eu não irei facilitar para o senhor. Se tentar me coagir ou meter o seu nariz onde não deve, eu vou ferrar contigo, entendeu?
Engoli a seco. Não era pra ter feito, mas eu fiz. Estava temendo uma criatura que tinha um metro e meio de altura.
— Acabou, Srta Saviñón! — disse o Sr. Hernandez, enfurecido. — Quero que me acompanhe até a minha sala agora — ordenou.
— Vai me dar advertência, querido diretor? — ironizou. — Zoé, nos vemos lá fora. — Com muito custo, ela tirou sua bunda da cadeira. — Acho que dessa vez vai. — Piscou para a outra morena, que balançou a cabeça em negação.
Achei estranho ela caminhar na nossa direção, como uma ovelha obediente. Porque, a julgar pela fala do diretor, ela não parecia tão rebelde.
— E não ouse tocar suas mãos em mim, porque senão eu grito, dizendo que o senhor está querendo me estuprar.
— Acompanhe o diretor por favor — ordenei.
— Só irei acompanhar este velho porque estou com vontade, não por causa da sua ordem — falou com rispidez.
— Já basta, Stra. Saviñón! Anda logo, que eu não tenho todo tempo do mundo para os seus chiliques juvenis. Não acha que já passou da hora de ter mais respeito pelas pessoas? Olha, se não entrar na linha a partir de hoje, eu terei que tomar as devidas providências.
— Sabe que eu ficaria imensamente feliz se me expulsasse. Assim, não olharia para essa sua cara feia nunca mais.
— Senhorita, vá com o diretor. — Fui firme.
Com muito custo, ela acompanhou ele, arrastando suas botas pretas de cano longo para fora da sala. Sei que não deveria ficar espiando, mas acabei prestando atenção nela pela terceira vez. Estava atrás do Sr. Hernandez, enquanto marchava firme.
Enfurecida, era o meu atual estado de espírito. Nunca fui de esconder o que sinto, mas agora estava controlando a imensa vontade de apertar o pescoço desse velho corrupto até ele morrer asfixiado. Diretor idiota, quem esse hipócrita pensa que é? É o novo professor com cara de lerdo tentando bancar o amiguinho somente para não implorar por sua demissão no futuro. Só quero ver até quando ele vai continuar assim depois que tiver a sua primeira convivência comigo. Espero que não ouse se meter no meu caminho, porque, como os outros, eu não facilitarei a sua vida aqui dentro. Farei dos seus primeiros dias de trabalho um verdadeiro inferno.
O ódio ainda exalava por cada poro, e a vontade de estrangular o diretor crescia cada vez mais. Descontei tudo nas botas, enquanto pisava pelo extenso corredor a caminho da sua sala. Cerrando os punhos, travando a mandíbula, e inalando o máximo de ar para dentro dos pulmões, à medida que eu fazia um exercício mental para não cometer uma besteira. Porque estava a um passo da minha liberdade, por isso não poderia me precipitar tirando a vida de alguém que me faria parar atrás das grades.
A tatuagem de borboleta que carregava na costela sempre foi a prova de que eu almejava essa liberdade. Desde os meus dezesseis anos, resolvi fazê-la para simbolizar a minha transição. Um pouco antes de tudo acontecer, vivi o ápice da minha plenitude ao lado do Lucas. A pessoa mais incrível e bondosa que conheci até hoje. E por falar no meu nerd incrível, a saudade de tudo que vivemos ainda me corrói. Mesmo que os anos tenham se passado, eu não consegui esquecê-lo. Depois que Lucas partiu, eu nunca mais fui a mesma pessoa, porque ele levou uma parte minha consigo. Aquela que me fazia acreditar no verdadeiro amor.
Sofri por quase quatro meses, que foram os mais difíceis da minha vida. Me reergui com o tempo e passei a enxergar tudo diferente. Os dias ensolarados deram lugar aos nublados e cinzentos. Como uma nuvem escura pairando o tempo todo sobre a minha cabeça, e aquela faísca da revolta que crescia em meu âmago. Nunca aceitei a sua partida, e até hoje não aceito.
Foi difícil no início, e ainda é, mesmo depois de quase três anos, saber que nunca, encontrarei alguém como ele. Aquela pessoa que ficava comigo em todos os momentos. Incluindo os que eu me encontrava isolada. Lucas foi a minha luz em meio a escuridão. E, infelizmente, hoje me encontro sem ela. Antes dele, os dias eram tristes e solitários, e após sua partida, esses mesmos dias retornaram não como antes, mas com uma leve mudança. Quatro meses após a sua partida, eu decidi que não voltaria a ser a Dulce de catorze anos, besta, chorona e gorda, mas a descolada, aquela que nunca se abala diante das adversidades. A corajosa, destemida.
Não que fosse diferente antes, porque sempre tive esse grau de valentia em mim, que por opção, eu mostrava muito pouco. O lado das sombras, da Dulce racional, aquela que não estava nem aí para o amor e toda ilusão que os livros e filmes de romance retratam. O homem perfeito cujo é aquele que a mocinha se apaixona e enfrenta tudo e todos em nome desse amor. Com Lucas não foi diferente, porque também enfrentei os meus pais, que na época, não aprovaram o nosso namoro só por causa do Lucas não ser como nós. Diferente dos outros, Lucas havia conseguido uma bolsa para estudar aqui no San Diego, seus pais não são ricos, mas tem uma pequena loja de roupas no subúrbio da cidade. Sua avó conheceu a minha porque era a costureira que fazia os vestidos que usava em suas apresentações.
Herdei o lado um pouco frívolo do meu pai, e a impetuosidade e coragem dela. Da minha querida avó. Dona Antonieta Saviñón era uma mulher forte, decidida e brava, mas com o coração enorme. E acredito que essa sede por fazer justiça veio dela. Porque sempre fui, e ainda sou, contra alguns alunos daqui terem certos privilégios só pela sua posição financeira. Posição da qual infelizmente estou incluída. Alunos cujos pais são empresários ou figuras importantes, onde o diretor e até mesmo alguns professores bajulam. Achava um absurdo aquele energúmeno agir assim, mas infelizmente não podia opinar. Vi ele expulsar um aluno injustamente por algo que não fez. Como a carteira do professor de inglês que foi roubada na sala dos professores. E a pulseira de ouro da Belinda, que foi colocada na bolsa da Zoé quando estávamos no 1° ano por causa da vadia da sua filha. Me lembro de ter juntado um grupo para defendê-la das armações de sua "amiguinha", e graças a Deus, conseguimos.
Infelizmente, nessa mesma época, Zoé era uma de suas fiéis seguidoras, aquela que vivia babando ovo da nojenta, que aproveitava da sua inocência para manipular a coitada. Por isso que depois do fatídico incidente, Lucas e eu começamos a alertar a Zoé em relação a Danna. Eu a ajudei, e em troca ela me deu seu total apoio quando o Lucas me deixou. Seja tentando me colocar para cima como uma verdadeira amiga ou me mimando com alguma besteira. Porque amizade verdadeira é aquela que está conosco em todos os momentos. É a Zoé me mostrou isso com a sua amizade sincera. Digamos que tenho muita sorte de tê-la em minha vida. Ela sempre está me ajudando, inclusive com os meus planos referente a expulsão. Porque duas cabeças pensantes é melhor que uma.
Espero que realmente dê certo o plano de hoje, porque está ficando muito complicado convencer o nazista que sou um perigo para o colégio.
E falando nos planos realizados com base na minha expulsão, essa não é a primeira vez que faço essas atrocidades. Foram muitas vezes, e dentre elas incluo o episódio do sexo que houve dentro do banheiro Masculino com o (Rafinha), que na época cursava o último ano do ensino médio. Dois dias depois, tranquei o professor de história claustrofóbico dentro do armário de limpeza. Sei que foi maldade, mas eu precisava ser expulsa. Um mês depois, foi a vez de usar o Diogo para uma aventura perigosa na recepção. Aproveitamos que Joana tinha se ausentado para fazer safadezas no sofá. E deu super certo, porque o velho hipócrita acabou nos flagrando na hora do ato. Me lembro como uma memória recente, seu rosto estava vermelho e ele ficou completamente furioso. Diogo não precisou se esforçar tanto para evitar a expulsão, devido às influências do seu pai. Comigo também foi o mesmo esquema, meu querido pai molhou as mãos do imbecil para que ele não levasse o caso ao conselho do colégio.
Ele abriu a porta da sala, que rangeu estranhamente. Arrastou os sapatos para o interior do seu ninho de corvos que chamava de escritório, e caminhou a passos estreitos até o outro lado da mesa, onde ficava a sua grande cadeira giratória. Tomara que funcione. Usei como um mantra metal, estalando alguns dedos ao dar um passo para dentro da sala. Fechei a porta a seu pedido e acomodei meu farto traseiro na cadeira cor marrom. Para irritá-lo, coloquei as pernas na sua mesa, e peguei um pequeno troféu dourado que estava na ponta dela.
— Tenha modos, senhorita — ordenou, com o cenho franzido. Dava para ver até aquela fumacinha que sai dos personagens de desenho animado quando estão irritados.
— Foi mal, senhor diretor. — Retirei as pernas da mesa e depois de colocar o pequeno troféu novamente na ponta, tirei o maço de cigarro do bolso.
Ele pigarreou e fechou os punhos em seguida, só para tentar manter o pouco do autocontrole que lhe cabia. Eu estava conseguindo irritá-lo.
— Guarde isso agora, senhorita, se não quiser levar outra advertência. — Seu pescoço estava vermelho, e o suor escorria por sua testa.
— Por que não me dá, querido diretor? — Usei a ironia na maior naturalidade. Eu era boa nisso. Em irritar os outros. — Aliás, porque não me expulsa logo de uma vez. — sugeri colocando ele entre os lábios.
— Já disse para guardar essa... — Maxilar travado, respiração ofegante, nariz com uma dilatação além do normal. Ele estava uma fera e isso era excelente.
— Tem um isqueiro?
— Não me faça perder a pouca paciência que ainda me resta, senhorita. Joga essa droga fora agora. — Cuspiu as palavras, muito irritado. — Vou ligar pro seu pai.
Levantou da cadeira prontamente, pegando o aparelho no bolso da calça, e eu imediatamente travei o corpo na cadeira, sentindo ele tensionar por inteiro. Parecia que eu estava prestes a passar por algum tipo de sentença. E de fato eu estava, não por medo da presença dele aqui, mas do que ele poderia fazer caso soubesse das coisas que andei aprontando. Eu não quero ir para a Suíça e muito menos parar em uma outra prisão. Porque se aqui está péssimo, certamente lá será bem pior.
— Ok, eu paro. — Guardei o maço de cigarro no bolso do paletó, que fazia parte do uniforme, e levantei os braços em sinal de rendição. — Mas por favor não ligue para esse senhor. O que acha de resolvermos isso logo de uma vez? O senhor sabe que tenho dezoito, então tecnicamente meu pai não tem mais o poder sobre mim. Sou adulta e já posso ter o controle da minha vida. O que inclui a herança da minha avó.
Eu não deveria me precipitar, mas acabei fazendo. Droga! É agora que esse velho não vai abrir a guarda.
— Quer que eu te expulse, senhorita?
Era tão óbvio que finalmente ele havia percebido, um pouco tarde, mas já era um grande início.
— Exatamente! Veja bem, durante esses anos, vocês viram o quanto não estou apta para estudar aqui. Se eu continuar estudando nesta instituição, ela correrá um sério risco de ser incendiada. Estou falando sério, não controlo as emoções, e quando tenho raiva, quero exterminar todo mundo.
Sei que exagerei, mas tive que revelar parte do que havia planejado para hoje.
— Vou ligar para o seu pai. Ele saberá o que fazer. — Insistiu novamente.
— Não! Ele não… — Estava com medo do plano ir por água abaixo. — Por que não resolvemos isso agora? Vamos fazer o seguinte: me dê outra advertência.
Precisava tirar essa ideia dele ligar para o Fernando.
— Prometo que tentarei controlar os meus impulsos a partir de hoje — Supliquei. — Mas não liga para o meu pai, por favor. E não me faça conversar com um estranho sobre a minha vida. Eu não preciso disso.
— Tem certeza que não? Ao julgar pelo seu comportamento, acredito que precisará.
Estalei os dedos novamente, mordendo a parte inferior dos lábios, enquanto olhava para o seu polegar sobre a tecla do celular. Ele ia ligar para o Fernando. Agrr! Tanto esforço para nada. Pelo menos iria escutar a conversa, mas até isso o idiota fez ao contrário, só para que eu não tivesse o prazer de escutá-lo. Simplesmente saiu da sala, me deixando sozinha no seu ninho de corvos.
A prateleira acima dava a visão privilegiada dos diversos troféus conquistados pelo extinto time do colégio. E a taça que estava na ponta reluzia com o seu prateado. Não tenho muitas recordações dessa época, mas ainda me lembro perfeitamente bem que adorava ficar na arquibancada para ver os treinos. Nunca fui ligada a esportes, mas tinha que admitir que os jogadores da época eram muito bons.
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— O que está fazendo aqui, pirralha? — Uma garota loira, alta e bonita se aproximou. Atrás dela havia duas moças, que também eram líderes de torcida. Todas elas eram magras e atraentes. Será que eu seria bonita assim quando crescesse?! Talvez não. Encarei o saco de salgadinho e a pança levemente alterada através da blusa de uniforme.
— Estava assistindo ao treino. — Enfiei a mão no pacote e levei até a boca. — Você não gosta de crianças, não é?
Ainda encarando os seus olhos azuis, vi ela estreitar eles para mim e ignorar a minha pergunta quando simplesmente decidiu virar as costas e se afastar com as suas amigas no encalço. Será que ela se chateou? Um tempo depois, o treino acabou e um rapaz alto loiro e sem camisa subiu alguns degraus, enquanto secava o suor do seu rosto com ela. Sorrateiramente, ele foi se aproximando do lugar que eu estava sentada e assim que me encarou, estiquei o pacote de salgadinhos na sua direção. Precisava ser amigável para que ele não me expulsasse daqui ou ignorasse completamente como a loira fez.
— Não, obrigado! — ele respondeu, educadamente, enquanto me encarava. O rapaz era tão alto que parecia um gigante.
— Olá. — Agachou para me cumprimentar, e mesmo assim, permaneci calada. — Você não vai falar nada. O que está fazendo aqui sozinha?
— Assistindo ao treino — respondi, sentindo meu rosto esquentar. Não sei se era devido ao sol ou pelo fato da vergonha que estava me consumindo. Porque nunca imaginei que nenhum deles viesse falar comigo.
— Entendi.
— Vai implicar comigo como a loira fez?
— Qual loira! — Estreitou os olhos, que ficaram mais claros por causa do reflexo da luz solar. — Já sei...
— Ela é líder de torcida — comentei.
— É a Janine, minha namorada. Ela te disse o quê?
— Nada demais, só me chamou de pirralha e depois me ignorou. — Dei de ombros.
— Certo.
— Eu posso assistir aos treinos outras vezes? — iquiri, sentindo uma pontada de esperança. Tomara que ele deixe...
— Claro, a hora que você quiser, mocinha. — apertou a ponta do meu nariz, e eu senti cócegas.
— Não sabia que a loira era sua namorada, ela é tão bonita!
— Sim. — Passou a mão sobre os fios desgrenhados do seu cabelo.
— Tomara que um dia eu seja assim. — Seus olhos estavam sobre os meus. Confesso que eram brilhantes e bonitos. — Mas eu sei que nunca chegarei lá. — Encarei a minha barriga, vendo a mesma protuberância. Eu nunca iria ser magra, ainda mais comendo compulsivamente.
— Quantos anos você tem?
— Oito.
Se fosse qualquer criança da minha idade mostraria os dedos, mas como eu era diferente, apenas falei.
— Acho que nunca serei magra e bonita como ela. — Encolhi os ombros.
— Sabe de uma coisa, eu acho que está enganada. Acredito que será uma linda garota quando crescer.
— Sério!
— Sim, porque você já é bonita e também bastante esperta. — Apertou a ponta do meu nariz pela segunda vez, e logo em seguida, levantou.
Já de costas para mim, vi o rapaz caminhar lentamente em direção ao outro lado da arquibancada onde ficava a parte coberta.
— Ei. — gritei o suficiente para que o rapaz escutasse e ele virou o pescoço para me olhar. — Você não me disse o seu nome.
Mesmo de longe observei que seus olhos estreitaram para mim, enquanto colocava a mão um pouco acima deles, na tentativa de diminuir a claridade.
— Luis — respondeu, alto o suficiente para que eu escutasse.
— O meu é Dulce...
Foi a partir desse dia que o Luís passou a ser o meu mundo. Mesmo sendo bem mais velho do que eu, ele foi a minha primeira paixão antes do Lucas. Ele sempre me dava doces e empurrava o balanço quando estávamos no parquinho. Também me ensinou um pouco de futebol, mas por ser tão ruim no esporte acabei desistindo. Ele foi o melhor amigo que tive naquela época, e a sua namorada a Janine não ia muito com a minha cara, porque achava que o namorado dava mais atenção a mim, do que para ela.
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— Conversei com seu pai, e juntos, iremos tomar as devidas providências. — Levei um susto ao escutar a voz do velho hipócrita logo assim que ele entrou. — Você só permanecerá aqui conosco com uma condição:
— Não quero saber de nenhuma condição! — bradei.
— Olha o respeito, senhorita. Eu sou a autoridade aqui e o único que pode levantar a voz. Já não basta o desrespeito comigo diante do novo professor e agora quer repetir a dose aqui no meu escritório.
Ele vai ver o respeito quando eu incitá-lo a enfiar do dedo no próprio C*.
— Nós decidimos que você fará acompanhamento com a Dr. Loise. Ela é uma ótima psiquiatra e vai ajudá-la no seu problema.
Psiquiatra! Esse imbecil só pode estar de brincadeira comigo. Acredito que quem realmente esteja precisando ser internado em um hospício e ele é não eu.
— Prefiro que me expulsem... Não vou sentar diante de uma mulher esquisita para falar das minhas particularidades. Sinto muito, mas eu não vou fazer nenhum tipo de acompanhamento.
— Vamos ver, senhorita — ameaçou.
— Posso ir agora? — bufei.
— Não, eu ainda não terminei. — Revirei os olhos. — Lembre-se que após as aulas quero a senhorita na última sala. Vamos fotografar você e a Danna para a próxima propaganda do colégio.
Imbecil!
— Com certeza, querido diretor, estarei lá no horário marcado — zombei. — Adoro quando usam a minha imagem para promover o colégio. Mas cuidado, porque pode acabar manchando o nome da instituição, caso seja associado a mim.
— Sem gracinhas, senhorita — bradou. — Volta para sala e não responda o professor, como fez mais cedo.
— Claro, eu sou uma santa, o senhor sabe. — Fiz a minha melhor cara de vítima, arrastando os pés para fora do seu ninho de corvos depois de acenar para ele da maneira mais debochada que pude só para deixá-lo bastante irritado.
Ponto para mim.
Dulce Saviñón X Diretor imbecil
2x0
A caminho da sala, eu pensei, em como faria para seguir com o meu plano e ainda arrumar um motivo para fugir das consultas com a psiquiatra. E Zoé me ajudaria a escapar disso tudo quanto antes. Fui metendo a mão na maçaneta para abrir a porta e dei de cara com o professor, que me encarou do mesmo jeito estranho de antes. Droga! Qual era o problema desse cara? Com certeza, estava esperando uma oportunidade para rir da minha cara, ou me dar um sermão como o velho energúmeno. Mesmo de costas para ele, fui caminhando a passos moderados em direção a minha cadeira senti
ndo a porra do seu olhar queimar sobre mim. Certamente era um sermão a caminho.
— Rum rum. — Pigarreou igualzinho um velho. — Não sabe bater na porta antes de entrar Srta. Saviñón. — Estava demorando para esse professor mequetrefe mostrar as garras. Mas se ele pensa que vai impor algo a mim como pretende fazer com os outros alunos está redondamente enganado. — Cadê a educação, senhorita?
Ele vai ver a educação quando... É melhor esquecer.
— Deixei ela lá fora. — Sorri, após comprimir os lábios, e virar para ele. Todos começaram a rir, inclusive a vadia da Danna e as suas três fiéis seguidoras. — Mas posso buscar, se o senhor quiser. — Exibi o meu melhor sorriso, ou seja, de deboche, porque gostava de deixar as pessoas irritadas. Inclusive certos professores chatos que mal chegavam já impondo algo, e diretores corruptos.
Irritado com a minha resposta, o Sr. Certinho bateu três vezes com a sua mão direita sobre a mesa, na tentativa de acabar com os risos dos outros alunos.
E mais uma, vez o ponto vai para Dulce Saviñón, que agora está com uma grande diferença de 4x0 contra a equipe do Dig vigarista.
— Vamos parar com as risadas, porque isso daqui não é uma de comédia stand-up.
— O que é isso, professor? — O idiota do cabelo ruivo, que sentava no fundão, que por azar vivia dando em cima de mim, na tentativa de tirar alguma casquinha, perguntou:
— É um espetáculo de humor executado apenas por um comediante sem cenário e nenhum acessório. — Ele fica em pé, enquanto constrói piadas, que normalmente tem haver com o cotidiano das pessoas.
— Entendi.
Novamente um burburinho se fez presente e o idiota chamou a atenção de todos pela segunda vez.
— E a senhorita trate de fazer a atividade do livro, que está na página 32 da apostila, que faz parte do conteúdo sobre Citologia. Essa atividade valerá nota, então acho bom agilizar logo.
— Pode deixar, prof, que a sua ordem logo será atendida. — Bati continência, e em seguida fiz uma careta engraçada ao olhar para Zoé, que acabou sorrindo.
— Você tem um sério problema. Posso dizer que já ultrapassou a fase das loucuras.
Ela me entregou um pequeno pedaço de papel dobrado em quatro e falou em voz baixa para que eu abrisse assim que a aula terminasse.
— Aposto que esse bilhetinho que a Zoé te entregou tem a ver...
— Shiu. — Lancei um olhar de repressão para Daniela, antes que ela soltasse a merda.
Infelizmente, ela sabia do nosso plano, não porque contamos, mas pela infelicidade dela ter escutado quando estávamos conversando no dormitório ontem à noite. Daniela também dividia o quarto com nós duas e era a terceira que fechava o nosso grupo. O grupo das gatinhas borralheiras, nome sugerido pela própria Dani. Diferente de nós duas, ela sempre foi a mais sensata do grupo. A estudiosa, aquela que nunca se metia em encrencas e tirava boas notas. Ela veio transferida para cá diretamente de um internato de freiras. Pois é, se reclamo daqui, imagina se vivesse minha vida dentro de um lugar religioso. Acho que já teria sido expulsa, ou cometido uma loucura que deixaria todas as freiras traumatizadas.
— Falta dois minutos para o sinal tocar, louca, e você não fez nada. O professor disse que essa atividade valerá nota.
— Eu sei, e é por isso que eu não vou fazer.
Destaquei a folha após abrir o fichário, e fiz algo nela antes de caminhar em direção à sua mesa, e colocá-la bem na sua frente.
— O que significa isso?
Ele pegou o papel e me encarou com uma certa incredulidade.
— A atividade. — Sorri, com os lábios fechados.
— Ok, então como não tem nada escrito aqui além de um desenho, vou te dar um... — Com a sua caneta esferográfica preta, ele fez um círculo na folha, e depois concluiu com um risco no centro. — Zero. Espero que leve as coisas mais a sério daqui por diante, senhorita, senão ficará por mais um ano aqui. E pelo visto, a senhorita não quer isso, não é?
Esse idiota está me testando, mas se ele pensa que vai conseguir, se enganou.
— E quem disse ao senhor que permanecerei aqui. Só estou esperando algumas coisas serem resolvidas, para que possa dar um fora daqui logo. — Peguei o papel novamente e amassei. Joguei no lixo antes de lhe dar as costas e voltar para o meu lugar.
— O que foi aquilo, sua maluca? Você simplesmente amassou o papel na frente do professor e jogou no lixo.
Ela estava tão chocada quanto a Dani.
— Ti terrò d'occhio — ele falou essas palavras estranhas em alto tom, enquanto olhava diretamente para mim. Se foi uma indireta em outra língua, eu não sei, mas não esquentaria a minha cabeça, porque em breve estarei fora daqui...
O sinal tocou e a Srta Peregrín, que já esperava na porta, aguardou ele recolher os seus pertences e guardar tudo na bolsa. Os dois se cumprimentaram com um sorriso gentil e logo após ela entrar, se acomodou na mesma cadeira, antes ocupada por ele.
Continua...
Encontrou algum erro de script/revisão nessa história? Me mande um e-mail ou entre em contato com o CAA.
Nota da autora: Olá, olha só quem decidiu aparecer novamente com mais uma obra para vocês. 😁
Quem já leu a primeira e a segunda versão, tem mais ou menos uma noção de como as coisas irão suceder. Espero que curtem essa também, porque ela e o meu presentinho para vocês antes de eu me ausentar definitivamente daqui.
OAV, será dívida em duas, essa e a primeira parte, com aproximadamente 45 capítulos. A segunda será um pouco mais curta. Espero que gostem.